“Está vendo o jogo?”, perguntou-me por mensagem o Diogo Olivier.
Jogo? Que jogo? Sabia que em parte alguma do planeta estava sendo realizado qualquer jogo de futebol, com a provável exceção da África, onde o coronavírus é manso como um resfriado, talvez porque os negros africanos, que, afinal, são os pais do Homo sapiens, contem com uma proteção genética que nós, seus filhos pálidos, tenhamos perdido na degeneração dos séculos.
Sabe-se lá.
Mas aquela ideia, de que nos mais de 8 milhões de quilômetros quadrados do território brasileiro ninguém jogava bola, aquela ideia me assombrou. Imaginei todos os estádios, os campos de várzea, as quadras e os campinhos improvisados vazios, as goleiras solitárias, as bolas imobilizadas nos cantos escuros. Quanta desolação no país do futebol.
Mas o jogo. Esse jogo do qual falava o Diogo era Brasil versus Tchecoslováquia, disputado na Copa do México de 1970, em reprise pelo SporTV. Fui assistir, e depois agradeci ao Diogo. Porque, meu Deus, aquilo não foi uma partida de futebol; foi uma obra de arte.
O jogo vertical e agressivo de Pelé, o toque de requinte de Rivellino, a inteligência de Gerson, a eficiência do gremista Everaldo eram como o cinzel de Michelângelo fazendo uma curva no mármore de Carrara, eram como o pincel de Renoir colorindo flores à beira do Sena.
Se você gosta de futebol, assista a uma partida da Seleção de 70. Se não gosta, assista também. Você pode não entender do jogo, mas entenderá da arte que aqueles mestres produziram.
Não foi à toa que, depois da Copa, “tri” virou adjetivo no Rio Grande do Sul. Ser tri era ser o máximo, porque a Seleção de 70, tricampeã mundial, foi o máximo que houve no mundo do futebol.
Fiquei tão entusiasmado ao rever a Seleção, que liguei para uma de suas estrelas, o Tostão. Ficamos conversando a respeito daquele supertime. O Tostão lembrou que, durante muito tempo, havia a dúvida acerca de quem jogaria: ele ou Pelé. Até que, um dia, Zagallo o chamou e perguntou:
– Você topa jogar mais adiantado, na frente do Pelé e do Jairzinho?
Tostão topou, e a mágica se fez.
– Eu era só um coadjuvante naquele time espetacular – disse Tostão, modesto.
Não era. Era muito mais. Tostão também era um Mozart, também era um Beethoven ou, quem sabe, um Beatle.
Em junho, aquela obra-prima completará 50 anos, e talvez não possamos festejar a data como deveríamos. Pensando nisso, comecei a pesquisar sobre 1970, procurando algo da época que definisse a Seleção. Queria um fato que não fosse do mundo do futebol, mas que fosse típico daquele tempo, demonstrando a graça, a manemolência, a malícia e, também, a dureza dos anos 1970.
Encontrei.
Tenho cá uma antiga coleção da Abril Cultural, História do Século 20. Era uma das enciclopédias que a minha mãe vendia para nos sustentar, a mim e a meus irmãos. Pois no capítulo sobre 1970 há a reprodução da notícia da morte de Jimi Hendrix, ocorrida pouco depois da Copa do México. A notícia contou que, três anos antes, Hendrix fora considerado, numa pesquisa britânica, “o maior intérprete de música popular do mundo”. E acrescentou:
“Algumas de suas apresentações foram censuradas nos EUA ‘por obscenidade’. Suas interpretações vinham causando controvérsia na Grã-Bretanha, pois o cantor era acusado de ser ‘excessivamente sensual’ devido ao movimento dos seus quadris e à forma de agitar a guitarra”.
Eis aí um resumo da década de 1970, tão criativa e tão repressiva, e da Seleção Brasileira, que, com sua habilidade quase obscena e seus movimentos de quadris, era “excessivamente sensual”. Isso foi há 50 anos. E nunca mais se fez nada igual.