Era 8 de julho de 1994, o Brasil vivia a expectativa do jogo com a Holanda, pelas quartas de final da Copa do Mundo dos Estados Unidos, que seria realizado no dia seguinte. Poderia ser a vingança da derrota sofrida pela Seleção para a Laranja Mecânica, 20 anos antes, no Mundial da Alemanha.
Na área monetária, o real, até hoje a moeda oficial brasileira, chegava ao seu oitavo dia de circulação, como a grande esperança de estabilização da economia do país. Na política, as eleições à Presidência e ao governo do Estado, que seriam realizadas três meses depois, dominavam o noticiário.
Alheios aos cenários do futebol, econômico e político, 10 dos mais perigosos criminosos do Estado, integrantes da Falange Gaúcha (primeira facção do Estado), davam sequência a um motim iniciado na véspera, no Hospital Penitenciário, em prédio anexo ao Presídio Central. Tinham em seu poder, sob ameaça de armas, 24 reféns.
Dois deles, por exigência dos demais, haviam sido buscados na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) e levados para lá durante a rebelião: Dilonei Francisco Melara, então maior líder dentro do sistema penitenciário gaúcho, e Celestino Linn, considerado seu "braço direito".
À noite, o clima de apreensão foi transferido para as ruas de Porto Alegre. Após mais de 24 horas de negociação, os 10 presos foram liberados a deixar a prisão em três Gols, com nove reféns. Uma perseguição policial, que contrariou as tratativas, resultou em tiroteios, acidentes e na morte de quatro amotinados e um policial civil.
Um dos carros, com três apenados e três reféns, seguiu para o bairro Lomba do Pinheiro, onde caiu em um atoleiro. Os três criminosos foram mortos pela Polícia Civil. Dois reféns escaparam ilesos e o terceiro sobreviveu, apesar de ter sido atingido por 11 tiros durante a ofensiva policial.
Outro Gol, também com três fugitivos e três reféns, sofreu uma acidente nas proximidades do Shopping Iguatemi. Após a colisão em um poste, um dos criminosos foi recapturado por um guarda do centro de compras, outros dois fugiram a pé, e os reféns foram liberados.
O carro no qual estavam Melara, Linn, Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, e Carlos Jefferson dos Santos, o Bicudo, com duas estagiárias de Psicologia e o diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei Carlos dos Santos, sofreu uma pane no bairro Petrópolis. Neste instante, o policial civil João Bento Freitas Nunes, que tentou se aproximar, foi baleado e morto. Bicudo, aproveitando-se da confusão, fugiu a pé.
Temos a questão do tráfico, que passa a ser atividade muito rentável, comandada de dentro das prisões, sendo novos territórios estabelecidos de acordo com a divisão interna das galerias e penitenciárias.
SIDINEI BRZUSKA
Juiz da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre
O auge da ofensiva criminosa foi a invasão do Plaza São Rafael, então principal hotel da cidade, por um táxi no qual estavam Melara, Linn e Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, com três reféns. Era o quarto automóvel utilizado pelos criminosos na fuga.
O veículo, após derrubar a porta de vidro do estabelecimento, foi estacionado no saguão. A cena, típica de filme hollywoodiano, provocou pânico e correria entre psiquiatras que participavam de um congresso no local.
Ferido com impacto da colisão, Linn acabou dominado por policiais e, com isso, um dos reféns foi liberado. As outras duas foram mantidas por Melara e Fernandinho, que ainda dominaram uma funcionária do estabelecimento e a obrigaram a seguir com eles até uma sala na qual se refugiaram. Foram necessárias mais 15 horas de tensas negociações até que a dupla decidisse se entregar. Linn morreu no dia seguinte, no Hospital Penitenciário.
Passaram-se 25 anos do maior motim já ocorrido na história do sistema penitenciário e, desde então, não ocorreram mais, em prisões gaúchas, rebeliões com tomada de reféns. Curiosamente, foram criadas novas facções, que atingiram nível de organização superior ao da agora extinta Falange Gaúcha.
Para explicar essa aparente contradição, a reportagem ouviu representantes do Judiciário, do Ministério Público, um pesquisador, um oficial da Brigada Militar (corporação que desde 1995 administra as duas maiores prisões do Estado) e um apenado, apontado como líder de um grupo criminoso.
Cinco razões
Novas relações e lucro
"Logo após esse motim do Plaza, a Brigada Militar assumiu o controle das principais casas prisionais do Estado do Rio Grande do Sul, o que acabou por modificar substancialmente as relações entre a massa carcerária e a administração. Além disso, na sequência, surge dentro do sistema um personagem: o preso que consegue ler o sistema, compreendendo que as cadeias poderiam ser local para ganho de dinheiro, de modo que atos violentos prejudicariam o mercado então descoberto. Essa nova "visão" perdura até hoje. Para finalizar, temos a questão do tráfico, que passa a ser atividade muito rentável, comandada de dentro das prisões, sendo novos territórios estabelecidos de acordo com a divisão interna das galerias e penitenciárias."
Sidinei Brzuska, juiz da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre
Atua desde 1º de outubro de 2008 em VECs da Capital e fiscaliza prisões da Região Metropolitana.
Efetivo maior e "negociação"
"Há dois elementos importantes. Nos maiores presídios foi suprida a carência de pessoal. No Presídio Central, houve época em que cinco agentes penitenciários eram responsáveis por 2 mil presos. Com a ocupação das principais prisões pela Brigada Militar, esse problema foi resolvido, pois o efetivo é maior e há mais segurança interna. O segundo e mais importante fator é que a superlotação foi fortalecendo as facções, que foram percebendo que tinham mais a ganhar tendo boa relação com a BM. Houve negociação informal pela qual as facções receberam maior autonomia dentro das galerias, não se rebelando, ao mesmo tempo em que perceberam que os presídios poderiam ser lucrativa fonte de renda."
Marcos Rolim, sociólogo
Em 1994, então deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos da Assembleia Legislativa, participou das negociações do motim.
Nova cultura e antecipação
"Entrei no circuito do sistema no início de 1998 e ainda tinha muita coisa complicada. Ia a 23 presídios e estabeleci o seguinte procedimento: ouvia determinado número de presos em cada galeria e percebi que havia problemas de incompatibilidades, doenças e mortes. Fomos estabelecendo uma cultura: 'não se pode resolver os problemas com as próprias mãos'. As famílias começaram a procurar a Promotoria e a fazer relatos. Então, conseguimos nos antecipar e evitar motins conversando com os presos para resolver os problemas, antes que eles acontecessem. Para mim, foi um diferencial que ajudou a baixar o número de rebeliões. Um presídio funcionando corretamente é importante para a segurança inclusive para os que estão nas ruas."
Gilmar Bortolotto, integrante da Força-Tarefa do Ministério Público nas prisões
Está há 21 anos no Ministério Público, inicialmente como promotor e, agora, como procurador de Justiça.
Uso de tecnologia
"Acredito que toda vez que ocorre um fato grave há preocupação para que ele não volte a ocorrer. O motim de 1994 fez com que medidas de segurança fossem priorizadas. Não que antes não houvesse, mas se dobrou a segurança, e os riscos passaram a ser minimizados. Numa casa prisional, há risco permanente, pela natureza do trabalho ali desenvolvido. Mas são adotadas medidas para minimizá-lo. Principalmente com o uso de tecnologia. Por exemplo: foram ampliadas as revistas, inclusive com o uso de scanner, o sistema de monitoramento por câmeras foi ampliado e foram restringidos acessos a determinadas áreas da Cadeia Pública."
Tenente-coronel Carlos Magno Vieira atual diretor do Presídio Central, já havia exercido outras funções na força-tarefa da BM em cadeias
Mais diálogo e colegiado
"Foi em 1995 que entrei no presídio. Era diferente de hoje, tinha muito tumulto com a Brigada, não tinha muito acerto como a gente tem hoje, era mais fogo na cadeia. Hoje, a gente tem um diálogo bem tranquilo com a Brigada, consegue manter relação bem tranquila com os presos aí, não tem mais aquela coisa de morte na cadeia, tortura, essas coisas que tinha antigamente. Antes, tinha uma pessoa (preso) que dava as cartas, mandava e tinha de fazer isso e aquilo. Hoje em dia são várias pessoas, bota um assunto em mesa e vai ver a melhor forma de resolver, a ultima hipótese é a morte."
Líder de uma facção no Vale do Sinos
Em 2015, concedeu entrevista sobre a relação entre detentos e a guarda no Presídio Central.
Podcast
Ouça o primeiro episódio do podcast "Aconteceu em Porto Alegre" que, em março, relembrou a rebelião no Presídio Central. Clique para acessar.