Não é estranho que tantos viajantes sonhem traçar o roteiro de Ushuaia — no extremo sul da América do Sul —, ao Alasca, um dos 50 Estados norte-americanos, com 5% de seu território recoberto por geleiras e chamado de a "última fronteira". É um desafio e tanto percorrer esses mais de 17 mil quilômetros entre um ponto e outro, seja da forma que for. Na semana passada, mostrei o projeto de Ale & Duda, do GetOutside, que iniciaram sua rota em 2020 e, ainda que impedidos pelo fechamento das fronteiras na pandemia, atingirão um dos objetivos, o Alasca, neste mês de junho.
Agora é a vez e Tais e Luiz que, assim como o outro casal, viajam a bordo de um motor home. Tais Ires Rancan, 31 anos, e Luiz Vinícius Canei, 31, abandonaram os respectivos empregos, o apartamento de quatro dormitórios e a vida confortável em Farroupilha (RS) para traçar essa mesma rota. O nome do projeto deles é um trocadilho com a forma com a qual decidiram se mover e viver: Viajo de Casa. Na estrada desde julho de 2022, por enquanto palmilham o Brasil de Sul a Norte — já haviam passado por 10 Estados quando conversamos e eles se encontravam em Maceió.
O sonho dos dois, juntos há quase oito anos, tem um marco inicial: começou em 2018, com a primeira viagem aérea de Tais, aos 27 anos. E não foi logo ali, não. Ela acompanhou Luiz no desejo que ele tinha de visitar o Japão, após se conhecerem na empresa em que ela trabalhava como designer e para a qual Luiz prestava serviço como técnico em informática. Ao ir para o outro lado do mundo, Tais, que até então só havia chegado até Santa Catarina, acabou picada pela mesma mosca viajante que já contaminava Luiz desde muito cedo.
Pensaram, os dois, em várias formas de viajar — inclusive testando algumas — e economizaram antes de lançar-se ao projeto em que estão metidos até a medula com um roteiro delineado: primeiro o Brasil, depois, de Ushuaia ao Alasca e, por último, uma volta ao mundo sem data para acabar.
Como se sustentam
Além das economias, trabalham como free lancers, cada um na sua respectiva atividade. Afirmam gastar menos na estrada do que gastavam na vida com residência fixa. E reforçam que, na estrada, não estão em férias — não passeiam todos os dias nem comem fora. Como não têm patrocínio, costumam fazer parcerias para os passeios e visitas.
Perrengues a bordo e no caminho
Além de brincar com a dificuldade de conseguir erva-mate para o chimarrão depois de o estoque acabar, a principal reclamação é o calor. É que eles prepararam o motor home de oito metros quadrados para o frio, mas não para altas temperaturas. O jeito é, durante o dia, buscar locais com ar-condicionado para trabalhar. Entre os perrengues, descrevem, rindo, o dia em que o motor home atolou e parou de funcionar, em Ilhéus, na Bahia. Abrigaram-se por dois dias numa fazenda de cacau. E surpreenderam-se com a solidariedade dos seguidores do Instagram que tentaram ajudar, inclusive fazendo chamadas de vídeo. Apesar de terem ficado felizes com o apoio, não conseguiram resolver o problema sozinhos e levaram mais de uma semana para consertar o veículo.
A rotina
O casal não tem uma rotina definida, por conta dos imprevistos e das mudanças que a rota impõe — no Nordeste, por exemplo, acordam muito cedo e dormem próximo da meia-noite. Como o trabalho é eventual, é ele também que dita o dia a dia, assim como o clima, já que dependem da energia gerada pela placa solar para carregar as baterias. De tempos em tempos, dedicam-se à edição do conteúdo que os dois produzem para as redes sociais. Estacionam o veículo na rua ou em postos de gasolina, evitando lugares ermos ou campings, que têm custo extra. A bordo, não há uma divisão exata das tarefas: Luiz cozinha mais do que Tais — "para compensar o passado" — e ele também dirige um pouco mais, mas só por que fica enjoado como caroneiro. Nunca dormiram em hotéis desde a partida. Em Salvador, estacionaram no condomínio dos pais de amigos, que ofereceram um quarto, mas eles preferiram dormir no motor home. Não sentem falta de um lugar maior, mas se ressentem do fato de não haver refrigeração e de não contarem com um micro-ondas para as refeições rápidas.
A escolha do próximo destino
Antes de começar a viajar, pesquisaram todos os lugares que queriam conhecer e traçaram uma linha que, por enquanto, seguem com poucos desvios, alguns motivados por pessoas encontradas no caminho, em viagem ou não — surpreenderam-se, aliás, com a quantidade de gente se deslocando de motor home. Como eles pretendem chegar a Ushuaia antes do inverno em 2024, ainda não decidiram se vão completar todos os 27 Estados brasileiros — metas certas, no Nordeste/Norte do país, é visitar os Lençóis Maranhenses e subir o Monte Roraima. Depois, querem descer pelo Centro-Oeste e chegar a Farroupilha para visitar a família antes de empreender a parte mais desafiadora de sua viagem, a rota de Ushuaia ao Alasca.
O bom de viver viajando
Pensavam que o melhor seriam os lugares, mas descobriram que são as pessoas.
— Conhecemos viajantes ou locais há dois ou três dias e já parecem anos — diz Luiz.
O ruim de viver viajando
A preocupação com coisas básicas — luz, água, internet, lugar para dormir — os deixava tensos no início, mas foram se habituando.
O que mais impressionou até agora
A Chapada Diamantina surpreendeu. Não só a paisagem, mas as pessoas, muito receptivas. É um lugar onde talvez morariam.
O futuro
A viagem não tem data para acabar e eles não querem mais viver uma vida "fixa". A ideia é permanecerem nômades, ainda que tenham ouvido que, após alguns anos na estrada, as pessoas cansem e queiram se fixar pelo menos por um tempo.
Um pouco sobre o veículo
- Tem painel solar de 535 watts que abastece duas baterias de 220 amperes
- A caixa d'água de 220 litros é abastecida por uma mangueira (autonomia para 5 dias)
- O isolamento térmico do motor home é de poliuretano. Não há ar-condicionado, mas conta com aquecedor a diesel
- Há chuveiro quente/frio e um porta-potti (vaso portátil)
Para seguir: @viajodecasa