O Rio Grande do Sul retrocedeu mais de cem anos no tempo e revive hoje a decapitação de inimigos, barbárie que parecia sepultada junto com as guerras civis entre pica-paus e maragatos no século 19. Como? Pistas a respeito dessa involução podem ser encontradas no livro Falange Gaúcha – O Presídio Central e a História do Crime Organizado no RS, do jornalista Renato Dornelles, que está sendo relançado pela editora Diadorim, dos jornalistas Denise Nunes e Flávio Ilha.
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A obra original, lançada em 2008, poderia ter sido escrita ontem. Quase 10 anos após o lançamento, a situação só mudou para pior. O livro recapitula as origens da violência que assola nas últimas décadas o território de São Pedro (a província gaúcha) a partir de sua força-motriz, os presídios. Pois é de trás das grades que a maior parte dos crimes é planejada, aqui ou em outras partes do Brasil. Os grandes assaltos, sequestros e homicídios são ordenados desde o cárcere. Desde sempre.
Civilizado na imagem, o Rio Grande do Sul já tinha suas facções quando a maior organização criminosa do país, o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), sequer tinha sido imaginado. A inspiração para o famigerado PCC surgiu dentre os sobreviventes do Massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos foram mortos pela PM em São Paulo. Até a consolidação dessa que viria a ser a maior facção brasileira se passou uma década e só por volta de 2001 o PCC fez a primeira grande rebelião.
Pois os gaúchos nesta época já tinham três facções. A primeira e mais famosa é a que dá o nome ao livro de Dornelles, a Falange Gaúcha. Foi inspirada no Comando Vermelho carioca, mas, ao contrário desse – que se consolidou com o tráfico de drogas –, a Falange era formada majoritariamente por assaltantes. Dentre eles, o mais notório no RS, Dilonei Melara, que cumpria pena pelo assassinato de dois agentes penitenciários, durante o resgate de um preso por eles escoltado.
Pois a Falange rachou ainda nos anos 80 e dela surgiram dois outros grupos. O principal era formado por traficantes dos morros da Cruz e Maria da Conceição, com líderes como Carioca e Jorginho da Cruz. Ambos morreram assassinados na prisão e Melara, seu adversário, foi morto ao sair do presídio. O outro grupo, surgido no início dos anos 90, era Os Brasa, comandado por um ex-PM, Valmir Benini Pires.
Nenhum desses três grupos sobreviveu com essa nomenclatura. A Falange (dos assaltantes) deu origem a Os Manos, hoje uma das maiores organizações criminais do Estado. Os traficantes dos morros criaram o Unidos pela Paz e agora parte deles integra a facção Os Abertos. Duas outras facções surgiram então e se destacam pela crueldade: os Bala na Cara e os V-7 (maior dentre os que se opõem aos Bala). Essas últimas protagonizam o capítulo horrendo das decapitações.
Prato cheio para Renato Dornelles – o popular Renatinho do Diário Gaúcho, do samba e do cinema. Ele eviscera essas metamorfoses no livro Falange Gaúcha, agora de editora nova (a Diadorim) e atualizado com a guerra fratricida entre as facções renomeadas. O livro, inclusive, virou filme de sucesso nacional: o documentário Central, codirigido por Tatiana Seger e pelo mesmo Renatinho. Num lance de ousadia, eles colocaram filmadora na mão dos presos, que documentaram em vídeo sua rotina. Ficou curioso? Corra para a livraria e, de posse do livro, mergulhe nesse Rio Grande subterrâneo e à margem da lei.
FALANGE GAÚCHA: O PRESÍDIO CENTRAL E A HISTÓRIA DO CRIME ORGANIZADO NO RS
De Renato Dornelles
Reportagem. Diadorim, 178 páginas, R$ 40.