Deserto Particular (2021), que tem sessão de pré-estreia nesta quarta-feira (24), marcando a abertura do Cine Grand Café, em Porto Alegre, e entra em cartaz nos cinemas na quinta (25), foi o escolhido do Brasil para tentar uma vaga no Oscar 2022 de melhor filme internacional. Os 15 finalistas entre 93 candidatos serão conhecidos no dia 21 de dezembro, e a lista dos cinco indicados sairá em 8 de fevereiro — a cerimônia de premiação da Academia de Hollywood está marcada para 27 de março.
O longa-metragem é dirigido pelo ex-agente penitenciário baiano Aly Muritiba, 42 anos, que em 2021 também lançou a série documental O Caso Evandro, disponível no Globoplay. No cinema, trata-se de um vencedor do Candango de direção no Festival de Brasília por Para Minha Amada Morta (2015) e de quatro Kikitos em Gramado: melhor filme e melhor roteiro, coescrito por Jessica Candal, com Ferrugem (2018) e melhor diretor e melhor roteiro com Jesus Kid (2021). Deserto Particular valeu ao cineasta o troféu do público em uma mostra paralela do Festival de Veneza, a Venice Days.
Como o título sugere, a história escrita por Muritiba e Henrique dos Santos começa com o protagonista, Daniel (interpretado por Antonio Saboia, o forasteiro do Sul em Bacurau), correndo em uma noite deserta de Curitiba. Em uma narração em off, descobrimos que ele está completamente apaixonado:
— Não era só o ar que me faltava. O que me faltava era você.
Mas quem é Daniel, o que faz da vida, por que está com um braço engessado? E a quem ele está se dirigindo?
Muritiba vai desvendando a trama e o drama aos poucos. O ritmo imersivo é potencializado pela direção de fotografia do venezuelano Luis Armando Arteaga, que investe bastante em sombras e enquadramentos enviesados — traduções visuais das angústias e das dúvidas do personagem —, e pela edição da portuguesa Patricia Saramago, que não tem pressa para cortar as cenas, como a indicar que aquela é uma existência em suspenso. Os dois recursos, o da penumbra e o da contemplação, também contribuem para o clima onírico e sensual de Deserto Particular.
Afastado do trabalho — o motivo, mais uma vez, só será informado mais adiante e em conversas cifradas — e preso a uma rotina que inclui cuidar do pai doente, Daniel escapa via celular. O WhatsApp é o território mágico onde troca mensagens com Sara e manda nudes. São os raros momentos em que esboça um sorriso (ou quase isso).
Até que ela para de responder. Some. Daniel tem apenas um caminho a seguir: pegar o carro e viajar até Sobradinho, no interior da Bahia.
É só então, após mais ou menos meia hora de filme, que os créditos aparecem na tela, sinalizando que agora sim começa a aventura do protagonista. É tanto uma jornada Brasil adentro quanto uma viagem de autodescobrimento. À procura de Sara, Daniel vai conhecer um outro Daniel. E foi tudo culpa do amor, como diz o título da canção composta por Diana na década de 1970 que embala uma cena em uma boate baiana ("Não sei por que / Esse amor existiu entre nós / Agora só resta esquecer"). Foi um eclipse total do coração, nome em português de outra música importante em Deserto Particular, sucesso lançado pela cantora Bonnie Tyler em 1983.
Os versos sofridos e desesperados ("De vez em quando eu desmorono", diz a letra de Total Eclipse of the Heart) refletem a confusão sentimental de Daniel, assim como o cenário de Sobradinho, cidade erguida em torno de uma hidrelétrica, remete ao represamento emocional. O personagem permite a Aly Muritiba abordar os preconceitos e as ilusões que ora nos guiam, ora nos desorientam na sinuosa estrada da paixão e da sexualidade.
Deserto Particular é um filme muito bonito e, como o próprio diretor ressaltou em entrevistas, sua escolha para pleitear uma indicação ao Oscar também tem um viés político:
— É um filme de amor, feito num país conflagrado, dividido, que vem sido regido pelo discurso do ódio. Ter, nesse contexto, um filme de amor como o escolhido para representar nosso país é uma bela mensagem.
Se eu fosse a Academia Brasileira de Cinema, porém, teria eleito outro filme igualmente premiado no Festival de Veneza: 7 Prisioneiros (2021), melhor título estrangeiro da mostra paralela Sorriso Diverso, dedicada a obras com temática social que valorizem a diversidade. Também poderia ser A Última Floresta (2021), de Luiz Bolognesi, que recebeu o troféu do público na mostra Panorama do Festival de Berlim e que trata de um tema muito caro à comunidade internacional: a destruição da Amazônia por garimpeiros e a sobrevivência dos povos indígenas.
Pode-se dizer, contudo, que a seleção de Deserto Particular foi uma escolha coerente. Nos últimos anos, a entidade vem preferindo filmes mais intimistas, com menos (mas náo desprovida de) voltagem política do que alguns de seus rivais. Para o Oscar 2020, A Vida Invisível superou Bacurau. Para a edição de 2021, o documentário Babenco — Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou bateu, entre outros, dois títulos sobre racismo: M8 e Todos os Mortos. Nem A Vida Invisível, nem Babenco chegaram à lista dos finalistas.
7 Prisioneiros reunia vantagens competitivas na busca por uma vaga no Oscar de melhor filme internacional, o que não acontece desde 1999, quando Central do Brasil disputou a estatueta — de lá para cá, fomos representados pelo curta Uma História de Futebol, em 2001, por Cidade de Deus, em quatro categorias (direção, roteiro adaptado, fotografia e edição) em 2004, pelo longa de animação O Menino e o Mundo, em 2016, e pelo documentário Democracia em Vertigem, em 2020. Cinco pontos sugerem que a campanha por uma indicação poderia ser mais bem-sucedida do que a de Deserto Particular:
1) O filme consegue ser brasileiro e universal ao contar uma história sobre trabalho escravo.
2) O diretor de 7 Prisioneiros, Alexandre Moratto, foi criado nos EUA e ganhou, com Sócrates (2018), o prêmio Someone to Watch no Independent Spirit Awards, voltada a obras independentes.
3) O elenco traz Rodrigo Santoro, o ator brasileiro de maior sucesso em Hollywood depois de Sonia Braga.
4) Na produção, há dois nomes de prestígio internacional: o brasileiro Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel (2005), com quatro indicações ao Oscar (Rachel Weisz ganhou como melhor atriz) e Dois Papas (2019), que disputou três estatuetas, e o estadunidense-iraniano Ramin Bahrani, concorrente ao Oscar de melhor roteiro adaptado por O Tigre Branco (2021).
5) E é um lançamento da Netflix, que vem sendo a campeã de indicações. Em 2020, tinha 24 contra 23 da Disney e 20 da Sony. Em 2021, foram 35, contra 12 do Amazon Studios e oito da Warner.
Mas esse é um olhar pragmático. Cinema também envolve emoção, campo em que, como Deserto Particular nos mostra, as regras não são tão claras. Espero que eu morda a minha língua em 21 de dezembro.