A empresa de Novo Hamburgo investigada por fraude financeira e outros crimes, que prometia lucros de 15% a seus clientes em investimentos em criptomoedas, distribuiu milhões de reais a seus sócios, enquanto no papel, estava no prejuízo. A Indeal ainda teria usado dinheiro de clientes para compra de carros de alto padrão, imóveis, joias e outros objetos de luxo para esses integrantes da considerada organização criminosa.
As informações constam em relatórios da Receita Federal (RF) e Polícia Federal (PF) ao qual GaúchaZH teve acesso com exclusividade. A reportagem analisou dois documentos enviados à Justiça Federal, que somados, têm 360 páginas. Neles, constam tabelas detalhadas da movimentação financeira da empresa e de seus sócios e colaboradores, degravações de interceptações telefônicas, e-mails trocados entre os investigados, imagens de campanas dos investigadores, quebras de sigilo fiscal e bancário, e até análise de redes sociais.
Em 21 de maio, a Polícia Federal realizou a Operação Egypto, que resultou, em 21 de junho, no indiciamento por diversos crimes de 19 pessoas. Entre os indiciados, estão os cinco sócios da Indeal. O relatório final da PF detalha o papel de cada um dos integrantes do esquema. Conforme a Justiça Federal, nove estão presos, cinco no sistema carcerário e quatro em detenção domiciliar.
Análise do banco de dados
O relatório da Receita Federal enviado à Polícia Federal que embasou os indiciamentos detalha a movimentação financeira da Indeal e de seus sócios e colaboradores. Esse documento foi concluído em 17 de junho, quatro dias antes do término da investigação do delegado Eduardo Dalmolin Bollis, titular da Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros da PF. Por determinação da 7ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre, foram analisados os e-mails e o Banco de Dados da Indeal.
"Não resta dúvida de que o valor que deveria ser direcionado para a empresa abasteceu as contas particulares dos sócios/esposas", afirmam os auditores. Para a Receita, é "injustificável e inaceitável que qualquer depósito possa ter sido realizado em benefício dos sócios/esposas, quando a própria Indeal possuía conta bancária".
Os auditores trazem exemplos de que os sócios recebiam rendimentos vultuosos, enquanto a empresa registrava prejuízo. O recorte leva em conta as declarações de ajuste anual das pessoas físicas relativas ao exercício de 2019, referentes ao ano de 2018, dos sócios Marcos Antônio Fagundes, Ângelo Ventura da Silva, Tássia Fernanda da Paz, Régis Lippert Fernandes e Francisco Daniel Lima de Freitas.
"Os sócios teriam recebido, cada, a título de lucros distribuídos da Indeal, a importância de R$ 12 milhões (no ano passado, 2018). Isto importa em dizer que o lucro da empresa teria sido de, no mínimo, de R$ 60 milhões. Analisando a contabilidade da empresa relativa aos trimestres do ano-calendário de 2018, verificamos que a Indeal não teve lucro, mas enorme prejuízo. Assim, incabível a distribuição de lucros", sustenta o documento que não especifica quanto seria a perda da companhia.
Para a Receita Federal, "é inevitável concluir que parte da insolvência da Indeal possa ser reputada, em parte, pelos altíssimos valores já sacados pelos sócios e companheiras". Em outro ponto do relatório da RF, os auditores citam o exemplo de que os valores depositados pelos clientes da companhia, que seriam para aquisição de criptomoedas, estariam sendo, na verdade destinados, em grande maioria, em investimentos convencionais.
"Considerando a contabilidade da empresa, as aquisições de bitcoin, no ano-calendário de 2018, passam a ser de, no máximo, R$ 17,7 milhões. Esta importância representa menos de 4% dos aportes de clientes/investidores".
Relatório da PF
O relatório do delegado Eduardo Dalmolin Bollis, da PF, que indicia 19 pessoas por crimes que vão desde violação de sigilo funcional, com pena máxima de dois anos, até lavagem de dinheiro, cuja pena pode chegar a 10 anos, tem 345 páginas.
No documento, o policial narra que a investigação começa com a denúncia de uma pessoa de que haveria empresa em Novo Hamburgo que estaria captando clientes com o interesse em aportar recursos em troca de retorno prometido de 15% no primeiro mês. Conforme a PF, foram constatadas tentativas de prejudicar a investigação. O gerente-geral de uma agência bancária, por exemplo, teria informado a investigados que a PF havia obtido extratos das movimentações financeiras da Indeal.
Também é citado o caso de um estagiário da Justiça Federal de Santa Catarina que teria acessado durante uma madrugada o inquérito por meio do sistema e-proc, onde tramitam processos e inquéritos.
Conforme a PF, o patrimônio dos investigados teve salto em um curto período de tempo, que chama a atenção. Ângelo Ventura da Silva, por exemplo, mantinha, ao final de 2017 um patrimônio total de R$ 177.681,00. Em 2018, ele se torna um dos sócios da empresa, com patrimônio de R$ 22 milhões.
"É absolutamente impressionante o acréscimo patrimonial que tiveram os investigados em questão", diz o delegado no inquérito.
Outro ponto citado no relatório é a promessa de aportes em criptomoedas, mas que ficariam em outros investimentos.
"Causa estranheza o fato de que os sócios da empresa que tanto acredita nos rendimentos do mercado de criptomoedas mantivessem seus recursos praticamente 'parados' em aplicações bancárias convencionais".
Mas a PF ainda analisa que, a fim de comprovar o negócio, haveria exemplos de retorno de 15% no primeiro mês. Nos extratos analisados, há o caso de um cliente que depositou R$ 1 mil e 30 dias depois, resgatou R$ 1.150,03. Há outro que depositou R$ 30 mil e um mês depois, recebeu R$ 4,5 mil de lucro.
"Ficou evidenciado, então, o funcionamento matemático do sistema da Indeal, com a apresentação de casos pontuais de pessoas que fizeram depósitos nas contas da empresa e receberam os retornos", sustenta o relatório da PF.
O documento finaliza detalhando bens apreendidos e dinheiro em espécie encontrado (R$ 1,7 milhão — 12 mil euros, 5,3 mil francos suíços, e 31,9 mil dólares) durante buscas e apreensões.
"Simplesmente inacreditável a quantidade de dinheiro em espécie que foi recolhida com os investigados no dia da deflagração da Operação Egypto, chegando a deixar impressionados muitos policiais experientes envolvidos nas buscas", diz o delegado.
A Receita também sustenta que os supostos lucros da Indeal distribuídos aos sócios seriam com dinheiro de clientes que investiam nos produtos apresentados pela empresa.
"Comprovado que não houve lucro, e sim um prejuízo descomunal, não há de se cogitar em distribuir qualquer parcela de lucros aos sócios. Em decorrência, pode-se afirmar que os vultosos valores distribuídos aos sócios, no decorrer da atividade da empresa, não foram os lucros, mas sim os valores aportados pelos investidores", sustenta o relatório.
Os crimes
Organização criminosa, operação de instituição financeira clandestina, oferta e/ou negociação de valores mobiliários sem autorização, crime contra as relações de consumo, gestão fraudulenta, apropriação indébita financeira, evasão de divisas, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e violação de sigilo funcional.
Quem são os 19 investigados e indiciados
Confira o que a PF afirma ser a atribuição de cada um dos envolvidos no esquema investigado.
Marcos Antônio Fagundes, Ângelo Ventura da Silva, Tássia Fernanda da Paz, Régis Lippert Fernandes e Francisco Daniel Lima de Freitas foram indiciados por organização criminosa transnacional, fazer operar instituição financeira clandestina, oferecer e/ou negociar títulos de valor mobiliário sem a devida autorização da Comissão de Valores Mobiliários, crime contra as relações de consumo, gestão fraudulenta de instituição financeira, apropriação indébita financeira, evasão de divisas, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
O advogado de Marcos Antônio Fagundes, Ângelo Ventura da Silva, Régis Lippert Fernandes e Francisco Daniel Lima de Freitas, Michael Gomes Pecorella, disse que prefere não se manifestar no momento.
Fernanda de Cássia Ribeiro
É esposa de Francisco Daniel Lima, considerada destinatária direta de transferências da Indeal, e flagrada, em ligação telefônica, dando ordens sobre medidas a serem adotadas administrativamente na empresa, foi indiciada por organização criminosa, fazer operar instituição financeira irregular, apropriação indébita financeira e lavagem de dinheiro.
Karin Denise Homem
É esposa de Ângelo Ventura da Silva e foi indiciada por organização criminosa, operar instituição financeira irregular, apropriação indébita financeira, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Neida Bernadete da Silva
Deixou "uma contabilidade totalmente caótica para seu sucessor", Vilnei Edmundo Lenz. Companheira de Régis, foi indiciada por organização criminosa, operar instituição financeira irregular, gestão fraudulenta e apropriação indébita financeira.
Paulo Henrique Godoi Fagundes
É apontado como membro da equipe, inclusive mantendo contato com pessoas externas da Indeal que tratavam da parte de vendas. Foi indiciado por organização criminosa transnacional, fazer operar instituição financeira irregular, apropriação indébita financeira, e lavagem de dinheiro
Flávio Gomes de Figueiredo
Um dos responsáveis pela captação de clientes para a Indeal. Foi indiciado por organização criminosa, operar instituição financeira irregular, oferecer e/ou negociar valor mobiliário sem a autorização das autoridades competentes, crime contra as relações de consumo e lavagem de dinheiro.
Marcos Antônio Junges
Outro responsável pela captação de clientes para a Indeal. Foi indiciado por organização criminosa, operar instituição financeira irregular, oferecer e/ou negociar valor mobiliário sem a autorização das autoridades competentes, crime contra as relações de consumo e lavagem de dinheiro.
Sandro Luiz Ferreira Silvano e Anderson Gessler
Segundo a PF, os dois trabalharam "na difusão do produto vendido pela empresa Brasil afora". Foram indiciados por organização criminosa, operar instituição financeira irregular, oferecer e/ou negociar valores mobiliários sem a autorização da autoridade competente, crime contra as relações de consumo e lavagem de dinheiro.
Vanessa Linck Monteiro e Débora Rodrigues Matos
Segundo a PF, "as mencionadas pessoas, na condição de esposas de Sandro Luiz Ferreira Silvano e Anderson Gessler, foram responsáveis pela constituição de empresas que, posteriormente, acabaram recebendo valores provenientes da atividade ilícita antes referida". Foram indiciadas por lavagem de dinheiro.
Vilnei Edmundo Lenz
Assumiu a função de contador da Indeal com a saída de Neida. Foi indiciado por organização criminosa, fazer operar instituição financeira irregular, oferecer e/ou negociar valores mobiliários sem autorização das autoridades competentes, crime contra as relações de consumo e gestão fraudulenta.
Fernando Ferreira Júnior
O advogado atuou na captação de clientes para a Indeal. Foi indiciado por organização criminosa, fazer operar instituição financeira irregular, oferecer e/ou negociar valores mobiliários sem autorização das autoridades competentes e crime contra as relações de consumo.
Alex Sandro Plamer do Amaral
Segundo a PF, o gerente-geral de uma agência bancária tinha conhecimento sobre as potenciais irregularidades praticadas pela Indeal. Também avisou sócios que a PF haviam obtido extratos bancários da empresa. Foi indiciado por violação de operação ou de serviço prestado por instituição financeira ou integrante do sistema de distribuição de títulos mobiliários de que tenha conhecimento, em razão de ofício.
Elias Oliveira da Rosa
Estagiário da Justiça Federal de Laguna, em Santa Catarina, que acessou o inquérito da PF, pelo sistema e-proc, durante a investigação, em uma madrugada, foi indiciado pela prática do crime previsto no art. 325, §1º, II e §2º do Código Penal, que trata de revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação.
O que dizem os demais indiciados
A reportagem de GaúchaZH entrou em contato com a PF e Justiça Federal para saber quem são os advogados dos demais indiciados. No entanto, os dois órgãos não puderam passar informações, já que o inquérito tramita em segredo de justiça.