No acesso à Vila dos Sargentos, na zona sul de Porto Alegre, um canteiro de obras simboliza esperança em uma comunidade marcada pela violência. Há dois anos, o posto de saúde que atendia os 5 mil moradores fechou. Funcionários se diziam acuados na área conflagrada pelo tráfico. A expectativa é de que a nova unidade no pé do morro seja inaugurada até dezembro. Mas para que a construção pudesse seguir, sem percalços, o novo prédio está sendo erguido na entrada da vila — afastado dos pontos estratégicos para o tráfico.
Segundo a Polícia Civil, os Bala na Cara controlam o comércio do gás de cozinha e parte do aluguel de imóveis, além de impor taxas para a venda de bebidas. Moradores relatam que não convivem mais com casos de violência explícita como ocorria entre 2011 e 2017, com execuções, esquartejamentos e tiroteios.
São amostras de como o crime migrou do terror para o controle de um poder paralelo, em uma comunidade onde não há praça nem farmácia, o transporte público não chega, o único acesso alaga a cada chuva e moradores convivem com o estigma de pertencerem a um bairro violento.
— Todos são obrigados a comprar o gás deles por R$ 80. Quem não compra, além de tirar o botijão, expulsam da residência — conta um morador.
O relato é endossado por quem reside no local. Em ponto de bairro próximo, segundo pesquisa do início de agosto feita pelo Procon de Porto Alegre, o botijão de 13 quilos custava R$ 75, com entrega. Até sexta-feira (30), esse valor era o mesmo.
— Aqui é mais caro, mas nem me arrisco. Quem comprou fora teve de ir embora — diz uma dona de casa.
Além do gás, conforme a Polícia Civil, o tráfico impõe a taxa para o comércio de bebidas. Casas, das quais moradores foram expulsos, também acabam sendo alugadas pelo crime.
— São como as milícias do Rio de Janeiro — compara um morador, embora neste caso, as extorsões sejam cometidas por integrantes da facção, e não por agentes do Estado.
Outro indicativo do poder que o grupo exerce sobre a comunidade ficou evidente durante a construção do novo posto de saúde. Em junho de 2017, um tiroteio fez funcionários da antiga unidade, na Rua Nelson Dalmás, deixarem o local escoltados. No mês seguinte, o posto encerrou os serviços. O terreno onde a obra está sendo erguida fica no acesso à vila, em uma área considerada mais segura.
Segundo o secretário de saúde da Capital, Pablo Stürmer, o novo posto de saúde terá estrutura mais adequada para atender a comunidade. Contará, por exemplo, com consultório odontológico e sala de vacinas. A construção está 70% concluída, em fase de acabamentos internos e externos. O orçamento de R$ 1,4 milhão foi mantido.
— Essa unidade conta com toda estrutura que deve dispor e está localizada em uma região bem mais segura para a população. Ao lado do Exército e de uma escola, em local de fácil acesso, para quem vem do morro ou de outro local.
— Para nós vai ser muito bom ter o posto aqui de volta — comemora uma moradora, que para ser atendida tem de percorrer dois quilômetros até a unidade no Guarujá.
Relatos de domínio por parte da facção no bairro Serraria, onde fica a Vila dos Sargentos, costumam chegar à 4ª Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), segundo o delegado Rodrigo Pohlmann. Mas, conforme o policial, as denúncias informais não são registradas pelos moradores por receio de represálias. O crime na área é gerenciado por um detento do Presídio Central. Outras lideranças da facção foram isoladas em penitenciárias federais há dois anos.
— A facção lava dinheiro ali. Caso descubram que não está comprando deles, a pessoa perde a casa. Os moradores têm muito medo. Mas é difícil comprovar. Ninguém coloca isso no papel. Essa coação exercida na comunidade reforça o ciclo. O que temos feito é incluir nos inquéritos essas informações, para comprovar que a organização explora frentes diferentes, não só o tráfico. E demonstrar a periculosidade — afirma o delegado.
Comandante do 1º Batalhão de Polícia Militar, o tenente-coronel Leandro Luz afirma que esse tipo de relato não chegou à Brigada Militar.
— Temos viaturas fazendo patrulhamento, que de vez em quando atendem alguma ocorrência. Mas está muito calmo. Não temos ocorrência de vulto — diz.
"Não tem mais tiroteios"
— Por um tempo, ficou insuportável viver aqui. A gente saía para ir na padaria e via crianças, de 12 ou 13 anos, armadas — recorda uma moradora.
Com esta mesma idade, a dona de casa brincava nas ruelas tortas e íngremes, que décadas depois viu serem tomadas pelo crime. Em 2010, a partir de alianças, a facção com berço no bairro Bom Jesus, na Zona Leste, transformou a Vila dos Sargentos em seu primeiro reduto às margens do Guaíba. Com elevação estratégica, que permite vantagem numa eventual invasão de rivais ou ação da polícia, o morro era atrativo para o grupo criminoso.
A vila virou ponto de armazenamento de armas e drogas, além de permitir a cooptação de novos "soldados". O local passou a ser ponto de tiroteios. No meio disso, inocentes viraram vítimas, como uma idosa, alvejada na cabeça em julho de 2016, no portão de casa. Em julho de 2017, a maior parte das lideranças foi enviada para prisões federais. Os homicídios caíram na Capital e na comunidade.
— Está diferente. Não tem mais tiroteios, graças a Deus — diz uma moradora.
Para a polícia, o crime se adaptou nesse período. Ex-diretor do Departamento de Inteligência da Secretaria da Segurança Pública (SSP) do RS, o delegado Pohlmann diz que a facção encontrou forma de obter lucro, por meio da coação, sem despertar atenção.
— As facções continuam em crescimento. O tráfico é só um item explorado. O lucro advém de áreas que não aparecem tanto. Uma facção grande compra, legaliza, coloca em nome de laranja. Tem estrutura de organização criminosa. Esse crime é mais difícil de combater —alerta.
Combate à lavagem de dinheiro e prevenção
O vice-governador e secretário da Segurança Pública do RS, Ranolfo Vieira Júnior, reconhece que a Serraria é um bairro historicamente conflagrado pelo tráfico e alvo de ações da polícia. Ele destaca iniciativas como a inauguração da Divisão Estadual de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil. Para o delegado, essa é uma forma de enfrentar esse tipo de crime.
— A gente desarticula efetivamente uma organização criminosa quando toca no bolso dessa organização. E só faz isso quando trabalha na questão da lavagem de dinheiro, quando termina com o poderio econômico que elas têm. Por isso, a importância da criação dessa nova divisão — afirma.
Para tentar mudar a realidade de regiões como a Vila dos Sargentos, o vice-governador aposta nas iniciativas de prevenção, previstas dentro do programa RS Seguro. Segundo Ranolfo, neste momento, estão sendo selecionados os bairros dos 18 municípios mais violentos do Estado, onde serão aplicadas políticas preventivas, envolvendo secretarias de diferentes áreas, como saúde, educação, esporte e cultura. Em Porto Alegre, a seleção ainda está sendo realizada e poderá contemplar a Serraria.
— Já estão selecionados Rubem Berta, Restinga, Sarandi, Lomba do Pinheiro e Santa Tereza. É possível que a Serraria esteja dentro. Além de fixar o jovem na escola, precisamos ter programas de saúde, cultura e geração de emprego e renda. A questão do esporte também é fundamental. Sabemos que isso vai trazer resultado a longo prazo. Mas se não iniciarmos agora, não vamos ter nunca.
Contrapontos
Alagamentos — A Secretaria de Serviços Urbanos informou que o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) está realizando a limpeza e retirada de resíduos da vala que drena o acesso à Vila dos Sargentos para melhorar o escoamento da água. Segundo o departamento, os resíduos são descartados irregularmente pela população, o que causa problemas às redes de drenagem.
Ônibus — A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) informou que a Prefeitura trabalha para executar uma obra que possibilite a alteração solicitada pela comunidade. É preciso adequar a via para a estocagem dos ônibus após a mudança do itinerário.
Posto de saúde — Segundo a Secretaria de Saúde, o novo posto dentro da Vila dos Sargentos deve ser inaugurado até dezembro. O custo da obra é de R$ 1,4 milhão. Como contrapartida ao Exército, que cedeu o terreno, a Prefeitura construiu um muro no local.