No início de 2016, uma decapitação na zona norte de Porto Alegre incendiaria a guerra entre facções. A disputa seguiria com execuções diárias, tentativas de tomada de bocas de fumo, sequestros e esquartejamentos de rivais. Naquele ano, a cidade registrou 792 assassinatos, ou seja, pelo menos dois por dia. Três anos e meio depois, no mesmo local onde foi achado o corpo decapitado, o bairro Mario Quintana tem a primeira quinzena de junho sem homicídios. Uma amostra da redução das mortes que atinge a capital gaúcha.
Nos primeiros 15 dias deste mês, nove assassinatos chegaram ao conhecimento da polícia em Porto Alegre. A queda é de 68% em comparação aos 28 do mesmo período do ano passado. Mas a diminuição não é restrita ao período atual. Já vem acontecendo, de forma acentuada, desde outubro. No acumulado, de janeiro até a metade de junho, são 174 casos em Porto Alegre — quase metade do mesmo período de 2018, quando foram registrados 332 assassinatos (veja os dados a). Para compreender o fenômeno que derrubou o principal indicador usado para mensurar a violência, a reportagem percorreu as seis delegacias especializadas em investigar homicídios na Capital, ouviu policiais, membros do Judiciário e integrantes de facções.
Uma das explicações centrais para a queda está no ataque às organizações criminosas que dominam o tráfico de drogas. E, mais especificamente, a mira voltada para o topo delas. Isolamento, descapitalização e responsabilização dos chefes estão entre as táticas apontadas como fatores essenciais para desestabilizar o crime. Aliado a isso, os próprios quadrilheiros teriam se dado conta de que as execuções e a ostentação da violência — com esquartejamentos e mortes gravadas — colocam suas áreas na mira da polícia, e afetando os negócios.
Embora sustentem sua base no tráfico, essas quadrilhas exploram atividades paralelas, como contrabando de cigarros e de armas, jogos de azar, roubos de carros e prostituição. Em alguns casos, atuariam até como espécie de milícia, cobrando taxas para serviços de comércio do gás e de bebidas.
— Esse sufoco que estamos dando nas organizações criminosas é o que efetivamente tem reduzido o número de homicídios. Eles (criminosos) temem que o líder seja identificado e isolado — analisa a diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, delegada Vanessa Pitrez.
A transferências dos comandantes de facções ganhou ênfase há cerca de dois anos, durante a Operação Pulso Firme. Na ofensiva, 27 líderes foram enviados para penitenciárias federais em outros Estados. Entre eles, estavam as principais cabeças das organizações criminosas que dominam o mercado das drogas na Capital. Após a medida, o chefe de uma delas confidenciou a um membro do Judiciário:
— Doutor, cansamos de perder tempo na guerra. Agora, vamos ganhar dinheiro no crime.
Para os policiais, embora a transferência tenha ocorrido em julho de 2017, os reflexos seriam intensificados com o tempo. O afastamento dessas lideranças impacta na forma de atuação dos subordinados. É um dos principais fatores apontados, tanto pela polícia quanto pelos próprios criminosos, para a redução. Dentro dos grupos, os chefes impõem seu ritmo. Quando estão longe, há alterações:
— Se é um cara violento, o grupo será violento, se é mais para um trato empresarial do tráfico, a coisa vai se voltar para isso. Se o líder é enfraquecido, o grupo também é — pontua o titular da 6ª DHPP, delegado Newton Martins de Souza.
O comandante da Brigada, coronel Mario Ikeda, faz coro aos delegados de homicídios da Capital:
— Estamos colhendo frutos. Começando pela remoção de líderes, o mapeamento das facções, ações pontuais para tirar integrantes de circulação. Tudo isso com inteligência e na integração entre os atores da segurança pública.
O que explica a queda de homicídios
1. Mais policiais e equipamentos
Para o governo, a redução está vinculada aos investimentos em pessoal e tecnologia. Concursos para servidores da segurança pública foram realizados e, com mais policiais nas ruas, os índices tendem a se reduzir. Armamentos — pelo menos 1,3 mil equipamentos — e veículos — 318 viaturas —, também foram adquiridos ou doados por empresários, ONGs e Forças Armadas.
2. Tecnologia
No departamento de homicídios, por exemplo, a área de inteligência possui mapeamento de todas as áreas conflagradas pelo tráfico. O banco é abastecido com todas as ocorrências de assassinatos, o que permite correlacionar um fato ao outro com maior agilidade, além de vincular o crime ao grupo que domina o local.
3. Prisões
Entre janeiro e maio deste ano, 289 pessoas foram presas por suspeita de envolvimento em casos de homicídios na Capital. Somente em maio, foram 57 detenções, segundo a Polícia Civil. Há dois anos, a delação de um gerente do tráfico que atuava no bairro Mario Quintana, e está inserido em programa de proteção à testemunha, gerou quase 200 prisões.
4. Atendimento na cena do crime
No DHPP, policiais preenchem um relatório padrão no local do crime, que é o primeiro atendimento feito pela investigação. São ouvidos e gravados depoimentos, buscam-se testemunhas, imagens de câmeras, fotos e possíveis suspeitos. Com a melhora dessa investigação inicial, o delegado que ficará com o caso, ao receber a ocorrência, tem maiores chances de elucidar o caso e prender o autor.
5. Ataques aos chefes
Isolar em penitenciárias federais e responsabilizar os chefes das facções pelos homicídios que ocorrem em suas áreas de atuação é uma forma de frear as ordens de execuções. Nessas prisões, o contato com familiares é bem mais restrito, já que na maioria dos outros presídios acabam tendo acesso a celulares, ainda que sejam proibidos.
6. Golpe nas finanças
As operações com foco na lavagem de dinheiro são vistas como essenciais para reduzir o poder das facções. Sem recursos, fica mais complexo adquirir armas, arregimentar novos membros e, inclusive, comandar novas execuções de rivais.
7. Mais denúncias
A polícia tem recebido mais informações anônimas, o que é visto como reflexo especialmente das operações em áreas conflagradas. Com criminosos presos, a comunidade, muitas vezes coagida pelo tráfico, sente um pouco mais de segurança para denunciar os atos, ainda que de forma anônima.