Gaúcho nascido em Alegrete, João Alves Jobim Saldanha foi ainda adolescente para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, tentou ser jogador, virou jornalista e também técnico. Foram apenas dois trabalhos como treinador, um deles na Seleção Brasileira. Assumiu em 1969 e foi demitido menos de três meses antes da Copa de 1970, conquistada pelo Brasil.
O gaúcho, que morreu em 1990, aos 73 anos, treinou o Brasil na campanha 100% nas Eliminatórias. Intempestivo, sem papas na língua, arrumou vários críticos e inimigos. Comunista, era observado com desconfiança pelos militares que comandavam o país. Para Paulo Vinícius Coelho, o PVC, comentarista do SporTV, Saldanha tem participação na conquista do Tri pois foi ele quem começou com o conceito de escalar os melhores jogadores:
— Muita gente fala que ele é um jornalista que virou técnico. Na verdade, não é. Era um cara da zona sul carioca que virou diretor do Botafogo. No meio de uma excursão ao Norte e Nordeste, se viu na necessidade de demitir o técnico, que era o Geninho. Assumiu o posto em 1957 e foi campeão Carioca. Fica no Botafogo até dezembro de 1959. Quando sai do Botafogo, é convidado para trabalhar na Rádio Guanabara e passa a ser um comentarista muito popular. E, como comentarista, é convidado a assumir a Seleção em 1969.
Porém, PVC reconhece que Zagallo tem muito mérito pela conquista do México, pois transformou o esquema do time — passou do 4-2-4 para o 4-3-3.
— O Saldanha era inteligente. Muita gente acredita que ele jogaria a Copa no 4-3-3, pois sabe que se jogasse no 4-2-4, perderia, mas não teve tempo para isso, foi demitido antes. Taticamente, o campeão é o Zagallo. Mas o mérito da formação e do conceito de jogar os melhores, o Saldanha tem — ressalta o comentarista.
Sobre a influência da ditadura na saída do treinador, PVC acredita não ser o único motivo. Cita questões de campo, como a derrota para a Argentina e o empate em jogo-treino com o Bangu e, principalmente, a invasão de Saldanha à sede do Flamengo para agredir Yustrich (então técnico da equipe carioca).
— Entrar na concentração do Flamengo com arma em punho teve uma repercussão muito ruim. Além disso, tinha as críticas dos jornais de São Paulo, um monte de coisa — conclui.
Quem era João Saldanha
Um dos maiores conhecedores da vida do gaúcho que comandou a Seleção é Carlos Ferreira Vilarinho. O carioca de 65 anos, formado em Jornalismo e Direito, lançou em 2010 o livro Quem Derrubou João Saldanha (Editora Mauad, R$ 42,50). Segundo ele, o treinador foi demitido por influência do regime ditatorial, que via nele uma ameaça ao sucesso da Seleção na Copa do México. Vilarinho respondeu via WhatsApp as perguntas enviadas por GaúchaZH. Confira os principais trechos:
Por que o interesse em escrever sobre João Saldanha?
Meu interesse inicial era confirmar a tese de que o escrete de 1970 não era criação de um único treinador, mas sim o resultado de um processo iniciado em 1964, quando Vicente Feola convocou a Seleção Brasileira para disputar a Taça das Nações. A base que conquistou o Tri foi montada por Aymoré Moreira, durante a excursão de 1968. Mais tarde, o abandonei e decidi contar o episódio da sua demissão do cargo de treinador. Paralelamente, trabalhava na série que conta a história do Botafogo a partir de 1951. O volume 3 me permitiu voltar ao assunto da demissão de Saldanha e revisar minha visão sobre a questão que é tão polêmica e, até hoje, sujeita a mistificações.
Mas quem foram os responsáveis pela demissão? O presidente Médici teve papel decisivo?Não restam dúvidas de que foi a ditadura militar que derrubou Saldanha, mas por motivos políticos que não tinham nada a ver com a ideologia do treinador. Quando ficou claro que a sua permanência colocava em risco a conquista da Jules Rimet, Médici (presidente na época) ordenou a Havelange que ele fosse demitido. Um dia depois da demissão de Saldanha, o Jornal dos Sports publicou na primeira página: "O presidente da República, general Garrastazu Médici, acompanhou atentamente todo o desenrolar da crise que culminou com a queda do técnico João Saldanha. A todo momento, pedia notícias a seus assessores, enquanto via pela televisão Flamengo x Grêmio".
Que peso teve o episódio envolvendo o pedido de convocação de Dadá Maravilha?
A negativa da convocação de Dario, e a forma, digamos, informal, como ela foi dada, não agradou a Médici, mas não foi isto que pesou na sua decisão de derrubar Saldanha. O fator decisivo foi a perda da sua confiança na capacidade do treinador de conduzir o escrete à vitória no México, coisa que o regime fascista não podia admitir. Em 2 de fevereiro, Saldanha (funcionário licenciado da Rádio Nacional) assinou um contrato de dois anos com as Organizações Globo. O diretor Antônio do Passo ficou estupefato, mas engoliu. Em outubro, Yustrich (técnico do Flamengo) havia dito: "Saldanha foi indicado para treinar a seleção brasileira para que a CBD não fosse criticada pela imprensa e são os cronistas esportivos os responsáveis por sua manutenção à frente da seleção". Não podia durar no cargo, ainda mais por causa dos graves problemas de campo criados com a ausência de Tostão, peça-chave no sistema 4-3-3 manco de Saldanha.
Classificou o Brasil nas Eliminatórias, o que não quer dizer que o mérito da vitória no México não pertença a Zagallo.
CARLOS FERREIRA VILARINHO
Sobre João Saldanha
O senhor acredita que a Seleção de 1970 foi usada como uma espécie de propaganda do regime ditatorial?
Sem dúvida, o regime fascista tinha plena consciência da função do futebol brasileiro na luta política. Usou o escrete nacional para tirar proveito eleitoral e ideológico, e, ao mesmo tempo, humanizar o general integralista que ocupava a cadeira presidencial. No dia 23, feriado nacional, no Palácio da Alvorada, os tricampeões foram recebidos por Médici, que tirou o máximo proveito do evento. Com o dinheiro da Loteria Esportiva, ele agraciou Zagallo e cada jogador com um cheque de 25 mil cruzeiros. Em 6 de setembro, a Petrobrás publicou um anúncio nos jornais intitulado "Ninguém segura este país". Abaixo, estampou uma foto de Pelé socando o ar, perseguido por Tostão e Jairzinho. A ditadura usou fartamente a conquista do Tri nas eleições gerais de 15 de novembro.
Saldanha chegou a declarar que considerava Médici o maior assassino da história do Brasil?
Sim, com outras palavras muito parecidas. Médici morreu em 9/10/1985, após longa agonia derivada de um acidente vascular cerebral. Ouvido pelo Jornal do Brasil, Saldanha declarou: "Respeito muito a dor dos familiares e amigos. Para falar, gosto de esperar, pelo menos, a missa de 7° dia. Lamento a morte do cidadão Emílio Médici, mas não tenho como deixar de lamentar muito mais o assassinato cruel, sob tortura, de meus amigos do PCB e de muitos outros, durante o seu governo, que qualifico como o mais sanguinário de nossa história. O episódio da Seleção considero menos grave. Ele me tirou porque me recusei a convocar o Dario, como era seu desejo".
Saldanha tem parcela na conquista do Brasil na Copa de 1970?
Sim, tem parcela, pois ele classificou o Brasil nas Eliminatórias, o que não quer dizer que o mérito da vitória no México não pertença a Zagallo. Isto é incontestável.
Se Saldanha tivesse permanecido na Seleção, que legado poderia ter passado ao esporte e ao país?
Sob o comando de Saldanha, o Brasil caminhava para o desastre. Não era possível enfrentar as seleções europeias e trazer de volta a Jules Rimet jogando no sistema 4-2-4 com Fontana na quarta-zaga, Piazza na meia-cancha, Edu na ponta-esquerda, e Clodoaldo e Paulo Cézar ou Rivellino no banco. A comissão técnica estava rachada. No dia 17 de março (dia da demissão), na Rádio Globo, Saldanha declarou numa entrevista coletiva: "No meu time, ele (Pelé) não jogaria mais". E frisou: "Já havia dito a todos da comissão técnica que o Pelé não tinha condição física nem técnica suficiente para disputar a Copa do Mundo".
Como foi Saldanha como treinador?
É preciso dizer que Saldanha exerceu a função de técnico apenas em duas situações excepcionais. Na primeira vez, em 30/5/1957. Ele treinou o time até 30/12/1959. Em consequência da perda de mais um título carioca, em que pesaram graves erros táticos e de escalação, foi substituído por Paulo Amaral, técnico campeão dos aspirantes. E só abandonou a confortável função de jornalista, porque se tratava do escrete nacional e sua carismática liderança sobre a imprensa esportiva interessava à CBD para neutralizar a sólida oposição da imprensa paulista. O conhecimento de Saldanha sobre o futebol não pode ser contestado, todavia, ele escreveu seu nome na história do esporte como cronista esportivo.