Nascemos para sofrer (ou para fazer sofrer), a memória nos tortura (isso quando não investimos na ilusão) e podemos passar a vida inteira buscando uma reconciliação impossível (mas, em raras vezes, o sol acha uma frestinha na nuvem de tristeza acachapante que cobre o planeta).
Tudo se conecta — as pessoas umas às outras, o passado, o presente e o futuro —, tudo é fragmentado (o tempo, as relações) e tudo é simultâneo: a história coletiva e a experiência pessoal, o momento e a lembrança.
Pequenos triunfos resultam em grandes tormentos, e a imaginação — por extensão, a arte — é um ponto de fuga para personagens que lidam com violências e traumas.
Eis o universo ficcional de Chris Ware, quadrinista estadunidense de 54 anos que já ganhou 19 troféus Eisner, 21 Harveys e dois prêmios no Festival de Angoulême — em 2003, por Jimmy Corrigan: O Menino Mais Esperto do Mundo, e em 2021, como reconhecimento a sua carreira.
Dele, a Companhia das Letras, através do selo Quadrinhos na Cia., lançou há poucos meses Rusty Brown (tradução de Caetano W. Galindo, 356 páginas, R$ 159,90). Publicado originalmente em 2019, trata-se do primeiro volume a compilar as histórias que Ware escreveu e desenhou a partir de 2001, na revista Acme Novelty Library.
Temos quatro tramas que podem ser lidas separadamente, embora seus personagens — entre eles, uma versão do próprio Chris Ware — estejam interligados. A convergência se dá em uma escola de Omaha, cidade mais populosa (cerca de 500 mil habitantes) do Estado do Nebraska, onde o inverno rigoroso — a temperatura mínima prevista para quarta-feira (2), por exemplo, é de 17°C negativos — e o céu encoberto em boa parte do ano certamente contribuem para o isolamento e a melancolia retratadas pelo quadrinista, que nasceu lá e mora desde 1991 em Chicago.
Na primeira história, classificada pelo autor, na sobrecapa, como comédia, conhecemos o personagem título — que depois aparecerá apenas como um coadjuvante de luxo, em uma única mas poderosíssima cena. Rusty Brown é um menino ruivo cujos pais estão às turras e que sofre bullying no colégio. Seu refúgio emocional é o mundo dos super-heróis. Ao perceber que consegue ouvir da rua a briga familiar dentro de casa, inventa como explicação o desenvolvimento de uma superaudição e passa a fantasiar com o Escutador. "Tenho que usar meus novos poderes para ajudar a humanidade, cuidar dos necessitados e proteger os desprotegidos", pensa o guri.
O pai de Rusty, o professor Woody Brown, é o próximo protagonista. Sua rotina entediante é sacudida por recordações de quando era um promissor escritor de contos de ficção científica e de sua iniciação sexual — o processo é despertado pela chegada de uma nova aluna, Alison White, que se parece com a garota por quem Woody se apaixonara na juventude.
Depois, será a vez da biografia de Jordan Lint, um valentão de escola com urgência de dar vazão a seu tesão, a sua agressividade e a seu sonho de virar roqueiro. São formas de exorcizar sérios problemas familiares, mas que ele acaba usando como desculpas para, ao longo da vida, não assumir os seus erros (e são muitos) e as suas responsabilidades (e são muitas).
Por fim, mergulhamos no cotidiano e no passado de Joanne Cole, única professora negra em um ambiente predominantemente branco. O racismo marca toda sua trajetória — ninguém sequer prova os bolinhos que ela leva para a sala de aula ("Meu pai disse para não comer nada que a senhora tocou", diz um estudante) —, mas há também um tremendo segredo por ser revelado.
As sinopses permitem enquadrar Rusty Brown na corrente que alguns críticos estadunidenses, como Isaac Butler, chamam de miserablism e que inclui autores como Daniel Clowes (de Ghost World e Paciência) e Adrian Tomine (de Intrusos e A Solidão de um Quadrinho Sem Fim): narrativas sobre depressão, vergonha, infelicidade, sofrimento etc. Também podem dar razão ao aforismo cunhado por Douglas Wolk no seu livro Reading Comics (2008), em que um capítulo foi batizado de Why Does Chris Ware Hate Fun? (Por que Chris Ware odeia diversão?).
Entendo que Ware evita escorregar para o dramalhão justamente porque se diverte fazendo quadrinhos.
Não existem dois flocos de neve iguais, diz o texto que abre Rusty Brown. E não existem dois Chris Ware. Embora ele próprio admita ter sido bastante influenciado pela primeira versão da HQ Aqui (1989), em que Richard McGuire mistura passado, presente e futuro de uma sala de estar no mesmo quadro, ninguém explora o potencial dos quadrinhos como Ware.
A partir de referências como as célebres tiras Little Nemo (Winsor McCay), Gasoline Alley (Frank King) e Peanuts (Charles Schulz), o artista e cineasta experimental Joseph Cornell e o design gráfico do início do século 20, o quadrinista criou um estilo único e inconfundível.
Há uma fricção constante entre três alicerces de sua obra: os personagens de traços cartunescos e cores vivas, os enredos tristes e a criatividade formal. O contraste entre as duas primeiras características imprime um tom tragicômico às HQs, e os desafios impostos à leitura esfriam, por assim dizer, o caráter melodramático do roteiro.
Os quadrinhos de Ware fazem uso de diagramas, plantas baixas, cartazes, artigos de jornal, mise en abyme, exercícios tipográficos e brinquedos de armar, entre outros elementos, todos integrados ao fluxo narrativo. Building Stories (2012, inédito no Brasil), por exemplo, embala em uma caixa 14 obras impressas — livros encadernados em tecido, jornais, folhetos e flipbooks — que contam histórias ambientadas em um edifício de Chicago e que podem ser lidas em qualquer ordem (daí o triplo sentido do título: pode ser Histórias do Edifício, Construindo Histórias ou ainda Histórias Edificantes). Há informações, comentários ou até passatempos relevantes ou complementares na sobrecapa, e a estrutura cronológica é intrincada ("Se você piscar, não entende", disse um amigo que trabalha no mercado). Não por capricho, mas porque a Ware interessa tentar reproduzir a maneira como nossa mente opera ações e sentimentos, organiza o que é visto e o que é lembrado — como foi dito no início deste texto, tudo se conecta, tudo é fragmentado, tudo é simultâneo.
Em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em outubro passado, a quadrinista paulista Amanda Miranda perguntou a Ware: "Entre os temas de Rusty Brown, talvez os que mais se destaquem sejam o arrependimento e a passagem implacável do tempo. Todos os personagens se unem em um sentimento de remorso, mas os detalhes de cada um compõem um microcosmo angustiante onde os traumas servem de base para a construção de adultos que se sentem à mercê da própria vida, pisoteados pelo cotidiano. Representar um sentimento tão difícil é uma forma de organizar e compreender o caos e a imprecisão da vida real?".
Ele respondeu: "Bem, isso é totalmente verdadeiro. Não há um momento da minha vida sem que eu pense em velhice e solidão no futuro, ou lamente a perda de alguém morto há décadas. É simplesmente a maneira como o cérebro humano (ou talvez apenas o meu) entende a realidade — embora, admito, talvez eu seja um pouco mais propenso a morosidade do que a pessoa média. Uma das razões pelas quais me tornei cartunista é porque me permitiu apresentar imagens em uma página de diferentes tempos e espaços simultaneamente; memórias de anos ou mesmo séculos de distância podem coexistir no mesmo espaço, da mesma forma que em nossas mentes. É certo que a aguda consciência da passagem do tempo pode ser opressora e deprimente por sua implacabilidade; um dos meus filmes americanos favoritos é Sinédoque, Nova York (2008), de Charlie Kaufman, que captura perfeitamente essa sensação. Outro é Era Uma Vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu, que trata o tempo de uma maneira completamente diferente, talvez mais simples, filtrando a sensação de viver".
A primeira história de Rusty Brown conta com duas linhas do tempo que em determinado momento vão se unir — uma acompanhando as desventuras do menino ruivo e de outros personagens da escola, a outra, no rodapé de umas 50 páginas, trazendo a perspectiva da adolescente Alison White e de seu irmão caçula, Chalky White.
Na trama sobre Woody Brown, Ware "adapta" para os quadrinhos o conto de ficção científica Os Cães-Guias de Marte, que reflete as angústias amorosas do protagonista - e que oferece um desafio extra ao leitor por causa do excesso de quadros pretos com miúdas letras brancas (se serve de consolo, a dificuldade de leitura também existe no original). Ainda na história de Woody, há uma página dividida em 176 quadrinhos que ilustram os "restinhos de memórias que passam como um raio (ou perduram, se eu quiser)" de certa época da vida do personagem.
A sequência sobre Joanne Cole embaralha o tempo. Cada situação vivida pela professora desperta uma recordação, que se insere entre cenas de seus afazeres e de suas andanças — bem como acontece no mundo real, onde flashbacks podem nos atacar sem aviso prévio ou onde podemos deliberadamente nos perder no labirinto da memória. No que diz respeito à conectividade, o capítulo sobre Joanne vai além, por estabelecer, no clímax, uma ligação entre as HQs Rusty Brown e Jimmy Corrigan — continuidade não é algo exclusivo dos gibis de super-herói.
Talvez o ápice da inventividade em Rusty Brown seja a biografia de Jordan Lint. Cada página representa um estágio na vida do protagonista, desde bebê até a morte. Primeiro Ware mostra como Jordan vê a si próprio, depois como vê sua mãe e seu pai, e o que associa a eles. Graças a uma combinação singular de desenhos, textos e recursos tipográficos, vamos conhecendo seus desejos e suas dores, mas sempre de modo unilateral, não confiável. É como se estivéssemos dentro da cabeça do personagem, apanhados pelo furacão dos hormônios, embrenhados na selva dos rancores e dos remorsos, siderados pelas conquistas efêmeras, fustigados por um reflexo que teimamos em recusar — a autoimagem tende a se esfacelar quando finalmente nos dispomos a enxergar pelos olhos do outro.
— A empatia é o sentido mais importante que o ser humano pode aperfeiçoar — disse Ware em entrevista por e-mail ao jornalista mineiro Ramon Vitral. — É o único "superpoder" que temos, e quando a pessoa é quadrinista, artista, escritora, música ou mecânica de automóveis (uma coisa tão importante quanto artista ou escritor), a pessoa sempre tem que tentar entender os outros do jeito mais refinado e clemente que puder. É coisa para a vida toda, que não dá para desistir se quisermos superar nosso histórico vergonhoso de violências, imposições e insensibilidades.