Separadas por menos de cinco quilômetros, duas moradoras dos bairros Bom Jesus e Partenon, na zona leste de Porto Alegre, residem em regiões dominadas por facções rivais. Elas não escolheram estar em lados opostos de um conflito imposto pelo tráfico, mas aprenderam a conviver com essa guerra que não é delas. Compartilham, inclusive, da mesma aflição: temem perder filhos e netos para a violência, por conta do território onde crescem. O último ataque resultado desse conflito provocou a morte de um bebê e acirrou a rivalidade entre os grupos criminosos adversários. O caso trouxe clima de tensão nas duas comunidades.
No fim da tarde de 2 de fevereiro, o menino de um ano e dois meses estava no colo da mãe, no acesso a um dos becos da Vila Maria da Conceição. Um grupo de moradores conversava na calçada, quando um criminoso desembarcou do banco traseiro de um veículo, com o rosto coberto por uma camiseta, e atirou na direção deles. Crianças correram em busca de abrigo. Cinco pessoas foram baleadas: entre elas o bebê.
Amparando o corpo inerte do filho, a mulher que era conhecida pelo zelo com o pequeno viu o temor das mães que vivem em áreas conflagradas se materializar em seus braços. Emanuel Alessandro Costa dos Santos estava morto. O receio de que isso se repita gerou pavor em outras famílias.
— A morte dele foi a pior coisa que podia acontecer. Meus filhos não saem para a rua. Eles são tudo que tenho. Enquanto atiravam para cima ou quando era gente que tinha algo a ver (com o tráfico), a gente tentava superar, mas agora comunidade está em pânico — resume uma moradora, mãe de três meninos, que após o episódio passou a enclausurar os pequenos dentro de casa.
Após o ataque, áudios começaram a ser divulgados na internet com promessas de revide. Eram citadas como possíveis alvos de chacinas comunidades dominadas pelo grupo rival. As mensagens geraram medo, especialmente porque intimidavam moradores, sem distinguir quem está envolvido ou não com o tráfico.
— O pessoal fica sempre de olho nos que entram aqui na vila. Tenho netos que brincam em frente de casa. Quando se fala que há carros estranhos entrando na vila, não deixamos eles nas ruas — relata uma comerciante, de 62 anos.
"Áreas de risco"
Um episódio marcou a comunidade do bairro Bom Jesus. Em outubro de 2018, um grupo rival ao que domina o bairro fez um ataque a tiros em frente a uma escola: dois jovens acabaram mortos, uma criança de oito anos, uma adolescente de 14 anos e um cadeirante ficaram feridos com os disparos. Com o receio de que as crianças possam se tornar alvo, desde então, pais começaram a ter mais cuidado nos horários de entrada e saída dos colégios.
— Aqui é uma comunidade pulsante, então logo se nota o esvaziamento nas ruas. Os alunos da noite não têm aparecido. De dia, muitas crianças vinham sozinhas porque moram perto. Agora os pais estão tendo o cuidado de trazer e buscar. A pessoa nem faz parte do tráfico, mas mora em área de determinada facção, então está em risco — descreve uma professora.
Comandante do 11º BPM, o tenente-coronel André Ilha Feliú afirma que decidiu reforçar a presença dos PMs nas comunidades indicadas nas gravações, com uso da Força Tática em horários considerados mais críticos.
— A gente não sabe da veracidade do áudio, mas tomamos a atitude de saturação da área, como forma de prevenção. Realocamos nosso efetivo para esses horários onde em geral acontecem os confrontos entre facções. Desde então, nada aconteceu. Talvez tenha sido uma forma de intimidação. Mas o que podemos fazer é prevenir — explica.
O diretor do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc), Vladimir Urach confirma que a situação entre os grupos se acirrou após o ataque no qual o bebê morreu e os locais vêm sendo monitorados pela polícia. Titular da 1ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o delegado Guilherme Gerhardt afirma que o caso segue investigado com prioridade, mas evita dar detalhes da apuração. Sobre a disputa, diz que o conflito envolve briga por pontos.
— É uma tentativa de tomada e retomada das bocas de tráfico. São bairros próximos e pontos importantes de venda de droga — explica Gerhardt.
Além de gerar pavor na comunidade rival, os ataques têm como pano de fundo uma estratégia econômica. Quando o policiamento é intensificado na área, após tiroteios ou execuções, o território inimigo acaba tendo perdas. A presença policial tende a impactar no comércio de drogas. É a forma de enfraquecer o outro lado.
— Eles têm interesse em desestabilizar o ambiente da facção rival e causar prejuízo. O que temos usado como estratégia de inteligência, em contrapartida a isso, é intensificar o policiamento também na área de origem — explica o comandante do 19º Batalhão de Polícia Militar (BPM), tenente-coronel Paulo Rogério dos Santos Alberti.
Protesto por segurança
Seis dias após o crime, a comunidade da Vila Maria da Conceição realizou um protesto. Com balões e cartazes improvisados com o nome de Emanuel, ocuparam a Rua Paulino Azurenha. Os moradores pretendem organizar uma reunião para discutir a situação e pedir outra vez mais atenção do policiamento, especialmente nos períodos de entrada e saída dos colégios.
A BM afirma que vem monitorando a situação e que reforçou a presença de policiais em horários específicos no bairro. O comandante do 19º BPM defende, no entanto, que esse tipo de crime precisa ser combatido com estratégia, com intuito de responsabilizar os mandantes:
— O crime organizado planeja suas ações e dificilmente agirá em frente à polícia. Precisamos aprofundar a investigação daquele caso para chegar aos responsáveis efetivos pela ação. Não adianta prender apenas o executor. A linha de frente normalmente é substituída facilmente. Tem de chegar nos responsáveis e nos motivos — diz o tenente-coronel Alberti.
Vingança
No dia anterior ao ataque no Partenon, dois homens haviam sido executados no Jardim Carvalho, também no contexto dessa guerra. Quando chegaram na Vila Maria da Conceição, os criminosos estavam dispostos a matar quem estivesse pela frente. Os alvos não eram traficantes e sim qualquer um da região dominada pela facção contrária.
— Além da disputa, percebe-se a vontade da vingança. Morrem muitas vezes inocentes. Às vezes, simplesmente moram em local dominado — afirma um policial envolvido nas investigações dos grupos.
A mesma comunidade ficou marcada pela morte de dois soldados do 19º BPM, durante confronto com criminosos em junho do ano passado. Os PMs entraram em um beco da Rua Paulino Azurenha, e foram recebidos a tiros por dois homens. Eles revidaram o ataque. Os soldados Rodrigo da Silva Seixas, 32 anos, e Marcelo de Fraga Feijó, 30 anos, acabaram morrendo, assim como um dos traficantes. O caso levou à prisão de três homens, entre eles uma das lideranças do tráfico.
— A vila ficou marcada por isso. Mas nós sentimos a morte dos policiais. Eram pais de família, tinham filhos — relata uma moradora.
Disputas na Zona Sul
Na Zona Sul, os mesmos grupos estão envolvidos em ataque que resultou na morte de duas pessoas no bairro Aberta dos Morros nesta semana. Na noite de terça-feira (18), dois homens foram assassinados a tiros próximo ao Beco do Adelar. A sequência de disparos teria sido executada por membros da mesma facção criada no Bom Jesus. O ataque teria partido da célula instalada na Vila dos Sargentos. Do outro lado, os inimigos são formados por uma coalização de quadrilhas que se apoiam para combater o rival.
Ainda no extremo-sul, na Restinga, houve acirramento da tensão entre grupos que disputam espaço no tráfico na região desde o fim do ano passado. Segundo o delegado Rodrigo Pohlmann, da 4ª DHPP, os conflitos foram gerados por um traficante que tenta retomar pontos antigos e pela disputa por pontos de venda entre outras duas quadrilhas.