Portugal assiste atualmente ao quarto capítulo dos fluxos migratórios contemporâneos de brasileiros. A onda inicial se deu entre meados da década de 1980 e o final dos anos 1990 e foi marcada por profissionais qualificados, grande parte formada em Odontologia e Publicidade e Propaganda. Descendentes de portugueses também aproveitaram o boom do país à época. A grande onda foi a segunda, entre o fim dos anos 1990 e a primeira metade da década de 2000, que deu enorme visibilidade aos brasileiros na sociedade portuguesa. Aportaram então trabalhadores de pouca educação formal, que preencheram vagas na construção civil, em restaurantes e hotéis, no comércio e como empregados domésticos.
O fluxo foi diminuindo, e quando Portugal passou a sofrer fortemente os efeitos da crise financeira mundial de 2008, sobretudo em 2011, deu-se o inverso: o Brasil usufruía de um bom momento, e os brasileiros começaram a retornar para casa – ao mesmo tempo, portugueses passaram a deixar a pátria também. Quando a maré de prosperidade baixou no Brasil, especialmente com o início e o aprofundamento das intempéries política e econômica, e Portugal começou a sair do sufoco, o movimento em direção ao território português teve seu capítulo seguinte, especialmente a partir de 2015.
Os números mais recentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foram divulgados no mês passado. Em 2017, havia 85.426 brasileiros vivendo legalmente em Portugal, com título de residência ou visto de longa duração – um aumento de 5,1% em relação a 2016 (81.251). Não entram nesta soma os viajantes que ficam no país após a expiração do visto de 90 dias (prorrogáveis por mais 90 em alguns casos). Devido ao grande volume de aspirantes à permanência, o SEF enfrenta dificuldade para processar as solicitações, e as consultas são agendadas para meses à frente, deixando os imigrantes em um limbo – já não são mais turistas, mas ainda não estão regularizados. Esses, portanto, não aparecem nas estatísticas, o que faz do número real de brasileiros em solo português uma incógnita.
Muitos brasileiros vêm para estudar, ter experiência, aumentar sua qualificação, mas também já com a intenção de ver se há possibilidade de ficar, tentar buscar um trabalho português. As universidades portuguesas têm sido bastante receptivas.
SÓNIA PEREIRA
Economista e pesquisadora
Na sequência das nacionalidades mais representadas, aparecem cabo-verdianos, ucranianos, romenos e chineses. É interessante notar que 17% dos cidadãos italianos, em 10° lugar no ranking, são naturais do Brasil. A Embaixada de Portugal em Brasília e o Vice-Consulado de Portugal em Porto Alegre não forneceram informações.
Pesquisadora do Centro de Estudos Geográficos do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e doutora em Geografia Humana, a economista lisboeta Sónia Pereira, estudiosa da imigração brasileira e de outros povos, salienta que os novos dados comprovam a impressão que se tinha de que o fluxo entre as duas nações teve um reforço significativo.
– Os brasileiros são uma parte importante, os segundos, daqueles que obtiveram autorização para investimento, atrás dos chineses. E foram, de longe, os estrangeiros que mais solicitaram nacionalidade portuguesa, com quase 11 mil pedidos. Os cabo-verdianos são os segundos, e só com 3 mil pedidos – analisa Sónia. – Muitos brasileiros vêm para estudar, ter experiência, aumentar sua qualificação, mas também já com a intenção de ver se há possibilidade de ficar, tentar buscar um trabalho português. As universidades portuguesas têm sido bastante receptivas – acrescenta.
Desde 2014, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação, firmou parcerias com 34 universidades portuguesas para o ingresso de brasileiros no Ensino Superior por meio das notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A primeira a assinar acordo com o governo brasileiro foi a prestigiosa Universidade de Coimbra, a mais antiga do país, fundada em 1290 – transferida de Lisboa para Coimbra em 1537 –, e campeã em matriculados de bandeira verde-amarela. O reitor, João Gabriel Silva, sorri ao dizer que a instituição tem um número elevado de brasileiros desde o século 16.
Coimbra tem uma relação ancestral com o Brasil. Os brasileiros fazem parte do DNA da Universidade de Coimbra, desde muitos séculos, mas agora mais do que nunca.
JOÃO GABRIEL SILVA
Reitor da Universidade de Coimbra
Até maio, do total de 23 mil alunos da graduação e da pós-graduação, 2,4 mil eram brasileiros. Trata-se da parcela mais representativa entre todas as nacionalidades: 53,7% dos estrangeiros vêm do Brasil (um aumento de mais de 3% em relação ao ano anterior). No distante segundo lugar, figuravam os italianos, com 8,6% de estudantes.
– Coimbra tem uma relação ancestral com o Brasil. Os brasileiros fazem parte do DNA da Universidade de Coimbra, desde muitos séculos, mas agora mais do que nunca. Coimbra é construída pelos brasileiros e continua a ser construída pelos brasileiros – afirma Silva, em seu gabinete no sisudo prédio da reitoria, de pesadas portas de madeira e corredores labirínticos adornados pela famosa azulejaria nacional, a poucos metros da Biblioteca Joanina, onde morcegos são “funcionários” do turno da noite, voando livres para engolir insetos que possam danificar as páginas das raridades.
Mudei muito desde que vim para cá. Sei que sou responsável por todas as minhas ações, não tem ninguém para culpar. Tem que batalhar porque senão ninguém vai fazer por você.
RAFAELA CASAGRANDE
Estudante de História
Foi pelo Enem que a caxiense Rafaela Casagrande, 21 anos, chegou à Universidade de Coimbra para cursar licenciatura em História em 2016. Aprovada também na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade de Caxias do Sul (UCS), deixou a “mordomia” do lar na serra gaúcha pelo sonho de uma experiência internacional. O investimento é grande: o preço de qualquer curso de graduação na universidade é de 7 mil euros por ano. A jovem está ciente do sacrifício da mãe, que também custeia as demais despesas mensais da filha única. Rafaela mora com o namorado, Giovani Bruno Boff, 22 anos, que embarcou na aventura da parceira e hoje frequenta a Coimbra Business School (Iscac). A mudança para o outro lado do Atlântico também representou, portanto, um novo status na relação.
A adaptação ao país, recorda ela, foi “média”. O maior estranhamento se deu com a gastronomia e a onipresença de peixes.
– Eu gosto muito de comer! Era acostumada com a comida italiana e muita fartura... É muito bom voltar para casa para comer muito. Engordei uns três quilos em duas semanas em dezembro. Tenho saudade de rodízio de pizza, galeto com polenta, massa, queijo frito – e ela solta um “aaaaaah” comprido. – Aqui não tem nada disso. No Brasil, sempre podia sair para jantar, e aqui tenho que economizar o máximo – conta, detalhando que o cardápio doméstico já passou pela fase da pizza e da lasanha congeladas e agora está na temporada da massa pré-cozida em potinhos.
No método de ensino, as diferenças também se mostraram marcantes. Rafaela estranhou a falta de debates em sala de aula e de um componente crítico nos colegas, especialmente em um curso tão propício à discussão. A avalanche de informações passadas pelos professores obriga os alunos a tomarem notas, notas e notas e a mergulharem em uma extensa bibliografia nas horas livres. Nas férias, focada em um ótimo desempenho para conquistar uma bolsa de estudos e aliviar os gastos, Rafaela acordou todos os dias às 7h30min e se dedicou aos livros até o final da tarde, sem conseguir dar conta da demanda.
Apesar das disparidades pontuais, o balanço até agora é positivo:
– Mudei muito desde que vim para cá. A gente ficou mais maduro, sabe se posicionar muito melhor na frente de qualquer dificuldade, aprendeu a se organizar, a ficar realmente independente. Sei que sou responsável por todas as minhas ações, não tem ninguém para culpar. Tem que batalhar porque senão ninguém vai fazer por você.