Quando eu era criança, ia de ônibus com minha mãe da nossa quase aldeia até Encantado, a maior cidade da redondeza. Aquela viagem interminável de 40 quilômetros por estrada de terra tinha seu fim anunciado quando apontava o prédio de quatro andares do Moinho Sangalli e, à esquerda, a ponte de ferro. Que alegria tomava conta de mim!
O tempo passou, a relação com a distância mudou e, recentemente, aquele mesmo local, transformado em restaurante e lugar de eventos — o Moinho 332, à beira da rodovia que o denomina — se tornou ponto de encontro familiar, com espaço amplo e verde para as crianças brincarem na área externa, comida boa e aconchego no lado de dentro.
Mas veio a famigerada enchente de maio e tudo virou sinônimo de catástrofe no Vale do Taquari e em boa parte do Estado. Sobrou pouco da imagem daquele complexo de gastronomia e lazer, inaugurado em 1º de dezembro de 2022 — além do prédio antigo, que os proprietários pretendiam transformar em hotel, havia o lago, o imenso gramado, o pomar, duas construções e dois deques capazes de abrigar até 400 pessoas, palco de casamentos, aniversários, formaturas, jantares temáticos.
A água e toneladas de madeira arrastaram o que havia no caminho, de mesas e cadeiras às quase mil garrafas de vinhos e espumantes da adega, passando pelos equipamentos e pelas placas de energia solar, instaladas ao custo de R$ 1,5 milhão. Nem o pequeno santuário com a imagem de Santa Catarina escapou à fúria da natureza. A principal construção do moinho não sofreu avarias, mas o pomar, as árvores centenárias e boa parte da casa antiga não resistiram. Do interior do restaurante sobrou quase nada — restaram umas 10 cadeiras, quatro ou cinco mesas, no máximo 30 garrafas de vinho. A estrutura das placas solares virou ferro retorcido, assim como os carregadores para os carros elétricos (eram dois, instalados por R$ 70 mil). Também se foi o estoque de carnes, de outros insumos e de bebidas.
Só dias depois da tragédia os proprietários puderam conferir o tamanho do estrago do local, já que não conseguiam acessá-lo. A água levou também uma das pontes — a histórica, de 1928, restaurada em 2019 — e a segunda, sobre a RS-332, teve as cabeceiras arrancadas. Não havia luz, nem sinal de telefone ou internet. Vídeos enviados pelos vizinhos davam o tom do desastre: o cenário era de terra arrasada. Pouca coisa permanecia intacta.
O que a enchente não conseguiu abater, porém, foi a disposição de manter de pé o sonho da família Dellazeri — Geovani, 47 anos, Andreia, 44, Guilherme, 25, e Júlia, 17. Depois daquela madrugada em que o Arroio Jacaré se transformou num rio furioso, no dia 5 de maio eles já anunciavam numa rede social: “Voltaremos ainda mais fortes”.
Esse retorno, agora, Geovani projeta para daqui a quatro meses. Por enquanto, deu férias coletivas aos 15 funcionários — nos finais de semana, a equipe costumava ganhar mais cinco pessoas, já que o Moinho 332 funcionava de quarta a sexta-feira para jantar e aos sábados e domingos também no almoço — e começaria no final de semana a remover o entulho e a lama. Só de madeira ele calcula 500 cargas. De lama, nem sabe quanto.
Esperou para contratar o maquinário, privado, já que, por ironia do destino, há cerca de dois meses concilia o papel de empresário com o cargo de secretário de Obras, função que, desde o início da enchente, consome no mínimo 12 horas de trabalho diário, sete dias por semana.
Mas vale a pena, depois de ter investido tanto, voltar a empenhar tempo e dinheiro no mesmo lugar? Faço essa pergunta a Geovani, e ele não titubeia ao responder que sim, embora a catástrofe os tenha atingido no momento em que mal começavam a ter retorno do investimento, deixando um prejuízo ainda não apurado, mas que deve passar dos R$ 3 milhões. Além do moinho e das duas casas existentes, mantidas e reformadas, eles haviam construído e equipado duas cozinhas, construído os deques, o lago e ajardinado todo o entorno.
— Eu acho esse lugar lindo. Sempre sonhei com algum projeto na área do turismo, mesmo antes de surgir o Cristo Protetor — diz ele, referindo-se ao complexo que Encantado está erguendo nos últimos anos e que movimenta o turismo regional.
A seis quilômetros da cidade, o Moinho 332 atraía gente dali, mas principalmente de fora — cerca de 70% do público, acredita Geovani. Os turistas vinham de outros municípios do Vale do Taquari, de Porto Alegre e da Região Metropolitana. Nas enchentes de 2023, quando a água não ameaçou o complexo, a queda de uma ponte na vizinha Muçum afastou os visitantes constantes da Serra, mas compensaram com aqueles vindos de Erechim, Passo Fundo, Soledade e de outras cidades do norte gaúcho. Como eles sabem de onde vêm os clientes? É que eles sempre perguntam; fazem um cadastro para convidar para os eventos temáticos, que começavam a ganhar fama.
— Estávamos felizes — diz Geovani, num raro momento em que usa o verbo no passado.
Não faltavam motivos. Só no Dia das Mães de 2023, serviram 350 almoços. Os números sempre eram superlativos e o plano, após o aprendizado inicial, focava cada vez mais em eventos, ênfase que pretendem retomar. Querem deixar tudo como era antes, restaurando as estruturas, refazendo o jardim, mantendo o cardápio e os funcionários.
E se acontecer uma nova enchente? Eles esperam que não ocorra, mas vão estudar obras de contenção e trabalhar com prevenção.
— Foi muito chocante. Ainda estamos lidando com isso, mas no futuro vamos estar mais preparados — garante Geovani.
Uma campanha necessária
A Associação dos Municípios de Turismo da Região dos Vales (Amturvales) – com apoio de entidades como Sebrae e Emater, entre outras – lançou a campanha Somos do Vale, com foco na recuperação do turismo no Vale do Taquari. A ideia é revitalizar o setor na região, principalmente os empreendimentos atingidos pela enchente, trabalhando na reconstrução dos locais, no treinamento dos empreendedores e na promoção do destino, além de incentivar o senso comunitário e o orgulho local. Materiais gratuitos sobre a campanha estão disponíveis aqui.