A 94ª edição do Oscar será no domingo que vem, 27 de março, em Los Angeles. No total, contando longas e curtas, 53 filmes receberam pelo menos uma indicação ao prêmio concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
Tirando os curtas de animação e de ficção, eu já vi quase todos os títulos. Por isso, me sinto à vontade para indicar, aqui, os 10 que considero melhores. Todos estão (ou estarão nesta semana ainda) em cartaz nos cinemas ou em plataformas de streaming (lembrando que não estão disponíveis os excelentes documentários Fuga e Summer of Soul).
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Ascensão
É um dos cinco indicados ao Oscar de melhor documentário. Estadunidense de mãe chinesa, a produtora e diretora Jessica Kingdon estreia no comando de um longa-metragem com este filme observacional e impressionista — não há entrevistas nem narrações. Ela viajou por 51 locações na China para filmar cenas cotidianas, estruturadas em três temas: trabalho, consumismo e lazer. Em uma jornada visual fascinante, Ascensão demonstra o progresso econômico e a divisão de classes cada vez maior. Começa com as hordas de trabalhadores buscando empregos de baixa remuneração. Depois veremos, entre outros cenários, a linha de montagem de bonecas sexuais de última geração, um curso de boas maneiras nos negócios, escolas de guarda-costas e de mordomos e um imenso e lotadíssimo parque aquático. (Paramount+)
Ataque dos Cães
Com justiça, é o campeão de indicações — são 12: melhor filme, direção (Jane Campion), ator (Benedict Cumberbatch), atriz coadjuvante (Kirsten Dunst), ator coadjuvante (Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee), roteiro adaptado, fotografia, edição, design de produção, som e música original. Realizadora de O Piano (1993), a cineasta neozelandesa faz um faroeste tardio (se passa em 1925) e desconstrutivo. Não espere bangue-bangue: este é um filme extremamente tátil, pleno de silêncios e olhares ora furtivos, ora eloquentes. Forma e conteúdo se combinam: Ataque dos Cães trata de atrito e de atração e é povoado por personagens ambíguos, com desejos sexuais reprimidos que podem levar a situações de perigo. O protagonista é interpretado por Benedict Cumberbatch, o Sherlock da série de TV e o Doutor Estranho do Universo Cinematográfico Marvel, no grande desempenho de sua carreira. Seu personagem, Phil Burbank, estudou na prestigiada faculdade Yale mas preferiu levar uma vida de bronco. Essa vida começa a ser abalada quando o irmão dele (Jesse Plemons) se casa com uma mãe viúva (Kirsten Dunst), que tem um filho adolescente de traços e modos delicados (Kodi Smit-McPhee). Daí por diante, Campion mostra como a masculinidade tóxica pode destruir não apenas tudo em que toca, mas também ser nociva para seu portador. (Netflix)
Drive my Car
Foi o último dos 10 indicados ao Oscar de melhor filme a ser lançado no Brasil. Apesar do nome em inglês, Drive my Car é uma produção japonesa, a primeiro do país a concorrer ao principal troféu da Academia de Hollywood. Também está competindo aos prêmios de melhor diretor, com Ryûsuke Hamaguchi, roteiro adaptado e longa internacional — nessa categoria, já ganhou o Globo de Ouro, o Bafta e o Critic's Choice. O diretor não tem pressa para contar suas histórias. Já fez um filme de quatro horas e 15 minutos e outro de cinco horas e 17 minutos. Drive my Car tem três horas de duração, mas é tão imersivo que poderíamos passar mais tempo junto aos personagens, ouvindo seus longos diálogos sobre paixões, segredos e arrependimentos. Aliás, é tão intimista que realmente nos sentimos muito próximos dos personagens.
O protagonista é Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro que tem sua vida abalada por perdas e traumas. Não por acaso, um dos cenários principais do filme é Hiroshima, cidade arrasada pela bomba atômica em 1945. Yûsuke viaja a Hiroshima para montar a peça Tio Vânia, de Tchékhov. Por causa das regras do festival de teatro, lá não poderá dirigir seu amado e bem cuidado carro, um Saab vermelho com 15 anos de uso e no qual escuta fitas cassete com falas dos espetáculos. Aí, ele passa a interagir com Misaki (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. Ela também é atormentada pela dor e pela culpa. Nas ruas e nas estradas de Hiroshima, um lugar marcado pela morte e pela destruição, mas também pela resiliência e pela reconstrução, Yûsuke e Misaki vão, pouco a pouco, revelando os buracos de suas almas e encurtando a distância. No caminho, surgem curvas dramáticas, sinuosas, mas nunca bruscas, e sempre em direção a algum tipo de cura. (Em cartaz nos cinemas Cine Grand Café, Espaço Bourbon Country e GNC Moinhos)
Escrevendo com Fogo
É outro dos cinco concorrentes ao Oscar de documentário. Dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh, começa explicando, em um letreiro, o sistema de castas da Índia. À margem da hierarquia, estão os dalits: os párias, os impuros, os intocáveis. São dalits as editoras e repórteres do Khabar Lahariya, único veículo de comunicação indiano com comando feminino e foco do filme. Foi fundado em maio de 2002, com sede no Estado mais populoso do país, Uttar Pradesh, situado ao norte e notório pelos crimes contra as mulheres. No início de Escrevendo com Fogo, Meera Devi, repórter-chefe do Khabar Lahariya, está em trabalho de apuração. Na companhia do marido, uma mulher enumera os dias do mês de janeiro nos quais foi estuprada por homens que invadiram sua casa quando ela estava sozinha: 10, 16, 18, 19... A polícia não quis abrir inquérito, diz o casal. Na delegacia, um oficial afirma a Meera que desconhece o caso. (Consta que apenas um a cada quatro denúncias termina em condenação na Índia, país que costuma chocar o mundo com episódios de estupro coletivo, conforme visto no filme de ficção Mom e na série policial Crimes em Déli.) (Disponível para compra ou aluguel em Apple TV, Claro Now, Google Play, Vivo Play e YouTube)
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas
Esse é o meu predileto na categoria de melhor animação. Na trama assinada por Mike Rianda e Jeff Rowe, os Mitchells são uma família que lembra muito, inclusive fisicamente, a dos heróis de Os Incríveis — mas sem superpoderes. A personagem principal é a filha adolescente, Katie, cujo talento (como diretora de animações) o pai não enxerga. Os vilões reforçam o alerta sobre nossa dependência em relação a dispositivos eletrônicos e às redes sociais e sobre a diabólica dobradinha entre comportamento consumista e obsolescência programada — no filme, o mundo vira refém de um celular com inteligência artificial. Além de crítica social, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas tem aventura, drama e muitas piadas, tanto para os baixinhos quanto para os grandinhos (graças a uma série de referências, como as citações musicais de Kill Bill, de Quentin Tarantino). (Netflix)
A Filha Perdida
Em seu primeiro longa-metragem como diretora, a atriz estadunidense Maggie Gyllenhaal concorre ao Oscar de roteiro adaptado por sua versão do romance homônimo publicado pela escritora italiana Elena Ferrante em 2006. O filme é protagonizado pela inglesa Olivia Colman, oscarizada por A Favorita (2018) e, com o perdão da repetição, minha favorita ao Oscar no papel de Leda Caruso, uma professora universitária que, durante suas férias em uma praia da Grécia, fica obcecada por uma jovem mãe (Dakota Johnson) e sua filha. A partir de então, Leda se vê confrontada por memórias dos tempos em que ela própria (encarnada por Jessie Buckley, indicada ao prêmio de atriz coadjuvante) tinha de lidar com suas duas crianças. A trama de mistério e perigo de A Filha Perdida é entrelaçada à abordagem, com despudor, de temas como maternidade, sexualidade, papéis sociais e ambição profissional. (Netflix)
Não Olhe para Cima
Dirigida por Adam McKay, a comédia do negacionismo está indicada a quatro Oscar: melhor filme, roteiro original, edição e música original. Não Olhe para Cima nasceu como uma sátira sobre a descrença nas mudanças climáticas e no aquecimento global. Mas acabou se tornando uma alegoria da pandemia de covid-19. Na trama, Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence interpretam dois astrônomos empenhados em alertar a humanidade sobre a aproximação de um cometa gigantesco que, dentro de seis meses, vai se chocar com a Terra. Eles conseguem uma audiência com a presidente dos EUA (Meryl Streep). Mas interesses políticos são sobrepostos a informações científicas. Depois, também vão pesar os interesses econômicos de um bilionário excêntrico tipo Mark Zuckerberg ou Elon Musk (o sinistramente engraçado Mark Rylance). Então, os dois cientistas resolvem botar a boca no trombone. Procuram um programa de TV apresentado pelos personagens de Cate Blanchett e Tyler Perry, que são incapazes de abandonar o olhar fútil e a positividade tóxica diante de uma notícia grave. Mas os espectadores também não colaboram: estão mais atraídos pelo término do namoro entre uma cantora (vivida por Ariana Grande) e um rapper. Só dão atenção aos astrônomos quando a astrônoma dá um piti no ar, o que instantaneamente vira meme. Aqui, o humor não funciona como porta para acesso ao debate, mas como fuga da realidade. Daí o título do filme: se você não olhar para cima, se você não olhar para o cometa, se você não olhar para o problema, está tudo bem. (Netflix)
No Ritmo do Coração
CODA, o título original, é a sigla de Child of Deaf Adults, filho de pais surdos. Trata-se da versão da cineasta estadunidense Siân Heder para o filme francês A Família Bélier (2014). A premissa é a mesma, trocando uma fazenda por uma cidade pesqueira. A adolescente Ruby (papel de Emilia Jones) é a única ouvinte e falante entre os Rossi — todos interpretados por atores surdos: Troy Kotsur (o pai), Marlee Matlin (a mãe) e Daniel Durant (o irmãos mais velho). Atraída por um colega de escola que canta, Miles (Ferdia Walsh-Peelo), resolve se inscrever nas aulas do coral comandado pelo professor Bernardo Villalobos (o mexicano Eugenio Derbez, equilibrando humor, rabugice e ternura). A situação acabará criando um dilema doloroso para Ruby, abrindo portas para temas como amadurecimento e pertencimento. Comovente e também divertido, No Ritmo do Coração é favorito ao Oscar de ator coadjuvante (Troy Kotsur) e disputa ainda os prêmios de melhor filme e roteiro adaptado. (Amazon Prime Video)
A Pior Pessoa do Mundo
A Noruega está em sua sexta indicação ao Oscar de melhor filme internacional. A forte concorrência (Drive my Car, A Felicidade das Pequenas Coisas, Fuga e A Mão de Deus) atrapalha a maior chance de o país da Escandinávia levar o troféu pela primeira vez. O título dirigido por Joachim Trier (de Oslo, 31 de Agosto) rendeu à protagonista, Renate Reinsve, o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. A Pior Pessoa do Mundo foi destacado pela Academia de Hollywood também na categoria de roteiro original. Trata-se de uma encantadora subversão das comédias românticas e um provocador retrato dos millenials. Narrado em um prólogo, 12 capítulos e um epílogo com durações e humores variados, expõe as angústias, as buscas e a inconstância dessa geração, que é encarnada pela personagem de Reinsve, Julie. Beirando os 30 anos, ela sai da faculdade de medicina para a psicologia, depois se descobre fotógrafa, mas acaba como vendedora em uma livraria. Suas desventuras incluem o romance com um quadrinista quarentão, Aksel (Anders Danielsen Lie) — responsável por reflexões argutas sobre arte e finitude — e o flerte com o jovem Eivind (Herbert Nordrum), que rende uma das sequências mais inebriantes da temporada. Ah, e o filme termina com uma versão em inglês de Águas de Março (Tom Jobim), Waters of March, na voz de Art Garfunkel. (Estreia nos cinemas prevista para o dia 24/3)
A Tragédia de Macbeth
Escrita por William Shakespeare entre 1603 e 1607, Macbeth é uma peça tão atemporal no retrato que faz da ambição humana, da corrupção do poder e do peso da culpa, que está sempre ganhando novas adaptações. A atual é a primeira produção que o cineasta estadunidense Joel Coen realiza sem a companhia do irmão, Ethan Coen, com quem assinou, entre outros títulos, Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991), Fargo (1996) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007). Por um lado, em A Tragédia de Macbeth o diretor mantém a ambientação medieval e preserva o texto original, com a linguagem poética, irônica e plena de metáforas concebida por Shakespeare. Por outro, como um reflexo de nossa época, mais inclusiva, escala um punhado de atores negros para personagens importantes — a começar pelo protagonista, Denzel Washington, e por Corey Hawkins, que interpreta Macduff.
Todo o elenco saboreia as palavras e sabe encorpar o silêncio, sobretudo Washington (em sua décima indicação ao Oscar, contando o trabalho como produtor), Frances McDormand (sua esposa, Lady Macbeth), Kathryn Hunter (no papel das três bruxas que profetizam a ascensão e a queda do então heroico e virtuoso barão de Glamis) e Bertie Carvel (Banquo). Também indicada ao Oscar, a direção de fotografia, em um deslumbrante preto e branco, remete a clássicos como A Paixão de Joana d'Arc (1928) e O Sétimo Selo (1957), enquanto a cenografia lembra o Expressionismo Alemão. E como apontou o crítico Marcelo Hessel, "Joel Coen esmaga na encenação a pretensa grandeza dos homens. Seu filme, enquadrado em 4x3, está cheio de momentos que apequenam os personagens, seja nos close-ups em grande-angular, no tamanho desproporcional dos cenários, ou na solução claustrofóbica de conceber esses cenários como becos sem saída ou vias de mão única". Não por acaso, o filme briga também pelo Oscar de design de produção. (Apple TV+)
Bônus: Onde Eu Moro/Três Canções para Benazir
Concorrem em uma categoria do Oscar muito pouco badalada, a de melhor documentário em curta-metragem. Onde Eu Moro pode valer o prêmio a um brasileiro. É o carioca Pedro Kos, que divide com o estadunidense Jon Shenk a direção deste filme humanizante sobre pessoas que vivem nas ruas, nos parques e em abrigos de Los Angeles, San Francisco e Seattle. Três Canções para Benazir, dirigido pelo casal Elizabeth Mirzaei e Gulistan Mirzaei, conta a história de um jovem afegão recém-casado que tenta entrar no exército para ter uma vida menos miserável. É tão lindo quanto arrasador. (Ambos na Netflix)