
Há 85 anos, a menina serelepe, que jogava bola com os meninos, subia em árvores no oeste de Santa Catarina, contestava as ordens da madre superiora no internato, em Porto Alegre, que se transformou em uma jovem desenvolta nos palcos, em uma apresentadora que criticava políticos e autoridades na rádio e desnudava entrevistados na TV, segue apaixonada... pela vida.
Formada em Jornalismo, Ciências Sociais e Psicologia, a trajetória de Ivette Brandalise, primeira mulher a ocupar um espaço de opinião no rádio e na TV no Rio Grande do Sul, pode ser considerada uma valsa em alguns momentos, um tango em outros. Como em uma dança clássica, diz ter sido conduzida pelos caminhos da comunicação, enquanto o gênero do mestre Astor Piazzolla anunciava o programa Primeira Pessoa, na TVE, onde ela permaneceu durante 27 anos.
Atualmente, Ivette vive cercada de arte. Espalhados pelo apartamento, esculturas de Xico Stockinger, pinturas de Darcy Penteado, livros de Erico Verissimo, Mario Quintana, Caio Fernando Abreu, Rubem Braga e Adélia Prado ocupam a sala e os quartos. Muitas obras ainda estão embaladas. Há pouco tempo, trocou a cobertura no bairro Moinhos de Vento por um imóvel no bairro Auxiliadora, mais afeito às suas necessidades atuais.

A luz solar que penetra nos cômodos ganha intensidade em razão dos espelhos, que refletem também o brilho das ideias e do pensamento da jornalista. A voz rouca, tão característica, ressoa pelo ambiente.
Ao longo de duas horas de entrevista, Ivette mantém o rigor e o olhar apurado ao esquadrinhar o mundo contemporâneo. E envereda pelo fio da memória recordando momentos impactantes de sua história, que se funde, muitas vezes, com a do jornalismo gaúcho.
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Há quem diga que vivemos na era em que a tela dos aparelhos digitais é o real. Não achas que a visão crítica das pessoas tem sido deturpada?
Hoje, quando tu falas em crítica, as pessoas entendem como briga. Quando, na verdade, essa análise crítica é fundamental, tem que ter na hora de ler um livro, ver um filme, conversar. As pessoas não entendem mais o que significa discutir. É na discussão que tu te enriqueces. Ou porque tu reforças a tua crença ou porque tu tens de mudar: pensar diferente. Porque pensar diferente hoje é uma coisa muito estranha, alguns dizem que é perigoso.
O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) dizia que as relações sociais no mundo contemporâneo se liquefazem a cada instante, que vivemos uma eterna insatisfação.
Eu acho que a gente está vivendo uma crise do pensamento, da consciência do Eu, de quem eu sou. A gente está mais preocupada em ser interessante para o outro. Usar o cabelo, a roupa que os outros gostam. Você está sempre enxergando como é que o outro está vivendo, e aí tem que buscar fazer aquilo. E daí vem a frustração, a inveja. Na verdade, você tem que descobrir quem você é para você. Você tem que realmente aprender a gostar de você.
Todo mundo quer se espelhar no outro, sem olhar para dentro de si, para a sua individualidade, que é o que faz a riqueza da natureza humana.
Nancy Huston, no livro A Espécie Fabuladora, defende a tese de que o que diferencia o ser humano é nossa capacidade de contar histórias. Que precisamos disso para dar sentido à vida. Tu concordas?
Eu acho que o viver é mais intenso para quem vai construindo a sua história. Mas nem todo mundo tem condições de contar e aprovar a sua história. Às vezes, tu vives e trabalhas e fazes coisas que tu não gostarias. Então, se a gente tem capacidade e consciência daquilo que está construindo, a gente até pode mudar de rumo, de repente. Porque, primeiro, tem que respeitar a ti, agradar você, depois o outro. A tua história tem que ser boa e produtiva para ti.
Nasceste em Videira, no oeste de Santa Catarina. Como foi a tua infância?
Meus pais, imigrantes italianos, saíram daqui no movimento de colonização daquela região. Foi um dos primeiros casais a se instalar em Videira, cidadezinha às margens do Rio do Peixe, recém-emancipada de Campos Novos. Foi uma infância muito boa, porque numa cidade pequena a gente é amiga de todo mundo. Eu brincava na rua, andava de bicicleta, jogava futebol com os guris, subia em árvore.
E por que saíste de lá?
Quando eu cheguei no antigo ginásio, atualmente Ensino Fundamental, o ensino era muito fraco em Santa Catarina. Então, em 1953, eu vim para Porto Alegre, para o internato no Bom Conselho. Minha vida, daí, mudou drasticamente. Passei a viver trancada, só podia sair de 15 em 15 dias. No internato, escolhiam que tipo de livro tu podias ler, havia muita opressão. Por mais de uma vez, fui levada ao gabinete da madre superiora. Fiquei dois anos e meio. Depois, fui para o colégio estadual Júlio de Castilhos (Julinho).
Fui muito infeliz no internato. Elas determinavam o que ler, o que vestir. Tudo era pecado
Foi no Julinho que despertou o interesse pelo jornalismo?
Conheci no Júlio de Castilhos uma pessoa que era apaixonada pelo Jornalismo, Gladys Cotliarenko, e ela terminou me seduzindo para a profissão que ela tinha escolhido. Eu me encantei mesmo com as possibilidades do Jornalismo, de conhecer o mundo. Então, na hora de fazer vestibular, optei por Jornalismo na UFRGS e, por garantia, Ciências Sociais na PUCRS. Entrei em ambas. Decidi cursar as duas.
Nessa época, ainda foste parar nos palcos. Como o teatro entrou na tua vida?
Confesso que não sei como eu fazia tanta coisa ao mesmo tempo. Era faculdade de Jornalismo de manhã, algumas cadeiras de Ciências Sociais à tarde e teatro à noite. Conheci o Antonio Abujamra quando estava na PUCRS. Ele estava aqui a convite do Teatro Universitário, grupo amador. Na ocasião, eu estava fazendo a peça À Margem da Vida, de Tennessee Williams, com Lilian Lemmertz e Luiz Carlos Maciel. Fiz alguns espetáculos com ele, que comandava o Teatro Estúdio.

E aí foste fazer parte do primeiro curso de Arte Dramática?
A união de professores da UFRGS e de integrantes do Teatro Universitário culminou na criação do Curso de Arte Dramática, em 1957. O diretor era o Ruggero Jacobbi, italiano que estava morando em São Paulo. Eu fiz apenas dois anos, em razão de que estava surgindo o Teatro de Equipe, a primeira experiência de teatro profissional em Porto Alegre. Na época, não se podia fazer teatro fora do curso. E mais: Ruggero também estava de saída e sem ele eu não tinha interesse em continuar.

O que representou o Teatro de Equipe na tua vida e na história do Rio Grande do Sul?
O Teatro de Equipe era formado por nomes como Paulo Cesar Pereiro, Paulo José, Luiz Carlos Maciel, Mário de Almeida e Milton Mattos. Milton Mattos, com quem eu terminei me casando. Então, de certa forma, o Teatro de Equipe me deu um grande amor que resultou depois em novos amores: nossos dois filhos, André e Felipe. O Teatro de Equipe era um centro agregador, porque era um momento incrível, de criatividade, de pessoas brotando na literatura, na música, no teatro, nas artes plásticas.
Caído o pano do teatro, ingressaste na vida de jornalista. Começaste fazendo o quê?
Comecei no Diário de Notícias. Celito de Grandi era o meu editor. Foi uma pessoa que me ajudou muito, me estimulou, me deu confiança. E cheguei, mais uma vez, por intermédio da Gladys. Ela estava passando para outro emprego. E eu te confesso que não tinha experiência. Então, no começo, foi bem difícil. Mas foi indo. No mesmo momento, a Gladys me fez outro convite, que, de novo, aceitei. Fui trabalhar concomitantemente como relações públicas na Standard Propaganda. Na época, a gente se habilitava nos três cursos: Jornalismo, Relações Públicas e Publicidade e Propaganda.
E a decisão de cursar Psicologia?
Eu queria entender os públicos, aí entrei na faculdade em 1965, focada na Psicologia Social. No entanto, logo que ingressei, me apaixonei pela clínica, tanto que cheguei a abrir meu consultório.
1ª mulher a ter espaço opinativo no rádio e na TV

Como foi essa entrada na televisão?
A Célia Ribeiro, que trabalhava também no Diário de Notícias, me convidou para fazer o programa Revista da Semana dentro da televisão Piratini. Foi a minha primeira experiência de TV que resultou também, por sugestão da Célia, na minha inclusão no jornal Show de Notícias, na TV Gaúcha. Eu era, de certa forma, conduzida. Eles estavam procurando uma mulher que tivesse autoridade para fazer crítica. E fiz o teste. Comecei a fazer e, com a minha capacidade de atriz, foi ficando muito bom e deu uma audiência muito boa. Era um jornal dirigido por Lauro Schirmer e que tinha como redatores nomes como Ibsen Pinheiro. Eu fui a primeira mulher a fazer jornalismo opinativo em TV.
Foi esse jornal que eu considero meu ponto de largada às ganhas no jornalismo.
E por que saístes?
Em 1967 fui convidada para participar do primeiro programa de produção independente de Porto Alegre, o Jornal Ipiranga, na TV Piratini. Eles me ofereceram o dobro do salário além de poder eu mesma escrever os textos. Lá neste jornal encontrei comentaristas do quilate de Cândido Norberto e Flávio Alcaraz Gomes.
Na Rádio Guaíba, ficaste vários anos com um programa. Como foi a tua entrada no meio rádio?
De novo, um convite. O Flávio Alcaraz Gomes me chamou para fazer um programa, que foi batizado com o nome de Cinco Minutos com Ivette Brandalise. Durou 20 anos. Era um comentário crítico. Fui a primeira mulher a ocupar um espaço deste tipo no rádio gaúcho. Eu fazia uso da minha capacidade de atriz para, com inflexões, pausas, carregar o comentário com mais ou menos crítica. E eu criticava aqui, apoiava ali. Eu me sentia totalmente livre na Caldas Júnior. Era tão bom o programa, dava tanto sucesso, que eu fui convidada para escrever uma crônica na Folha da Manhã pelo então diretor da época, capitão Erasmo Nascente.
Entra em cena a Ivette cronista. Quais os temas que te interessavam?
Eu tinha duas crônicas por dia. A de rádio não tinha nada de literatura, era mais incisiva, crítica, de cobrança mesmo. A de jornal já era mais elaborada. Então, fiquei durante 20 anos nas duas coisas. O cronista do jornal é mais da observação. Eu andava na rua antenada. Ia jantar com o Milton, e ele dizia: "Presta atenção em mim um pouquinho". E eu ali, tentando captar algo das conversas ao redor. Alguns anos depois houve uma mudança na Folha da Manhã, e o doutor Breno me convidou para a Folha da Tarde. Eu fiquei lá na Caldas Júnior até a venda para o Renato Bastos Ribeiro. Depois, como muitos, fui saída.

Quais as tuas influências literárias?
Ainda na faculdade de Jornalismo, encontrei Rubem Braga e me apaixonei. Até hoje, na verdade, nutro essa paixão. Para mim ele é o maior cronista do Brasil. Aliás, tem uma passagem interessante. Eu participava de um concurso de crônica como jurada e o Rubem Braga também, em São Paulo. No dia seguinte, no café da manhã do hotel, ele perguntou se podia sentar ao meu lado. Ele nem fazia ideia de quem eu era, mas eu estava ali junto ao meu guru. Eu disse sim e pensei: pronto, agora eu já posso morrer tranquila.
Atuaste como jornalista durante todo o período da ditadura militar (1964-1985). Vivenciaste diretamente algum tipo de censura, repressão?
Na Rádio Guaíba, o Osmar Meletti ouvia meus comentários antes de ir ao ar. Foi o Flávio Alcaraz Gomes que designou ele. Aprendi a falar e a escrever nas entrelinhas. No jornal, passei pela censura dos editores, claro, era preciso ter todo o cuidado com o que seria publicado. Lembro que tive crônicas censuradas, então resolvi falar diretamente com o Doutor Breno Caldas. Pedi que os editores mandassem para ele quando achassem que poderia ter algum problema. E nunca mais me censuraram. Foi o melhor patrão do mundo que eu tive nesse sentido. Na TV, na época da TV Difusora, sim, fui chamada várias vezes na Polícia Federal.
O censor implicava com minhas pausas, minha entonação, meus olhares. Eu respondia que não havia nada de errado no comentário e que em razão de ser míope, algumas vezes forçava o olhar. E as pausas eu precisava porque tinha dificuldade para respirar. Depois acabamos ficando amigos

Da Bandeirantes fostes para a TVE, em que circunstância ocorreu a tua saída do Morro Santo Antônio?
Na Difusora, eu telefonava para a redação e eles me diziam quais eram os assuntos do dia. Eu escolhia um ou dois e fazia o meu comentário. E criticava mesmo os governantes. Aí, num determinado dia, eles me ligaram e disseram que eu não precisava mais ir até a TV. Eu não entendi. Liguei para a PF perguntando qual tinha sido o problema da vez. Disseram que não havia nada. Aí liguei para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Também não havia nada. Descobri que tinha sido uma pessoa, que inclusive era minha amiga, que trabalhava numa secretaria de Estado. Esta pessoa foi lá na TV e disse: "ou sai ela ou o governo tira toda a publicidade". Saí eu.
Perdi dinheiro, o emprego, mas me senti muito importante.
Conjugando verbos
Na TVE, permaneceste por 27 anos. Como foi trabalhar em uma emissora estatal?
Depois que eu saí da TV Difusora (TV Bandeirantes), fui convidada para trabalhar na TV Educativa (TVE). Nessa época, o governador do Estado era o Pedro Simon. E passei por muitos governos, sem nenhum tipo de problema ou interferência. De modo geral, eu sempre tive muita liberdade. Eu comecei fazendo um programa de debates. Depois é que eu fui para o Primeira Pessoa.
Qual a história do programa Primeira Pessoa?
O segredo da entrevista é saber ouvir, e no programa eu seguia à risca esta máxima. Tanto que eu nunca usava ponto, pois era fundamental ficar prestando total atenção ao que me respondiam.
Era a partir das deixas, das lacunas que eu ia emendando as perguntas e assim a pessoa ia se revelando. E o cenário escurinho, com a câmera mais fechada, deixava tudo mais intimista.

A ideia de perguntar ao entrevistado, no final, "que verbo tu conjugas na primeira pessoa?" foi pensada na concepção do programa?
Não, não. Foi algo que aconteceu e acabou virando uma marca. Veio um dia: como é que eu termino o programa? Aí me surgiu essa ideia. Mas não fazia a pergunta todas as vezes. Teve um momento, inclusive, que eu pedia para as pessoas trazerem algum objeto importante para ela e aí no final dizer por que aquele objeto era importante.
Dois anos depois, ocorre a inauguração da FM Cultura. Foi a tua volta para o rádio com um programa que misturava entrevista e música, como foi essa experiência?
Eu tive uma grande felicidade por conta desta inauguração. Eu fiquei recepcionando as pessoas no dia, fiz parte do momento da entrada da rádio no ar e comandei o programa As Músicas que Fizeram sua Cabeça.
Lá no início, teu encantamento pelo jornalismo tinha a ver com a ideia de conhecer o mundo. Viajaste bastante?
Eu viajei muito. Meu marido também gostava muito, então aproveitamos. Israel, Dinamarca e Cairo foram lugares impactantes. Claro, sem contar os roteiros tradicionais. Paris, Roma, Nova York, por exemplo, são cidades que eu amo. Mas, não, hoje não consigo mais. Tive um problema de circulação nas pernas, que já não funcionam tão bem. Então, a minha vida ficou mais limitada. Agora, por exemplo, acabei de me mudar. Minha antiga casa era enorme, já não estava aproveitando. Então, vou para um lugar menor e vou descobrir um jeito de viver neste novo espaço. E estou bem.

Sem as viagens, quais os programas que fazes para manter a capacidade de se surpreender e seguir apaixonada pela vida?
Eu continuo indo ao teatro, cinema. Encontro amigos, adoro jantar fora, tomar café da tarde aqui nas cafeterias do bairro. Meus filhos, André, 56 anos, e Felipe, 55, eventualmente vêm almoçar aqui comigo num final de semana, me levam para jantar em outro. Curto muito o meu neto, Eduardo, que é uma grande paixão. Tenho mais tempo para ele do que eu tinha para os meus filhos.