A gente costuma dar mais atenção aos filmes que disputam a Palma de Ouro no Festival de Cannes, aos astros de Hollywood que lançam, fora de competição, superproduções como Top Gun: Maverick, aos looks do tapete vermelho e às polêmicas deflagradas por algum longa-metragem ou às declarações controversas de algum diretor.
Mas Cannes não é só isso. Entre outras coisas, a mostra francesa também é vitrine para cineastas com um estilo ou uma história menos tradicional, na seleção Um Certo Olhar, e um enorme mercado para jovens realizadores apresentarem projetos, em busca de financiamento ou distribuição, no chamado Marché du Film.
Encerrada no último sábado (28), com o triunfo de Triangle of Sadness, do sueco Ruben Östlund, a 75ª edição do Festival de Cannes contou com a participação da gaúcha Natália Pimentel, 30 anos, cofundadora da produtora Oito e Meio Filmes, que tem no currículo Sirmar: O Lanceiro Negro do Cinema Gaúcho (2018), documentário de Fredericco Restori sobre o ator Sirmar Antunes, e os curtas João e Maria na Cidade (2019), parceria de Restori com Natália, e Sinal de Alerta: Lory F. (2021), sobre a roqueira porto-alegrense morta em 1993, aos 34 anos. Atualmente na fase de finalização do curta documental Carta ao Pai, ela foi ao Marché du Film para mostrar o projeto de seu primeiro longa-metragem, Léo. No texto abaixo, Natália compartilha a sua experiência no sul da França:
"No Dia Internacional da Mulher, logo após receber um prêmio por um dos filmes feitos ainda na faculdade, resolvi checar os e-mails da Oito e Meio Filmes, produtora cofundada por mim junto a meu companheiro de arte e de vida Fredericco Restori. Naquele momento, descobri que meu projeto Léo havia sido contemplado no edital Iecine Primaveras Gaúchas. Gritei, chorei, pulei e demorei a acreditar que aquilo era real. O edital tinha por objetivo a participação de empresas produtoras audiovisuais do Rio Grande do Sul em festivais, laboratórios e mercados audiovisuais. Quando me inscrevi, pesquisei mercados que pudessem ser interessantes e não tive dúvida de que o Marché Du Film, que faz parte do Festival de Cannes, era o lugar perfeito para eu apresentar meu projeto.
Léo é meu filho, um menino de sete anos que nasceu para mudar minha vida. Fui ao Marché em busca de coprodutores e financiadores para realizar o filme, que é uma colagem de memórias de uma mulher, mãe e artista para seu filho. Após duas tentativas de suicídio e meses após a morte de meu pai, descobri a gravidez. Ao dar à luz, passei a enxergar a vida diferente, busquei construir um futuro e decidi ir atrás do sonho de fazer cinema. Depois de anos de sofrimento físico e mental, aos 26 anos fui diagnosticada como portadora do transtorno bipolar. Num percurso nada fácil entre a maternidade, o feminino, a luta para fazer arte, as dificuldades financeiras e meu sofrimento mental, foi no Léo que encontrei possibilidades, esperança e forças para não desistir.
No dia 15 de maio, embarquei rumo a Cannes. Cheguei lá no dia 16, depois de quase 24 horas e duas paradas (uma em São Paulo e outra em Amsterdã). Aterrissei em Nice e de lá peguei um ônibus para Cannes. Como ficaria hospedada em Le Cannet, uma cidadezinha a cinco quilômetros de Cannes, peguei um Uber. O motorista se chamava Karim, e assim que soube que eu era brasileira, colocou sertanejo para eu escutar. Mal ele sabia que eu gosto mesmo é de metal.
Logo que deixei minhas coisas, fui ao mercado, onde ninguém falava inglês, e me perdi no caminho de volta, ou melhor, fiz turismo, pois como meu sogro diz, em viagem não nos perdemos, fazemos turismo. No dia 17, começou o festival, e eu ainda não conseguia acreditar que aquilo tudo era verdade. Na saída do credenciamento, encontrei o campeão de boxe dos pesos pesados (britânico) Tyson Fury e não tive coragem de pedir uma foto, para tristeza do meu companheiro e de nosso treinador de boxe. No primeiro dia, tentei me habituar, conhecer o lugar, os estandes. Já no segundo dia, comecei a maratonar filmes e tentar acompanhar a programação de workshops, painéis e tentar conseguir os concorridos ingressos das mostras especiais de cinema. No meu terceiro dia, eu vi muitos filmes e conheci o pain au chocolat com grand créme, o café com leite deles. Visitei alguns estandes e fiz contato com profissionais.
Também assisti a Deus e o Diabo na Terra do Sol, com direito a fala de Paloma Rocha (filha do diretor Glauber Rocha), cartaz original do filme e gritos de 'fora' ao nosso atual presidente. Chorei litros, foi muito emocionante assistir a essa obra maravilhosa do Cinema Novo restaurada e em Cannes. Espiei o tapete vermelho e enxerguei pelo telão Tom Cruise e o elenco do novo Top Gun. O meu quarto dia foi dedicado a maratonar filmes. No quinto, tive a oportunidade de assistir a God's Creatures (de Saela Davis e Anna Rose Holmer), um filme que entrou para a lista dos meus favoritos, e vi de pertinho a atriz Emily Watson, que está no elenco.
Nesse dia, também tive minha primeira reunião de negócios. Encontrei uma produtora musical inglesa que me procurou para oferecer artistas para a trilha sonora dos futuros filmes da Oito e Meio. No sexto dia, fiquei aguardando até o último minuto para conseguir entrar na sessão de Jerry Lee Lewis: Trouble in Mind. Consegui prestigiar esse baita filme e ainda ver Ethan Coen, um dos meus diretores favoritos. Depois, tive reuniões com alguns players e apresentei meu projeto.
No meu sétimo dia, conheci a praia e comi um sorvete olhando para o mar. Assisti a mais filmes, participei de workshops e marquei consultorias e speed-meetings no estande do Cannes Docs, uma parte do evento com programação exclusiva para documentários e documentaristas. Na minha opinião, foi a melhor parte do festival, com os profissionais mais educados e generosos, que me auxiliaram muito. No meu oitavo dia, depois de economizar muito, resolvi me dar o luxo de ir a uma boulangerie, onde comi uma pizza de queijo maravilhosa e experimentei éclair de chocolate. Fiz mais contatos e apresentei meu projeto. No nono e último dia, participei de um workshop e comi em outra boulangerie (provei brioches e uma torta de pêssego muito gostosa, acompanhada de uma xícara enorme de grand créme). Tive muitas reuniões com players e consultorias também, fiz contatos maravilhosos e atingi uma parte do meu objetivo. Assisti a mais filmes e passei a noite no aeroporto, pois meu voo era no outro dia bem cedo. Muitas 24 horas depois, aterrissei em Porto Alegre. Fui muito bem recebida e revi meu companheiro Fred, meu filho Léo e meus cachorros, Franklin Richards e Flor.
Nesses nove dias em Cannes, além dos contatos profissionais e de conhecer muita gente que também estava lá em busca de realizar seus filmes, constatei que as francesas gostam de pintar as unhas dos pés, mas não as das mãos, o ônibus custa 1,50 euros e é bem pequeno, com uns 20 lugares disponíveis, e mesmo quando cheio é mais confortável do que os de Porto Alegre, os franceses definitivamente não gostam de falar inglês. Vivi com mais dignidade do que no meu país. Nós, artistas, estamos abandonados e lutando para sobreviver, assim como a maioria da população brasileira. Ainda não recebi o dinheiro do edital, portanto, para viabilizar a viagem recorri à ajuda de pessoas próximas. Fiz muitas dívidas e peguei dinheiro emprestado, por isso fizemos uma vaquinha na plataforma Apoia.se. O nome da campanha é Oito e Meio Filmes em Cannes e vai até 10 de junho; qualquer valor é bem-vindo. Eu acredito nos meus sonhos e tenho certeza de que esse foi apenas o primeiro passo em direção a inúmeras outras realizações. Eu quero mostrar para meu filho que ele pode e deve acreditar nos sonhos dele também, afinal, o mundo tá cheio de possibilidades, eu só preciso de uma oportunidade."