Em 1894, Charles William Miller saiu da Inglaterra e atravessou o Oceano Atlântico em um vapor em direção a São Paulo, trazendo na bagagem duas bolas usadas feitas de couro curtido e bexiga de boi, dois jogos de uniforme e um livro de regras do futebol. Com esse material, ele organizou a primeira partida do então chamado “nobre esporte bretão” em solo brasileiro. Esse jogo pioneiro foi realizado em 14 de abril de 1895.
Já o primeiro clube de futebol do país, o gaúcho Sport Club Rio Grande, foi fundado em 19 de julho de 1900, portanto, há exatos 120 anos. Em comemoração a essa data, conversei com um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos, que, depois de parar de jogar, se transformou num dos mais argutos analistas de futebol de todos os tempos: Tostão. Foi agradável ouvi-lo, como era agradável vê-lo jogar. Você, tenho certeza, achará agradável ler:
Quais são os 10 maiores jogadores de Brasil?
Um tenho certeza de que é o Pelé. Ele é o maior de todos. O Garrincha também, com certeza. Pensando em épocas, tem Ronaldo, Rivaldo, Romário, Didi, Nilton Santos, Gerson, Rivellino, Ronaldinho. Já falei 10. Tem o Zico também.
E o Tostão?
Eu não estou nessa turma. Sem nenhuma falsa modéstia, estou na turma de baixo.
Muita gente não concorda com isso.
Certamente esqueci de alguém. Eu falei da turma de 1960 para cá. Não cheguei a ver Leônidas, o Zizinho só vi em final de carreira. Se pegar nas Copas, tem mais. Tem o Zico, o Falcão. Tem muita gente.
No teu tempo de jogador havia uma profusão de craques no Brasil como talvez em nenhuma outra época.
Se pensar que em 1970 ficaram de fora Ademir da Guia, Dirceu Lopes, Zé Carlos. Eles não foram nem como reservas. A quantidade era maior. Nós continuamos formando um grande número de jogadores. Esses dias saiu uma matéria afirmando que, na Liga dos Campeões, o Brasil era o país com o maior número de jogadores. Isso quer dizer que continuamos formando muitos bons nomes. O que diminuiu foi o número de grandes craques.
Por quê?
De uns tempos para cá, o futebol evoluiu, ficou mais científico. Evoluiu dentro de campo, na intensidade, na tática, na questão física. Não tenho dúvida de que isso foi bom para o futebol. Agora, no Brasil, houve uma produção em massa de jogadores para exportação. Como se tivéssemos colocado os jogadores em uma forma. Os bem dotados fisicamente são selecionados nas categorias de base e se coloca tudo dentro de um padrão, o que forma jogadores muito iguais. Tanto que não falei nessa turma atual, certamente temos que incluir o Neymar, que é um espetáculo, mas ele é o único que nós temos de alguns anos para cá. Foi diminuindo o número de jogadores espetaculares. Um exemplo que gosto de insistir é no meio-campo. O Brasil teve Didi, Gerson, Rivellino, Ademir da Guia, Falcão, Cerezo, ou seja, jogadores espetaculares de meio-campo, mas depois passou a não formar mais esse tipo de jogador porque houve uma divisão entre os volantes que marcam e os meias que atacam. Então, tem muito meia driblador, que joga em direção ao gol, mas acabaram com os grandes pensadores, construtores do meio de campo, capazes de jogar de área a área, como o Falcão, que tinha uma elegância, marcava, driblava e chutava. Isso o Brasil foi perdendo. Formamos só grandes atacantes e não mais grandes meio-campistas. Desde 1982 o Brasil não tem um jogador espetacular no meio-campo. Há 40 anos! Por quê? Porque não forma. Na Europa, você a grande quantidade de jogadores espetaculares de meio-campo.
Você tem observado o Jean Pyerre, jogador do Grêmio?
Gosto demais dele. Tem pinta desses grandes craques. Ele tem. Não estou dizendo que vai ser ou não um grande craque. Lembro de um jogo em que o Grêmio enfrentou o Atlético-MG, com o time reserva, e o Jean Pyerre jogou (em dezembro de 2017, quando Renato Portaluppi usou os jovens para preservar os titulares para o Mundial de Clubes). Nunca tinha visto e fiquei encantado com ele. Para mim, era um desconhecido. Ele tem aquela classe dos grandes jogadores, inclusive com capacidade de jogar de uma intermediária a outra. Ele vai e volta, ele não é um meia ofensivo nem é um volante. É um jogador de meio-campo. Tem um grande potencial. Recentemente se machucou, mas o Renato já o colocava no time titular. Um dos motivos para o Luan ter perdido prestígio é porque apareceu o Jean Pyerre. Imagino que o Renato esteja vendo-o com um potencial ainda maior do que o do Luan. Ele é uma esperança desse grande craque que está faltando no meio campo do futebol brasileiro. Tem o Arthur que, nos últimos 10 anos, foi o jogador que mais despertou curiosidade com essa característica, só que não está progredindo. Ele tem talento para ficar com a bola, mas precisa usar essa qualidade para se tornar um jogador do primeiro nível mundial.
Em uma entrevista, certa vez, Garrincha contou que, antes de um Botafogo e Cruzeiro, ele entrou no quarto do Dirceu Lopes dizendo que se tratava do melhor jogador do Brasil, e isso na época em que o Pelé ainda jogava. O Dirceu Lopes era tudo isso?
Sem dúvida, era um grande jogador. Nós dois crescemos juntos, e um completava o outro. Começamos a treinar juntos, os dois com 16 anos, parecia que nós jogávamos há mil anos. As qualidades que eu tinha eram complementares às do Dirceu Lopes. Nos entendíamos muito em campo. Ele era mais driblador, mais agressivo, no sentido de tentar lances individuais em direção ao gol. Eu era mais um jogador de troca de passes, de pensar o jogo. Ele teve o azar de não ter ido para a Copa de 1970. Se o João Saldanha tivesse continuado (como técnico)... O Saldanha convocou o Dirceu durante as Eliminatórias e certamente ele seria reserva no Mundial. Eu e o Dirceu jogávamos mais ou menos na mesma posição. Arrumei uma posição para mim, fui jogar de centroavante. O Dirceu ficou como reserva do Pelé. Mas aí chegou o Zagallo, que achou que o time não tinha centroavante e convocou dois. Achou também que havia muitos jogadores de meio-campo. Tinha o Paulo César Caju, que era reserva, mas tinha o mesmo nível dos grandes jogadores. Tinha o Zé Carlos ainda, que era um espetáculo. Ele era mais volante. E aí o Dirceu ficou de fora.
Uma vez o senhor me disse que o Zé Carlos nunca deu um drible e nunca errou um passe.
Isso define o Zé Carlos. Ele era aquele volante centralizado que recebia a bola do lateral e do zagueiro e jogava no máximo com um ou dois toques e já virava a bola lá para o outro lado. Era um espetáculo. Lembrava o Pirlo jogando. Era muito bom e muito forte fisicamente.
Do time de 1970, existe uma lenda de que aquela seleção jogaria com qualquer técnico, que o Zagallo não teve tanta influência. Como foi a participação dele?
Isso é uma injustiça com o Zagallo. Na época, ele estava na frente dos outros treinadores. Não se valorizava tanto a figura do treinador. O Saldanha era mais humanista, conciliador, gostava de uma conversa. O Zagallo era o estrategista. Isso era raro. Fiquei espantado. Ele fazia treinos táticos extremamente detalhados. Pegava a mesa de botão e fazia a movimentação dos jogadores. Com tantos craques, precisava de um técnico para organizar as funções, e foi o que ele fez. Foi muito importante. O time tinha uma disciplina tática, um posicionamento. Além do talento individual, a Seleção de 1970 foi revolucionária. O Zagallo já gostava de que o time marcasse mais atrás, fechasse os espaços e contra-atacasse, como muitos times fazem hoje. Ele gostava da aproximação e exigia isso.
Como foi a tua passagem para centroavante?
No Cruzeiro eu era um meia, que vinha do meio-campo para frente. Eu e o Dirceu Lopes jogávamos um perto do outro. No primeiro dia do Saldanha na Seleção, ele me chamou e perguntou o que me incomodava. Falei que o problema era que todo técnico achava que eu era reserva do Pelé. Então, ele disse que, a partir dali, eu seria titular junto do Pelé. Nós nos entendíamos muito bem ali na frente. O time jogava com um ponta avançado, que era o Edu. Quando entrou o Zagallo, ele falou que eu era o reserva do Pelé. Mas depois ele foi vendo que o centroavante que ele colocou não era para Seleção. Então, o Zagalo me chamou e disse para eu jogar na frente do Pelé, como centroavante. Ele perguntou se dava para jogar assim. Eu falei que ia jogar igual ao que o Evaldo fazia no Cruzeiro, facilitando para o Jairzinho e o Pelé. Um time que tem Pelé e Jairzinho, jogadores extremamente agressivos e artilheiros, tinha que ter um jogador técnico, de raciocínio rápido e troca de passes. Então encaixou muito bem. Mais ou menos o que o Firmino faz no Liverpool hoje. Ele é um centroavante armador para os dois velozes, que são o Salah e o Mané.
Como era jogar com o Pelé?
Além de toda a técnica fabulosa que ele tinha, era extremamente agressivo, com um raciocínio muito rápido. Durante o jogo, ele ficava muito concentrado. Eu tentava entender o que ele queria fazer pelos movimentos. Tentava antever o que ele pensava. Modéstia a parte, eu consegui fazer isso, de simplificar o jogo. Eu era minimalista. Pena que nós jogamos pouco. Se eu tivesse jogado com ele no Santos, seria maravilhoso. A primeira vez em que eu joguei com o Pelé e o Gerson, quando acabou o primeiro tempo, o Gerson sentou no meu lado e perguntou se dava para eu jogar com dois toques, para dar tempo de ele chegar. Não esqueço disso.
Acabaram com os grande pensadores, capazes de jogar de área a área, como Falcão. Desde 1982 o Brasil não tem um jogador espetacular.
TOSTÃO
Campeão mundial em 1970
Você sente saudade de jogar?
Já faz muito tempo que parei. Durante os jogos, eu penso em um detalhe que lembra da minha carreira. Penso em que movimento que será feito pelos jogadores. A televisão hoje consegue mostrar com mais amplitude, então dá para ver com mais clareza. Sempre reclamo das decisões tomadas pelos jogadores. Uma das grandes qualidades do jogador é a lucidez para tomar a decisão certa. Isso é comum. Há quem tenha qualidade técnica enorme, mas toma as decisões erradas. Isso atrapalha demais. E não é muito observado.
Johan Cruyff falava em jogadores de inteligência superior. Isso faz diferença?
Muito. Evidentemente que a qualidade técnica é importante, mas a lucidez na tomada de decisões é fundamental. Houve um momento da minha carreira, quando algumas pessoas achavam que eu poderia ser o novo Pelé, o que era um exagero absurdo. Então eu gostava de dizer que eu podia pensar em fazer o que o Pelé fazia em campo, mas não conseguia, enquanto ele ia lá e fazia.
Tem uma história sua na Copa de 1994, já trabalhando na imprensa. Chegou um senhor e perguntou se podia sentar ao seu lado, pois era um fã. O senhor questionou qual era o nome dele. E ele respondeu: Alfredo. Quem era o Alfredo?
O (argentino) Di Stéfano. Ele foi um dos craques de quem só vi lampejos, mas quem viu fala que ele está à frente do Maradona e do Messi.
Quem é o melhor entre Maradona e Messi?
Depende de como se analisa. Eu acho o Messi, por ter tido mais regularidade na carreira. Há mais de 10 anos ele vem jogando em altíssimo nível, fazendo gols e dando passes. E, pelo tempo que ele jogou, eu o vejo como mais jogador do que o Maradona. Mas, quando eu assisto aos grandes lances do Maradona, eles foram mais espetaculares do que os grandes lances do Messi. O Maradona foi mais artista, fazia coisas mais espetaculares. E teve o gol na Copa do Mundo, que é considerado o mais bonito de todas as Copas. Então isso faz com que o Maradona seja considerado superior. Mas, como atleta, acho o Messi melhor. O Maradona foi mais espetacular, fantasiava mais o jogo. O Maradona tinha uma técnica exuberante. Como o Ronaldinho, que tinha um estilo muito parecido com o do Maradona, com aqueles lances bonitos, de efeito. Uma pena que manteve isso por pouco tempo. Por isso que eu falo da regularidade do Messi. Ele não tem fase ruim.
Isso tem a ver com a dedicação do jogador?
Não tenho dúvida disso. Dedicação e disciplina. A não empolgação com a fama. Ronaldinho pensou que ia dar show e deixou de ser atleta. Isso não é o suficiente. O Maradona teve problemas com drogas, com o doping. O Messi é mais disciplinado, mais concentrado. O Cristiano Ronaldo é a mesma coisa, mas o Messi é mais completo do que ele. O Cristiano Ronaldo é o maior finalizador de todos os tempos, talvez, mas não cria tantas jogadas bonitas quanto o Messi.
Será que o Brasil voltará a ter uma Seleção como a de 1982, por exemplo?
É aquilo que eu falei antes, o futebol no Brasil ficou muito preso ao jogador que pega a bola, dribla três e faz o gol, faz lances espetaculares. Mas o futebol hoje é coletivo, é disciplinado. Esse tipo de jogador é quase impossível. Claro que acontece, o Neymar é um deles. É um fenômeno. Tem o mesmo talento do que o Messi, mas não teve o mesmo sucesso por outras questões. O Neymar é mais artístico, mas não tem tido sequência. Teve azar com seguidas lesões. Nas duas últimas Copas e nas duas últimas Liga dos Campeões, que são as competições mais importantes, ele estava com problemas. Quem sabe na próxima Copa do Mundo ele consiga mostrar o futebol que tem.
E sobre o Cruzeiro. Isso tudo que está acontecendo pode abalar o clube por muito tempo?Sim. O Cruzeiro tem uma dívida absurda, uma situação caótica. Os jogadores que o clube têm neste momento são de nível médio. Teve que abrir mão dos mais caros e tem uma dívida que não consegue pagar. Ainda vai começar a Série B com menos seis pontos por conta de uma punição, mas mesmo assim tem chances de voltar. Tomara que a nova diretoria consiga melhorar as coisas. Isso pode acontecer com outros clubes. O Cruzeiro talvez tenha sido o último em que dirigentes desonestos arrasaram o clube. Um absurdo. Houve apoio de conselheiros e se criou uma máfia que destruiu o clube. Tenho esperança de que, aos poucos, as coisas consigam se organizar. Que o Cruzeiro possa servir de lição aos grandes clubes do Brasil.
O Flamengo pode virar uma espécie de Bayern de Munique e ser hegemônico no Brasil?
Isso é um receio que nós temos, mas no Brasil há uma tradição de haver vários clubes de primeiro nível. Agora, é uma possibilidade. Remota, mas existe. Tem a Juventus na Itália e o Bayern na Alemanha. Na Espanha, são dois clubes, as vezes o Atlético de Madrid aparece. Isso está acontecendo no mundo. O clube que consegue adquirir uma condição financeira excepcional e é gerido por pessoas competentes pode ter esse salto e passa a ter esse domínio. É possível, mas acho pouco provável.
O clube que consegue adquirir uma condição financeira excepcional e é gerido por pessoas competentes passa a ter domínio.
TOSTÃO
Campeão mundial em 1970
O Jorge Jesus é diferente dos técnicos brasileiros?
Acho que sim. Mas isso não quer dizer que o time dele será sempre um espetáculo. Nem ele ficando no Flamengo é garantido que vá manter a hegemonia. Tem um limite. Há um exagero, mas que ele demonstra ser um técnico de alto gabarito, isso sim. Hoje, poucos profissionais saem fora do padrão. Mas você não consegue fazer isso sem ter os jogadores. Isso é fundamental. O Pep Guardiola, o Jürgen Klopp e o Jesus, se não tiverem jogadores bons, não vão fazer grandes times. O Flamengo tem o melhor elenco do Brasil. A diferença existe pela qualidade dos jogadores. Também não quer dizer que qualquer técnico faria o que ele fez, mas há uma supervalorização. O Bayern ganha todo ano na Alemanha porque os jogadores são melhores. Se o Flamengo mantiver a diferença, pode ganhar vários campeonatos seguidos.
Qual o seu time, posição por posição, de todos os tempos?
É muito difícil. São épocas diferentes.
Dos que viu jogar, então.
Se você misturar a Seleção Brasileira de 1958 com a de 1962 e a de 1970, já é difícil escolher. Por exemplo, quem foi melhor entre Gerson e Didi? É difícil. Alguns têm de estar na lista. O Nilton Santos na defesa. O Didi também. Ele foi mais espetacular do que o Gerson. O Pelé. O Garrincha. O Ronaldo e o Romário também. Agora, no meio de campo, é muito difícil. Tem o Falcão, o Rivellino, o Gerson. O Neymar está nesse grupo. Estou torcendo para, agora em agosto, na Liga dos Campeões, o PSG ganhar e o Neymar ser o melhor do torneio. Apesar de ser meio doidinho, meio metido, ele merece. Ele é um fenômeno jogando.
E qual foi o maior time que o senhor viu jogar?
A lembrança afetiva maior que tenho é quando jogavam no Maracanã, de um lado, o Garrincha, o Didi e o Nilton Santos, e, do outro, Pelé, Zito e Coutinho. Isso foi o que eu vi de mais espetacular no futebol brasileiro de todos os tempos. Eu tenho dúvida de quem era melhor. O Santos e o Botafogo dessa época ou o Barcelona e o Real Madrid, no auge dos dois times, com Messi e Cristiano Ronaldo. Mas no Brasil eu não tenho dúvida que foram Santos e Botafogo. Naquela época, se falava muito do Real Madrid de Di Stéfano e Puskas, mas o Santos era melhor. Depois tivemos grandes times, tem os grandes momentos de Grêmio e Inter. Tem o Cruzeiro, o Flamengo, o Corinthians, o Palmeiras, o São Paulo. Enfim, tivemos muitos grandes times, sem dúvida nenhuma.