O bichinho de pelúcia, a carta com coraçõezinhos infantis e a foto de Rafael Mateus Winques, 11 anos, contrastam com o lugar onde repousam em Planalto, no norte do Rio Grande do Sul. Estão depositados sobre um túmulo de concreto, no qual o corpo do menino foi sepultado na última terça-feira (26). Sem aceitar que uma mãe possa ter assassinado o filho, a comunidade está estarrecida. Os moradores do município de 10 mil habitantes buscam explicação e tentam lidar com a dor da perda tão precoce.
Rafael era quieto, educado, costumava cumprimentar as pessoas na rua. Ia e vinha da escola acompanhado de algum familiar. Em 15 de maio, a mãe comunicou o sumiço do filho e, na segunda-feira passada (25), Alexandra Dougokenski, 32 anos, confessou à polícia que matou o menino e escondeu o corpo — a mulher está presa. Ela diz que a morte aconteceu de forma acidental, após ela ter dado dois comprimidos de Diazepam para que ele dormisse. A polícia apura como um homicídio doloso — quando há intenção de matar — e a perícia inicial apontou estrangulamento.
Por mais que suspeitasse que o menino pudesse estar morto, após 10 dias de desaparecimento, a comunidade se indignou com o local onde estava o corpo: na garagem de uma casa vizinha, a poucos metros da residência da família.
— As pessoas estão chocadas, revoltadas, sentem-se traídas. A mãe mobilizou a comunidade. Ela sabia o que tinha feito e dissimulou. A comunidade quer justiça. Não acredita em homicídio culposo. O impulso seria sair gritando por socorro. Tentar salvar o filho. Não colocar numa caixa e ficar 10 dias esperando para ver o que vai acontecer. É antinatural uma mãe fazer isso. Até então, ela era vista como uma boa mãe. Mas como uma boa mãe faz uma coisa dessas? Será que existia uma violência que não era conhecida? Talvez agora se comece a olhar com outros olhos as crianças mais quietas. Talvez essas crianças estejam sendo vítimas de violências e não contem — afirma a promotora Michele Kufner, logo após passar em frente à escola onde Rafael estudava.
As crianças estão muito abaladas. Os professores também. Vai ser bem difícil. A única verdade que temos até agora é que um anjinho está morto
MARIA CRISTINA ROSSI
Diretora do Instituto Estadual de Educação Padre Vitório
No portão do Instituto Estadual de Educação Padre Vitório, onde o menino cursava o 6º ano, há um laço preto em sinal de luto, uma fotografia e uma mensagem sobre a saudade deixada pelo menino.
— As crianças estão muito abaladas. Os professores também. Vai ser bem difícil. A única verdade que temos até agora é que um anjinho está morto — desabafa a diretora Maria Cristina Rossi, que se emocionou ao retornar à sala de aula da criança nesta semana.
A Secretaria Municipal de Saúde disponibilizou três psicólogos para atender alunos e professores que conviviam com Rafael. Para a volta às aulas, serão discutidas ações para que eles lidem com os traumas.
— A comunidade tem que se unir e encontrar o próprio caminho. E, principalmente, dar atenção especial às crianças. Muitas dessas crianças começam a apresentar insônia, dificuldade de relacionamento, culpa. Outras apresentam muito medo. É uma coisa que tem que ser resolvida, para não ficar uma situação traumática para o resto da vida — aconselha a psicóloga Denise Helena Escher, que trabalhava na escola do menino Bernardo Boldrini, assassinado em 2014, aos 11 anos.
O pai, a madrasta e mais duas pessoas acabaram condenadas pela morte de Bernardo, em março do ano passado. A psicóloga também integra o grupo Amigas do Bem, formado após o crime. São 20 mulheres que realizam ações voluntárias e agora se colocaram à disposição para auxiliar a comunidade de Planalto a lidar com sentimentos como dor e revolta.
— Não podemos responder a uma violência dessas com mais violência. Temos que responder com união e justiça. Neste momento, o ódio não é bem-vindo. A união e o amor ao próximo, sim. Precisamos reverter o aprendizado em coisas boas, em atitudes melhores — orienta a psicóloga, que também atuou no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica) de Três Passos.
Mobilização desde o desaparecimento
Em Planalto, um município de 10 mil habitantes, a população se mobilizou nas buscas por Rafael, o que tornou a perda do menino ainda mais difícil. Foi a própria mãe que procurou o Conselho Tutelar. Nervosa e com os olhos inchados, relatou que tinha acordado pela manhã e o filho não estava em casa. Negou que tivesse acontecido qualquer tipo de briga e descreveu o filho como um menino caseiro e de poucos amigos.
— Ela tentava nos convencer. Disse que ele saiu de chinelo. Era um dia frio. Isso nos deixou preocupadas. Uma mãe que vem buscar ajuda, tendo em mente o que ela fez. Isso é o mais triste. Esses são os sentimentos agora: tristeza e revolta — descreve a conselheira tutelar Denise Vojniek.
Ela foi uma das pessoas que iniciaram as buscas, logo após a comunicação da mãe, acreditando que poderia ser uma peraltice de criança. Como as horas foram passando, o caso começou a gerar mais preocupação. Na sexta-feira, uma semana após o sumiço, Denise esteve mais uma vez na casa da família. A conselheira recorda que já estava desconfiada que algo pudesse ter acontecido ao menino, mas deparou, dentro de casa, com um espaço onde a mãe havia depositado uma camisetinha do filho, o bichinho de pelúcia favorito dele e a Bíblia.
— Ele é nossa criança. Essa casa perdeu a alegria — descreveu a mãe às conselheiras.
Naquele momento, Denise se culpou por ter desconfiado da mãe. Ao sair da residência, passou a crer que tinha se equivocado. A família não tinha histórico de registro de maus-tratos ou negligência, o que mais intriga a comunidade no momento. Aparentemente, não havia motivos para que o crime acontecesse.
— Nosso trabalho agora é nesse sentido, de acalmar a população, de dar apoio aos coleguinhas, inclusive. Todo mundo muito revoltado. Acredito que as pessoas vão ficar mais atentas, professores, vizinhos. Da mesma forma, para nós, como Conselho Tutelar, é um aprendizado. Nunca tínhamos passado por um caso desses — reconhece.
A sociedade não conseguiu assimilar. É uma sequela que vai ficar por muito tempo. É muito triste. A gente se pergunta qual o motivo que levou a tomar uma atitude tão monstruosa. Foi um choque muito grande
ANTONIO CARLOS DAMIN
Prefeito de Planalto
Durante o desaparecimento do filho, Alexandra chegou a ir até a prefeitura pedir que divulgasse mais o caso, recorda o prefeito Antonio Carlos Damin. O político reside a poucos metros da casa da família e costumava ver mãe e filho passando pela rua. Após o desfecho, também está consternado com a perda.
— O Rafael passava e me dava bom dia, boa tarde. A gente tinha como um menino querido. A mãe transparecia que amava o filho e ele, a mãe. A sociedade não conseguiu assimilar. É uma sequela que vai ficar por muito tempo. É muito triste. A gente se pergunta qual o motivo que levou a tomar uma atitude tão monstruosa. Foi um choque muito grande — descreve.
Na terça-feira, mesmo dia do enterro, a comunidade realizou uma carreata em homenagem ao menino. Agora, como forma de lidar com a dor e homenagear a criança, está montando um espaço na praça central. Será instalado um banner com a inscrição "Rafael, um anjo de óculos azuis" e uma foto do menino. O local deve ser um ponto para que as pessoas deixem flores, mensagens e façam orações.
— É algo que jamais imaginamos passar. É uma cidade muito calma, todo mundo se conhece. Uma maldade tão grande na vida da pessoa que deveria proteger mais. Mas não queremos disseminar ódio. Por isso, estamos criando esse espaço para que as pessoas possam homenageá-lo. Ele nunca será esquecido — diz Edenir Marmentini, 37 anos, conhecida como a professora Edi, que está envolvida na organização.
Força-tarefa com quatro delegados
Com a missão de desvendar como aconteceu e o que motivou a morte de Rafael, a Polícia Civil montou uma força-tarefa em Planalto. São quatro delegados, além de agentes especializados em investigar homicídios e desaparecimentos de crianças. A chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor, disse que pediu à equipe que, apesar da busca por resposta, tenha-se calma.
— Estamos atrás de respostas, de entender o que motivou isso. Mas não podemos ter pressa. Vários fatores, como perícias, depoimentos, ajudam a montar o quebra-cabeças e precisam de tempo. Mas claro que existe um ser humano dentro de cada policial que chora. Que, apesar de estar preparado para investigar, se choca com tudo isso — reconhece.