A namorada portuguesa, Sónia Fonseca, 41 anos, não percebe sotaque nenhum no parceiro, mas fica evidente que Paulo Stenzel, 44 anos, há 18 em Portugal, tem um acento local facilmente perceptível a ouvidos do lado de cá. Natural de Porto Alegre, o publicitário, ex-vocalista e produtor da banda Tequila Baby, deixou o Brasil aos 26, de mochila, para viajar pela Europa. Tinha um único objetivo: não voltar.
– Eu via pessoas que chegavam aos 40 com frustrações e que depois tinham milhares de desculpas para não fazer as coisas que queriam ter feito ou achavam tarde. “Agora tenho casa, tenho filho, cachorro, casei...”. Eu pensei: isso não vai acontecer comigo – rememora.
Estabelecido há tanto tempo, Stenzel testemunhou o vaivém dos movimentos migratórios descritos pela economista e pesquisadora Sónia Pereira. Empiricamente, ele identifica duas fases típicas dos que se aventuram a trocar de país. A primeira é a do deslumbramento: para quem não conhece nada, tudo é novidade, e se tem a impressão de que uma vastidão de oportunidades está se oferecendo à exploração. Encantam os pontos turísticos, a comida, o metrô, a percepção de segurança – não sentir o coração acelerar ao sacar dinheiro no caixa eletrônico, teclar no celular na rua sem se expor ao risco de um roubo. É também essa a visão do turista, que passa quase a totalidade do tempo entretido com as belezas imperdíveis.
Num segundo estágio, a fascinação pode se dissipar, e o imigrante depara com as dificuldades do não pertencimento. Como num namoro em que a paixão inicial arrefece, os defeitos se sobressaem e se tornam menos toleráveis. É também aí que lateja a saudade de pessoas, lugares, comidas. O porto-alegrense explica que nessa segunda etapa é possível saber quem tem perfil para morar no Exterior. Quem não tem suporta no máximo dois anos e vai embora. Os que ultrapassam a barreira dos três anos, segundo Stenzel, tendem a ficar. E todos que superam a marca dos cinco ou seis anos e tentam voltar não conseguem porque não se adaptam mais ao berço.
A Porto Alegre que tenho na minha mente já não existe mais. Toda vez que vou aos lugares que frequentava, não são as mesmas pessoas, a experiência não é a mesma, a cidade não é a mesma, as ruas mudaram. Esqueço o nome de ruas. As pessoas de lá já não me permitem pertencer lá, e as pessoas daqui nunca vão me ver como uma pessoa daqui. Mas hoje lido bem com essa sensação de não pertencimento.
PAULO STENZEL
Publicitário
Stenzel se considera maleável, capaz de morar em qualquer cidade ou país. Mas, depois de quase duas décadas fora, ele admite que seria duro abraçar a terra natal, transmutada numa quase estranha.
– Tudo mudou. A Porto Alegre que tenho na minha mente já não existe mais. Toda vez que vou aos lugares que frequentava, não são as mesmas pessoas, a experiência não é a mesma, a cidade não é a mesma, as ruas mudaram. Esqueço o nome de ruas – atesta. – Agora virei a música dos Titãs (Lugar Nenhum): “Não sou de nenhum lugar”. As pessoas de lá já não me permitem pertencer lá, e as pessoas daqui nunca vão me ver como uma pessoa daqui. E não posso simplesmente voltar como se nada tivesse acontecido. Mas hoje lido bem com essa sensação de não pertencimento.
A economista Sónia Pereira, pesquisadora da Universidade de Lisboa, ressalta que também há muita ilusão envolvida no projeto imigratório, mesmo para quem se prepara bem e estuda seu país de destino. É difícil transmitir as dificuldades, com fidedignidade, para quem está longe:
– Agora, com o contexto tão mal no Brasil, há muitas pessoas com vontade de encontrar uma alternativa. E isso faz com que aqueles que vieram, e mesmo que aquilo que pensavam que ia acontecer não tenha acontecido, tenham mais incentivo para ficar porque a comparação com o Brasil é complicada. Também é difícil para quem está lá acreditar que pode ser difícil encontrar trabalho aqui, que não se ganha assim tão bem para viver. Neste momento, o desejo de encontrar uma alternativa à vida no Brasil é muito grande.
Com o contexto tão mal no Brasil, há muitas pessoas com vontade de encontrar uma alternativa. E isso faz com que aqueles que vieram, e mesmo que aquilo que pensavam que ia acontecer não tenha acontecido, tenham mais incentivo para ficar porque a comparação com o Brasil é complicada. Também é difícil para quem está lá acreditar que pode ser difícil encontrar trabalho aqui.
SÓNIA PEREIRA
Economista e pesquisadora
Para Stenzel, muitos brasileiros contribuem com a má reputação que carregamos. Está presente a ideia do tipo espertalhão, que quer tirar vantagem de tudo: torrar o cartão de crédito e ir embora sem quitar a dívida, utilizar o transporte público e não pagar a passagem, alugar um imóvel e sublocá-lo para uma dezena de outros inquilinos, apresentar currículos mentirosos. O publicitário recorda ter sofrido para entrar no mercado por conta dos conterrâneos que distribuíam portfólios falsos.
– É claro que, quando dou essa opinião, estou cometendo a injustiça da generalização. A maioria do pessoal aqui adora o Brasil e a música brasileira, a caipirinha é um sucesso eterno e quase todo mundo sonha em passar férias no Brasil – pondera. – A coisa do português burro também não existe – esclarece.
A quem pretende se arriscar na empreitada além-mar, ele dá um conselho “precioso”: evitar os guetos, não se restringir à convivência com outros brasileiros.
– Isso é péssimo para a integração, para a adaptação, e cria a ilusão do “eles e nós”. Se eu saí, quero estar integrado, quero conhecer pessoas locais. Não fujo de brasileiros, mas não sou amigo só porque é brasileiro. Várias vezes já me convidaram: “Quer ir a uma festa de brasileiros?”. “É só brasileiro?”, pergunto. “É.” “Então, não vou.” Não digo para evitar brasileiros, também tenho amigos do Brasil aqui, só digo que se evite o gueto. Grupos fechados podem criar um sentimento de revolta, acabam indo embora se achando injustiçados, um alimenta a revolta do outro.
(Nota 1 da repórter sobre este dia no Porto, com sua visão de turista, turvada pelo deslumbramento: parecia mesmo facílimo se adaptar a uma vida ali por conta da manhã primaveril de céu azul e temperatura agradável, em um restaurante descolado na orla do bairro da Foz, onde o Douro encontra o Atlântico, quando mulheres de pele alvíssima já exibiam seus biquínis – a água é enregelante até mesmo no verão – e bebericavam drinques em clima de férias. Nota 2, baseada no relato de uma entrevistada: janeiro passado, mês de inverno no Hemisfério Norte, teve apenas três dias de sol. De resto, uma chuva insistente e revoltosa, aliada a um vento implacável na inutilização de guarda-chuvas. Nota 3: o ideal é voltar para uma segunda visita, em outra estação, e pensar melhor antes de fazer a mudança.)