Uma das vozes mais respeitadas no debate econômico nacional, Marcos Lisboa observa que o governo federal precisa de foco na agenda fiscal para tentar tirar o país da "encrenca em que se meteu". Na entrevista a seguir, o presidente do Insper avalia os impactos de mais uma "década perdida" pelo Brasil, marcada pela fraca retomada após a recessão.
Nesta segunda-feira (10), o economista participará da 9ª Conferência Brasileira de Contabilidade e Auditoria Independente, em São Paulo. A palestra será transmitida a interessados no Sescon-RS, em Porto Alegre.
Está em discussão no Congresso a aprovação de crédito suplementar de R$ 248,9 bilhões para que o governo federal não descumpra a regra de ouro, que o proíbe de se endividar para pagar despesas correntes, como salários e custeio da máquina pública. Qual sua avaliação?
O governo dormiu no ponto de maneira impressionante. Sabia-se que isso seria necessário, estava previsto no ano passado. O governo Michel Temer tentou começar uma discussão sobre a reforma na regra de outro. Achei a discussão apropriada. Mas não avançou. A saída encontrada para fechar o Orçamento deste ano, dado que não há receita corrente para pagar as despesas obrigatórias, foi deixar algumas despesas condicionadas à aprovação do crédito suplementar. Isso deveria ter sido aprovado pela atual legislatura. A surpresa é só agora a conversa aparecer. Deveria ter sido enviada às comissões em fevereiro.
A meta de déficit primário é de R$ 139 bilhões neste ano. O que representaria a aprovação de crédito suplementar?
O que falta é receita corrente para poder pagar as despesas obrigatórias. A questão formal é aprovar o crédito suplementar, a menos que se reformule a regra de ouro. O problema é o que tem por trás. O gasto público no Brasil, até a aprovação da PEC do teto, crescia 6% acima da inflação. O gasto com Previdência e assistência, que é o principal, consome cerca de 60% do Orçamento. Esses gastos crescem mais do que a renda nacional. Então, se você não tem renda para pagar, tem de cortar demais gastos. Não tem mais onde cortar despesa para dar conta desse crescimento acelerado. Esses gastos são todos obrigatórios ou estão fixados em lei. Tem de fazer uma série de reformas legais para ajustá-los. A reforma da Previdência é a primeira delas, porque é onde está o problema mais grave. A reforma faz os gastos crescerem mais devagar. Ou seja, o problema vai parar de piorar se for aprovada uma proposta bastante ousada. Agora, para voltar a ter dinheiro para tecnologia, segurança e diversos outros temas relevantes, é preciso fazer novas reformas fiscais na sequência. Os Estados deveriam estar defendendo arduamente a reforma da Previdência.
Há estimativas de que a reforma da Previdência pode gerar economia de R$ 600 bilhões a R$ 800 bilhões em 10 anos, abaixo das projeções iniciais do governo. É suficiente?
Mesmo se o governo fizer a reforma mais ousada, vai ter de fazer mais coisas para cortar gastos. Quanto menos cortar na Previdência, mais vai ter de cortar no resto. Mesmo com a reforma de mais de R$ 1 trilhão, o governo vai ter de fazer mais ajustes para cortar em outro lugar. Vai continuar faltando dinheiro para muita coisa. O mais importante é começar com a Previdência, para interromper o crescimento do gasto. Pode aumentar impostos, mas isso não resolve os problemas no Brasil. Com as regras de aposentadoria que temos hoje e o envelhecimento da população, o gasto cresce acima da renda todo ano. Com a reforma, vai crescer mais devagar. Talvez possa crescer em linha com a renda ou um pouco menos, mas depende de o país conseguir uma agenda para retomar o crescimento econômico.
O governo acenou com a revisão do teto de gastos depois da reforma da Previdência. É preciso revê-lo?
O teto tem ajudado o país a não mergulhar na crise. Se o governo quiser mexer severamente no teto, aí é voltar à crise. O país conseguiu evitar a descida ao desfiladeiro. Nada impede que a gente retome aquela ladeira. O governo prometeu tentar distribuir parte da cessão onerosa com Estados e municípios, mas não tem de onde tirar dinheiro. Isso tem sido um pouco parte do Brasil, porque estamos distribuindo recursos que não temos. Acaba-se agravando a situação a médio prazo entre os Estados.
O que levou Estados como o Rio Grande do Sul ao atual quadro fiscal?
Os Estados estão nesta situação devido a reajustes salariais elevados, muita contratação de gente e conivência com regras que permitem aposentadorias precoces. Durante anos se sabia que os Estados iriam quebrar, que iria faltar dinheiro para manutenção de pontes, estradas, educação e saúde, mas ninguém fez nada. Pelo contrário, o que se fez foi adotar medidas paliativas. No Rio Grande do Sul, teve o uso de depósitos judiciais para pagar despesa. É como morfina para doente com câncer. Tira a dor, mas a doença progride. Quando passa o efeito do remédio, a doença fica mais grave.
A responsabilidade pela grave crise dos Estados é apenas dos Estados, pelas escolhas irresponsáveis da última década e meia. Agora, o que vemos é a resistência das corporações, sobretudo públicas, em fazer ajustes necessários. O caso do Rio Grande do Sul é gravíssimo. Acho que o governador (Eduardo Leite) e a Assembleia estão mostrando que, com clareza e diálogo, é possível enfrentar os problemas, interromper o autoengano. Estão sendo exemplos para outros Estados.
O governador passou a admitir o uso de recursos de privatizações para custeio da máquina pública. O que isso significaria?
Acho que o governador está fazendo o possível. Tem de levar em conta que a crise do Rio Grande do Sul foi cuidadosamente e profissionalmente construída há mais de duas décadas. A situação é grave em vários Estados, a do Rio Grande do Sul é gravíssima. O país está 8% mais pobre por habitante do que no começo da crise, do que há pouco menos de 10 anos. Deveríamos estar 8%, 10% ou 12% mais ricos, que foi o que aconteceu com o resto do mundo. Ficamos para trás. Já perdemos 20% da renda por brasileiro. É uma crise severa, grave. Começou em 2011, com os primeiros sinais, após decisões tomadas anos antes, a partir de 2007. Essa decisões vão aos poucos manifestando consequências nos anos seguintes. Não é por você fumar neste ano que vai ter câncer no ano seguinte. Agora, se fumar durante 10, 20, 30 anos, a probabilidade de ter câncer aumentará. A degradação da economia por decisões erradas nas finanças públicas se manifesta lentamente. A má notícia é que corrigir o descalabro também é algo lento.
O Banco Central errar na política monetária é sério, mas pode ser rapidamente corrigido. Agora, quando o Estado erra na política fiscal, na contratação de gente, nas regras de aposentadoria, leva-se uma ou duas décadas para corrigir. Quando voltei ao Insper, seis anos atrás, comentei em um artigo minha preocupação com o fato de que o governo Dilma Rousseff (2011-2016) estava parecendo o governo Ernesto Geisel (1974-1979), investindo onde não devia, errando na política fiscal. Meu temor era de estarmos entrando em uma década perdida na economia. Na época do governo Geisel, foi pouco mais de uma. Agora, torço para que seja só uma década perdida.
Como você descreve o atual momento na economia?
Degradamos integralmente o ambiente de negócios no Brasil. Com crise fiscal, reajuste salarial, gastos elevados e subsídios, os governos começaram a aumentar tributo para não entrar em colapso total. A parte tributária do Brasil está disfuncional há vários anos. Está completamente caótica. O setor privado está acuado pela questão tributária. Não sabe mais como pagar imposto. Achamos que, para crescer, seria preciso estimular o investimento e proteger a produção nacional. Foi isso que o governo Dilma fez, e deu completamente errado. Acabamos produzindo o que não sabemos fazer direito. Colocamos dinheiro, recursos e pessoas no que não sabemos fazer direito. Não construímos estradas, não investimos em energia e gastamos fortunas com estaleiros e refinarias que não param de pé. Nosso setor produtivo está ficando defasado, porque não se beneficia mais do comércio internacional como os demais países. A máquina mais eficiente feita na Alemanha quase não chega mais ao Brasil e, se chega, é muito cara. O resto do mundo está avançando tecnologicamente, e o Brasil está ficando para trás.
O aumento recorrente da carga tributária é uma razão. Tem muita insegurança com o que vai acontecer na economia. Quem vai investir em um país assim? O investimento está em um nível baixo e não se recupera, o ambiente regulatório para infraestrutura está muito ruim, houve muitas intervenções, como nos setores elétrico e de óleo e gás. Alguém vai querer construir uma hidrelétrica no país depois de Belo Monte? Alguém vai construir uma estrada, um porto? Olha, como os investimentos estão sujeitos a liminares, começa valendo um valor e termina sendo outro, aparece contrapartida nova. Sem infraestrutura, como o país cresce? Degradamos o ambiente institucional do país. Quisemos discutir muito redistribuição, mas fizemos isso de forma incompetente e desorganizada. O país está retrocedendo. Estamos ficando cada vez mais pobres.
Como sair da crise?
Toda hora tem uma ideia criativa do tipo "vamos usar as reservas internacionais para financiar investimento". O que não falta no Brasil são disparates frequentes de alguém que acha que encontrou uma poção mágica para tirar o país da crise. A má notícia é que foram as poções mágicas que nos trouxeram para a crise. É a tentativa do atalho, da medida esperta que vai trazer solução. Olha o desastre que foram as desonerações do governo Lula e Dilma, a reforma do setor de óleo e gás, que fortaleceu o monopólio da Petrobras e quase quebrou a empresa. São decisões erradas e tecnicamente ruins, com viés oportunista.
Há algo que pode ser feito agora para gerar algum estímulo à economia?
É preciso desfazer o que fizemos na última década. Se tivermos uma agenda para desfazer, o país pode voltar a crescer. Vai ser lento, processo longo, mas dá para começar a abrir a economia de novo, não com uma agenda liberal extremada. É para ficar uma economia igual à dos demais países. É acertar nosso sistema tributário, que é disfuncional. Não deveria existir imposto na origem em que o bem é produzido. Imposto é sempre no destino, quando o bem é consumido. Infelizmente, a transição é dura. Perdemos a oportunidade de aprovar a reforma da Previdência do Temer.
Com a aprovação da reforma da Previdência e a continuidade da agenda fiscal, com a clareza de que será seguida, a boa notícia é que os mercados reagem rápido. Por que a economia parou de cair no governo Temer? Porque ele apenas iniciou uma agenda fiscal. Quando fez isso, as curvas de juros de mercado fecharam, o que importa no setor privado. Quando isso aconteceu, o custo do capital para as empresas caiu. Isso fez com que a economia começasse uma pequena recuperação, que está sendo perdida pela demora, pela confusão. Quanto mais clareza o governo tiver em uma agenda com foco no que é primordial, sem perder tempo com confete, melhor. A impressão é de que tem gente que não entendeu o tamanho da encrenca em que o Brasil se meteu.