O jornalista Leonardo Vieceli colabora com a colunista Marta Sfredo, titular deste espaço.
Alto nível de informalidade no mercado de trabalho e gargalos na estrutura de atendimento médico são obstáculos para o Brasil combater a crise do coronavírus, diz a economista Gisele Braun, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Natural de Porto Alegre, Gisele especializou-se na área de economia da saúde. Formada pela UFRGS em 2007, viveu em Portugal, onde concluiu mestrado e doutorado. Em 2019, passou a morar na Guatemala em razão do trabalho no BID. Em meio à pandemia, ela permanece na capital gaúcha.
Como é o trabalho no BID?
Estou no BID desde março de 2019. A sede do banco é em Washington, mas está presente nos países na América Latina. Trabalho na Guatemala. Faço acompanhamento econômico do país. A pobreza lá é superior a 60%. O sistema de saúde é mínimo. Então, fazemos alguns estudos mais específicos nessas áreas.
Como descreve o atual momento para a economia e a saúde no Brasil?
A crise sanitária facilmente se transformou em uma crise econômica. A doença é nova. A única medida de contenção agora é o distanciamento social, que teve efeito na atividade econômica. O Brasil tem parcela significativa (de trabalhadores) na informalidade, e o impacto tende a ser maior por isso. A crise destacou problemas sociais e econômicos que já tínhamos, mas íamos levando adiante.
Outra coisa que ficou visível é o quadro do sistema de saúde. Países com capacidade de resposta mais eficiente podem ter períodos de lockdown menores ou nem mesmo medidas tão severas. A crise afetou o Brasil de modo desigual em relação a outras regiões, por termos economia bastante informal, baixa confiança em instituições e nos cidadãos. Além disso, o sistema de saúde já vinha com falhas na capacidade de resposta.
Por quê?
A média nacional é de cerca de 2,1 camas de hospital para cada grupo de mil habitantes. Há Estados que têm mais ou menos. O Rio Grande do Sul tem mais. São 2,7, conforme dados de 2017, do IBGE. Agora, calculando essa proporção por camas do SUS, o nível diminui no Rio grande do Sul, para 1,7. Quer dizer, temos um problema, o sistema de saúde é universal, mas a capacidade de resposta fica aquém das necessidades médias de uma população. Imagine em uma situação de pandemia.
A crise fez a gente olhar para os problemas e repensar não só o novo normal de convivência pessoal. Estamos vendo entidades privadas se organizando para colaborar com a construção de hospitais. Essa é uma questão de racionalidade econômica. É necessário ter uma população saudável para existir capital humano, produzir e, ao final da linha, gerar crescimento.
No Brasil, a desigualdade social e a informalidade no mercado de trabalho já preocupavam antes da pandemia. Com a crise, o quadro tende a se agravar?
Sim. A desigualdade tende a aumentar em um cenário em que não existam políticas públicas efetivas para minimizar diferenças. Por exemplo, uma parte da população não tem acesso a meios eletrônicos e não consegue assistir a aulas na crise do coronavírus. Isso vai ter reflexos nas gerações futuras. Pode parecer só um ano de escolaridade, mas faz diferença. Na informalidade, pessoas tendem a receber salários inferiores. Assim, comem de maneira pior, o que pode afetar níveis de saúde e a produtividade do trabalho.
Como avalia as medidas adotadas pelo Brasil para amenizar os impactos da crise?
Têm sido muito semelhantes ao que foi feito em outros países em termos qualitativos, e não necessariamente em termos quantitativos. São medidas de distanciamento social, sanitárias, fiscais, monetárias, de apoio às famílias e de auxílio às empresas. O distanciamento social não foi feito no Brasil de forma tão incisiva como um lockdown, até porque as condições não permitem. Não dá para fechar em casa uma pessoa que vive com o salário alcançado por dia.
As medidas de distanciamento, em relação a outros países da América Latina ou da Europa, foram mais brandas. Não teve um horário para voltar para casa, mas houve incentivo ao teletrabalho, eventos foram cancelados. As medidas de saúde, por parte do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais, foram alinhadas com o que foi feito fora do país.
Em qual sentido?
Houve a criação de sistemas de informação. Em Porto Alegre, por exemplo, carros passam nas ruas para informar as pessoas, pedindo para ficarem em casa. Há um guia para a população. Tem uma linha de atendimento telefônico, que é o 136 (Disque Saúde). Esse tipo de atendimento também é bom para lidar com outras doenças. Assim, as pessoas podem não ir a um hospital para tratar de um problema que pode ser atendido em um posto de saúde.
Com relação ao apoio às famílias, o "coronavoucher" é um tipo de transferência feito em quase todos os países da América Latina. A intenção é proteger as famílias. Foi até certo ponto baixo, mas suficiente para necessidades básicas. Portanto, vejo que a medida foi inteligente e alinhada com as recomendações internacionais. Por parte das empresas, tentou-se conceder empréstimos com custo inferior no sistema bancário. Aparentemente, essa ação não tem sido suficiente.
As medidas fiscais vieram alinhadas com as de outros países, ou até maiores. O Brasil tem uma particularidade. A dívida pública é praticamente 100% interna. Então, o país consegue se autofinanciar para expandir o gasto. Não havia outra resposta. Claro, daqui a cinco anos, nós, economistas, podemos olhar para trás e dizer que o país tenha se endividado muito. Mas, neste momento, só faz sentido pensar em sustentabilidade da dívida pública no longo prazo se o longo prazo existir. Se as pessoas morrerem, não faz sentido. É a resposta lógica. Em termos de medidas monetárias, destaco a queda na taxa básica de juro. É uma ação para tentar reativar a economia. A crise traz oportunidades para avançar.
Quais?
O processo de teletrabalho, por exemplo, foi acelerado. Na área da saúde, a telemedicina tem avançado a passos largos. Gostamos de ter consulta frente a frente com o médico. Mas, em cenário de pandemia, pacientes se viram obrigados a usar a telemedicina. Vejo o avanço com bons olhos. Espero que venha para ficar, mas não para todos os procedimentos. A telemedicina pode contribuir.