Voz respeitada no debate econômico nacional, Zeina Latif saiu da XP Investimentos, onde ocupava o posto de economista-chefe, na virada de 2019 para 2020. Segue atuando como consultora, atividade que a transforma em interlocutora de grande variedade de setores da economia. Na discussão sobre o inesperado apetite do governo federal por aumentar gastos com assistência social, com foco na reeleição em 2022, adverte que, se não há risco de que Bolsonaro use as mesmas ferramentas de Dilma Rousseff, as consequências de equívocos podem ser até piores, porque não há nada comparável à reforma da Previdência para acertar as contas públicas e aliviar a dívida.
Abril foi o fundo do poço da crise?
Sim, os dados estão muito claros. Quanto mais cedo bater no fundo, melhor, mas o que mais importa é com que velocidade a gente avança.
A recuperação pode ser rápida, em V, como sustenta o governo?
Aí sou um pouco mais cética. Sempre pode haver histórias de recuperação rápida, mas a economia é muito heterogênea. É normal que os primeiros dados, com o relaxamento do isolamento, sejam melhores. Mas manter esse ritmo e voltar ao pré-crise no curtíssimo prazo é pouco provável. Acredito que a recuperação será lenta.
Por que você avalia que há uma "percepção artificial" da retomada da economia?
Principalmente por causa do auxílio emergencial e da medidas de flexibilização dos contratos de trabalho. Isso ajudou a preservar empregos, mas tem data para acabar. O governo vai tentar dar uma esticada, até porque Bolsonaro está enxergando impacto dessas políticas na sua popularidade. Vai querer esticar até onde der, mas o fato é que uma hora acaba. Há uma discussão também para estender um auxílio emergencial mais modesto. Então há um artificialismo. A questão é se até acabar, a economia ganhou uma engrenagem tal que a descontinuidade não gere perturbação. Mas se for prolongado o auxílio, é importante que reduza tanto o público alcançado quanto o valor distribuído, pela situação fiscal do Brasil.
Talvez as consequências de errar o momento não fiquem claras tão rapidamente quanto em 2014. Se o presidente mira a reeleição em 2022, tem alto risco de cometer excesso agora.
O governo terá de escolher entre a prorrogação do auxílio e o equilíbrio fiscal?
Não tenho dúvida de que é preciso se preocupar com a questão fiscal. O impacto de equívocos cometidos agora vai se estender demais. Talvez as consequências de errar o momento não fiquem claras tão rapidamente quanto em 2014. Se o presidente mira a reeleição em 2022, tem alto risco de cometer excesso agora. Como a inflação está muito baixa, ele pode pensar 'vou arriscar'. No fundo, foi o cálculo que a Dilma fez, por convicção ou oportunismo político. Ou um pouco de cada. Pisou no acelerador, não ouviu alerta sobre inconsistências, já havia discussão sobre pedaladas em 2014, no TCU. Ela pensou que a bomba ia estourar, mas seria eleita. Não conseguiu consertar, e o o resto a gente já sabe.
Quais são os riscos?
O fato de poder postergar a dor de cabeça até as pessoas sentirem concretamente os efeitos do aumento da inflação e do juro gera distorções na tomada de decisão. Dizem que não devemos ter preocupação sobre como pagar o que gastamos agora, postergar a calamidade pública, mas já começou o debate sobre como flexibilizar o teto de gastos, apoiado por muitos economistas. Se amanhã revogar essa regra, o mercado financeiro desaba, aumenta a pressão sobre o dólar. Mas daí a ter uma pressão inflacionária do tipo que vimos no governo Dilma será um longo caminho. E é aí que mora o perigo. Para o político que olha o curto prazo, é um estímulo maior para testar limites. Podem não revogar o teto, mas ir comendo pelas bordas. Gostaria de dizer que Guedes está forte e que esse cenário está descartado, que o risco de flexibilizar o teto é baixo. Mas infelizmente, o risco é relevante. O governo quer fazer a Renda Básica, e isso é aumento de gasto. Aí vai ter de mexer no gasto. Muitos ministros estão pedindo mais folga para gastar.
Mas se lá atrás havia a perspectiva da reforma da Previdência, que se não resolvia todos os problemas fiscais era um passo largo, agora não há nada comparável.
Há um risco semelhante ao do governo Dilma?
O governo não faria hoje o que a Dilma fez, até porque há mais instâncias de controle. O governo também não tem mais o mesmo poder discricionário. Mas um dos problemas é que estamos saindo de um patamar pior do que o de 2014. O nível da dívida é muito mais elevado, muita demanda de gastos. Mas se lá atrás havia a perspectiva da reforma da Previdência, que se não resolvia todos os problemas fiscais era um passo largo, agora não há nada comparável. Não há nenhuma medida em discussão com a mesma potência fiscal. Então agora o quadro é mais complexo.
Em termos de gastos, o que é responsabilidade diante da tragédia e o que é aposta eleitoral?
Até definir o que é responsabilidade do governo, neste momento, é dificílimo. O governo falhou na questão da saúde. Mas culpar o governo pela crise econômica é como culpar a companhia aérea pelo atraso no voo causado pela chuva. Por mais que o governo tenha falhado na gestão da saúde, a crise na economia era inevitável. Sem distanciamento social, as pessoas não sairiam de casa por medo. A crise viria de um jeito ou de outro. É o que as pesquisas mostram. As pessoas estão com medo, mesmo com medidas não tão restritivas. Sem restrição, explodiriam os óbitos, o número de pessoas hospitalizadas, a rede pública não daria conta, era capaz de ter crise social, saques. Então, mesmo que o governo tenha responsabilidade, não se justifica salvar tudo e todos.
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