Cesar Ramon Braga Ulloa, 24 anos, de Porto Alegre, não teve um começo fácil, um ano atrás. Depois de perder o emprego no Brasil e ser forçado a trancar a faculdade de Direito – além de o pai, metalúrgico, não poder ajudá-lo por também estar parado –, viu-se obrigado a agir com rapidez. Na internet, leu que muitos brasileiros tomavam o rumo de Portugal. Sem conhecer ninguém no destino, alugou um quarto em Lisboa pela internet e comprou uma passagem só de ida. Em um mês, estava viajando, mas no Aeroporto Internacional Salgado Filho foi obrigado a adquirir também o trecho de volta, sob o risco de não embarcar.
Do primeiro emprego, perduram más lembranças. O gerente do restaurante o provocava:
– E as brasileiras? São tudo putas? Fala para mim como é que é.
Com a situação ainda por se resolver junto ao SEF, Cesar não protestava. Outros colegas conterrâneos passavam pelas mesmas situações. Numa das afrontas mais humilhantes, ouviu:
– Eu gosto de contratar brasileiro porque brasileiro não tem documento, com o que eu pagar vai ficar quieto, o que eu mandar fazer vai fazer. É igual trabalho escravo.
O combinado era que receberia o ordenado no dia 10. Com o passar dos meses, começaram os atrasos: o salário entrava no dia 16, no dia 20...
– Uma hora não aguentei mais e saí de lá – lembrou Cesar, em entrevista no bairro Parque das Nações, num passeio às margens do Rio Tejo ideal para pedalar, correr e caminhar.
É comum que empregados de restaurantes tenham a jornada dividida em duas partes, atendendo às demandas dos horários de almoço e jantar. Entre um e outro, um bom pedaço da tarde acaba ficando livre. No caso de Cesar, responsável por drinks, sobremesas e cafés no Ristorante Pizzeria Raffaello à época da visita de ZH, eram pelo menos 10 horas diárias (chegou a 14 horas, sem receber por horas extras) preparando caipirinhas, caipiroscas, sangrias, sorvetes, panna cottas, tiramisùs – tentações para o diabético, que não resistia e sempre provava um dedinho de suas produções.
– Gosto daqui, o problema é que o salário mínimo é muito baixo. Me surpreendi. Você sai do Brasil pensando: “É euro, né? Vale quatro vezes mais, vou ganhar dinheiro”. Mas aqui você não ganha – reclama. – Vejo eles falando que descobriram (o Brasil), que colonizaram, mas também não os vejo muito melhores do que nós. O que eles fizeram com o dinheiro que pegaram do Brasil? Você não vê um país muito avançado. A Coca-Cola que chega aqui é da Espanha, o desodorante é da França. Você não vê indústria nacional. Se tem fábrica, tem trabalho, desenvolve o país. Portugal é só turismo – avaliou.
Vejo eles falando que descobriram (o Brasil), que colonizaram, mas também não os vejo muito melhores do que nós. O que eles fizeram com o dinheiro que pegaram do Brasil? Você não vê um país muito avançado. A Coca-Cola que chega aqui é da Espanha, o desodorante é da França. Você não vê indústria nacional. Se tem fábrica, tem trabalho, desenvolve o país. Portugal é só turismo.
CESAR RAMON BRAGA ULLOA
Empregado de balcão
Dias depois da entrevista, Cesar mudou de trabalho de novo. Levou sua expertise em bebidas para a Churrascaria Chimarrão, onde entra no racha das gorjetas, o que não acontecia no emprego anterior. Conta, via Messenger, que está mais feliz – tem almoço, lanches e janta grátis no local, com comida brasileira, e se sente mais perto da terra natal, convivendo com os colegas gaúchos, catarinenses e paranaenses. Seu endereço também já é outro: trocou o quarto alugado em uma residência de estranhos, em Moscavide, por um apartamento compartilhado com amigos em Arroios.
Apesar de continuar apertado, o orçamento rende: descontados os gastos com moradia, transporte e supermercado, o jovem segue guardando ou investindo o que sobra em viagens curtas que muitas vezes exigem tomar um ônibus de madrugada, ao final do expediente, para aproveitar a única folga da semana passeando em outra cidade ou país. Recentemente, esteve em Sevilha e Madri, na Espanha. Por onde anda, resgata um hábito quase em desuso nos dias atuais para mandar notícias a Porto Alegre. “Mais uma lembrança de um lugar onde estou passando”, escreve em cartões-postais para os pais, para a irmã e até para o cachorro.
– Digo para a mãe: esse cartão aí dá para ele estragar – diverte-se ele, louco de saudade do yorkshire Pingo, com quem conversa por chamadas de vídeo do WhatsApp.
Longe, a família, orgulhosa, vai compondo um quadro com as belas imagens trazidas pelos Correios. Já receberam também um azulejo típico e um CD de fado. Imigrante como o pai, chileno, Cesar aguarda os próximos meses para decidir se permanece em Portugal, se tenta se estabelecer em outro país da Europa, como Alemanha ou Luxemburgo, ou se atravessa para os EUA – um empecilho seria o inglês, idioma do qual tem parcas noções.
– Eu sempre falava em querer sair, ir para um lugar melhor, mas acho que eles achavam que eu estava só falando. Minha mãe fala que é muita coragem.
Uma pesquisa divulgada pelo Datafolha em junho mostrou que 62% dos jovens entre 16 e 24 anos, faixa etária de Cesar, deixariam o Brasil se pudessem. Na parcela adulta dos entrevistados, 43% manifestaram essa intenção – e o percentual subia para 56% entre os detentores de diploma de curso superior. Na visão geral do levantamento, um total de 70 milhões de brasileiros estaria disposto a ir embora.
Mesmo idioma, comunicação nem sempre fácil
Para a pesquisadora Sónia Pereira, da Universidade de Lisboa, a presença dos brasileiros em Portugal já é encarada com muita naturalidade pelos anfitriões. Do ponto de vista dos portugueses, os imigrantes do Brasil parecem bem adaptados, mas quem os inquire mais a fundo acaba descobrindo dificuldades até surpreendentes, pontua ela.
O idioma compartilhado pelos dois países ilude muitos recém-chegados que pensam que a barreira linguística é inexistente. Enquanto os portugueses entendem claramente o português brasileiro, os brasileiros esbarram no sotaque, nas palavras diferentes para denominar uma mesma coisa e na rapidez da fala dos coirmãos. A incompreensão não é um obstáculo apenas para os novatos – brasileiros com anos de Portugal por vezes seguem tendo problemas para captar na íntegra o conteúdo de um discurso.
Visitando o país pela primeira vez para a realização desta reportagem, me flagrei, mais de uma vez, constrangida com a incapacidade de desfrutar de um diálogo fluido com motoristas de táxi e de Uber e funcionários do comércio:
– Oi?
– Quê?
– Ahn?
– Desculpa, eu não entendi. Pode repetir, por favor?
Outra característica que pode espantar se refere à interação social. Questione um brasileiro se tem algo a comentar sobre a forma como foi atendido no restaurante, na padaria, na loja ou ao abordar um transeunte para pedir informações. Não é raro ouvir queixas sobre falta de educação, mau humor ou má vontade.
– Os brasileiros têm muita dificuldade de entender que não somos como eles são. Parecemos muito mais frios, muito mais secos, muito mais rudes, muito mais brutos. Em geral, os portugueses são assim porque são assim. Não há nada contra os brasileiros – adverte Sónia. – Mas os brasileiros também dizem que o Brasil é muito diferente, as pessoas do Nordeste não têm nada a ver com as de São Paulo ou do Sul – acrescenta.
Os brasileiros têm muita dificuldade de entender que não somos como eles são. Parecemos muito mais frios, muito mais secos, muito mais rudes, muito mais brutos. Em geral, os portugueses são assim porque são assim. Não há nada contra os brasileiros.
SÓNIA PEREIRA
Economista e pesquisadora
Do ponto de vista do mercado de trabalho, a pesquisadora afirma que os profissionais graduados são bem aceitos e solicitados, mas lamenta que ainda haja empregadores que ignorem a legislação das migrações e contratem funcionários não regularizados. No início da década passada, era mais fácil encontrar ocupação sem ter os papéis em dia. Atualmente, não é mais assim. Criou-se uma imagem, segundo a economista, de que alguns trabalhadores estão disponíveis para qualquer tipo de tarefa e que são facilmente exploráveis, suando horas a mais e ganhando menos sem poder reclamar, já que se sentem amedrontados pela possibilidade de sanções e delações às autoridades caso apresentem reivindicações por um tratamento mais igualitário. Muitos se queixam de receber propostas que não seriam feitas a um assalariado português. E Sónia também ratifica a ocorrência de assédio e constrangimento como as mencionadas por Édina da Silva, retratada no início desta reportagem.
– Há muitas brasileiras que se queixam de que são sempre aliciadas a fazer algum trabalho de tipo sexual, mesmo que estejam a se candidatar a outra coisa.