Com as credenciais de quem já foi economista-chefe da XP Investimentos e secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, Zeina Latif, sócia da Gibraltar Consulting, segue no mesmo lugar de sempre: avaliando a política econômica do governo de plantão. Fez críticas ao governo anterior e também faz ao atual, democraticamente.
Qual é seu diagnóstico sobre a turbulência dos últimos dias?
É a crônica de uma morte anunciada. Foi construída, acrescentando camadas de fatores que geraram esse pânico. Já existia um mal-estar com a percepção, não equivocada, de baixo compromisso do governo com o ajuste fiscal. Em outubro, surgiu a informação de que seria apresentado um plano de contenção de gastos porque ficou claro que o arcabouço só funciona assim. Foi importante esse reconhecimento. Até então, o governo colocava todas as fichas no aumento de arrecadação. Ainda que as medidas fossem corretas, como as que buscaram isonomia de tributação, o fato é que qualquer regra fiscal que se preze tem de ter contenção de despesas. É como alguém que vai fazer dieta, mas prefere só comprar roupa mais larga, ou seja, só arrecadar mais. Então, esse reconhecimento, ainda que tardio, foi importante.
O que deu errado?
Na esteira da deterioração da credibilidade fiscal do governo, surgiu esse aceno para depois da eleição. Foi preciso esperar muito e, quando, veio, inclui a medida de cálculo político de mexer no Imposto de Renda. A primeira reação foi de espanto, 'esperamos tanto para isso'? O que seria um movimento positivo virou negativo. E ainda com o detalhe de que a fonte de arrecadação prevista para compensar a perda de receita mexe no mercado financeiro, tributa produtos que hoje têm isenção. Isso aumentou o mau humor. O pacote tem vários aspectos positivos, com medidas graduais, porque com frequência as muito imediatistas, como a 'facada no Sistema S' de Paulo Guedes, são inviáveis politicamente.
A aprovação, segundo o governo com pouca desidratação, é positiva?
Tem coisas positivas. O problema é que o pacote foi tímido. Mas uma coisa é ter preços de ativos em outro patamar pelo que está acontecendo lá fora. A sinalização do Fed (Federal Reserve, BC dos EUA), foi um fator (de pressão sobre o dólar) muito forte. Impactou moedas mundo afora. Outra coisa é o quadro de pânico. Circularam todos os boatos, de que governo imporia IOF (Imposto sobre Operações Financeiras na saída de dólares), que seriam adotados controles de câmbio.
O que gerou esse pânico?
Em um mercado que operava sem referência, o Banco Central (BC) agravou quadro. Na hora que decide elevar o juro em 100 pontos (básicos, equivalentes a 1 ponto percentual) e avisa que vai fazer mais 200, sanciona que quadro é ruim. Foi um guidance (antecipação de movimentos futuros) inadequado. O problema do Brasil é um fenômeno fiscal, não dá para querer que a política monetária corrija.
O BC errou?
O BC sancionou o pessimismo, passou a mensagem de que o momento era grave, mesmo. Foi inábil, provocou ainda mais volatilidade no mercado. Aí mesmo é que a política monetária não vai fazer efeito no câmbio. O investidor estrangeiro ficou com medo de perda de capital (não apenas ter remuneração menor, mas perda do valor aplicado originalmente). Houve um efeito de manada muito forte. Mesmo quem diz 'não é tão ruim assim' vê a dinâmica de manada e adere.
Os motivos são só econômicos?
Tem um componente político muito forte na leitura de comparação com o governo Dilma, que é equivocada. Parte do mercado interpreta que Lula pode se reeleger e vai ter repetição do que ocorreu no segundo mandato de Dilma, sem qualquer ajuste. Aí o mercado traz a valor presente (provoca agora o efeito que ocorreria no futuro) o medo de reeleição de Lula e repetição do que foi feito no segundo governo Dilma. Então, não é só a questão fiscal, também é medo do porvir. O mundo todo está em endividamento crescente. O problema do Brasil é que sai de base muito alta e tem bombas que vão só crescer com o tempo, como a previdência e a seguridade, com despesas vinculadas ao aumento real do salário mínimo. E ainda há questões não resolvidas em governos anteriores, como a previdência dos militares. Quando o mercado fica muito volátil (com altas e baixas acentuadas), qualquer notícia pode abalar. Quando o mercado vive momento positivo, fica mais suscetível a boas notícias, quando está negativo, fica mais permeável às negativas. A angústia é saber quanto mais tem de piorar para melhorar.
Se houve 'efeito manada', houve ataque especulativo?
O conceito de ataque especulativo é muito específico, só vale em países que fazem controle de câmbio (assumem compromisso com determinada cotação ou faixa). Nesse caso, o governo fica defendendo o câmbio, e o mercado fica tateando, pode ocorrer ataque especulativo, como na primeira fase do Plano Real.
Se não é ataque, o que é?
No Brasil, o ambiente interno potencializa a depreciação das moedas emergentes. Todas estão apanhando muito, porque Trump ganhou, a inflação deve subir nos Estados Unidos, mantendo o juro alto. Como resultado, as moedas emergentes estão se depreciando. Então, não estamos indo em direção diferente. Na pandemia, o dólar estava se depreciando ante outras moedas, e o real também se depreciou. Agora, está na mesma direção, só em maior velocidade. Não cabe falar em ataque especulativo. As intervenções do BC se justificam. São para dar liquidez ao mercado, muito seco em momento da sazonal remessa de recursos ao Exterior. É uma forma de estancar um pouco o efeito manada. Não é o BC defendendo a ferro e fogo uma cotação.
Qual deveria ter sido a ação do BC?
Era melhor ter posturas mais serenas. A conquista de reputação não se dá por choque. Com perseverança, Galípolo e seu time iriam conquistando. A política monetária pode pouco, mas pode até piorar a situação. Não acho que a economia está em dominância fiscal, mas é um momento de menor potência da política monetária. É equivocado fazer choque de juro, porque insere mais volatilidade. A capacidade de conter dólar é mínima.
Vê risco em repetir 2014?
Vejo como improvável. Em 2014, havia uma crise política profunda, a questão da corrução. Quando se olha o colapso que foi o investimento, não era efeito só da política monetária, não só erro do governo, ainda que tenham havido muitos. Mas não é nada comparável ao que está acontecendo agora. Havia muitas torneiras abertas ao mesmo tempo. E era a não política que queria fazer política. Agora, não vejo nenhum desses elementos. Não foi a Selic de 14,25% do Tombini que gerou a recessão de 8%. Está mais para 2002, é medo do Lula.
É possível sair dessa crise?
Tem um grande nó político, a preocupação da repetição. Uma parte poderia ser superada com esforço do governo em reafirmar o compromisso fiscal, mesmo que com resultados lentos. Dizer que vai trabalhar para aprovar mais medidas, sensibilizar o Congresso, negociar. Garantir que, se essas não forem o suficiente, virão outras. Quando (Michel) Temer assumiu, não houve reforma, até o Tombini seguia no BC, mas as expectativas de inflação começaram a descer. Era uma crença, que veio antes da regra do teto. A confiança mexe com expectativas. A Fazenda também poderia reconhecer problemas. Na hora que solta planilhas com números não críveis, perde. O cuidado técnico é importante, senão parece que são só palavras ao vento. Precisam ser críveis. Mas não há crise que dure para sempre, como disse. E uma coisa é um equilíbrio macro pior, fruto de escolha política do governo ao fazer políticas expansionistas, outra é o que vimos. O pânico é uma crise de confiança que precisa ser debelada. Com coerência, com plano de voo, com clareza, sem negar problemas. E há também, infelizmente, uma corrosão de credibilidade do ministro (da Fazenda, Fernando Haddad).