Com 19 anos, completados em junho, o adolescente que participou do assalto a uma loja na Avenida Assis Brasil, em Porto Alegre, em 29 de dezembro de 2016, estaria preso no sistema prisional – ou em local similar – por latrocínio se a PEC da maioridade penal estivesse em vigor. Então com 17 anos, Marcos, que nesta reportagem ganhou nome fictício, é considerado pela Polícia Civil como o chefe da quadrilha que entrou no estabelecimento às 9h30min daquela quinta-feira.
Na saída, após render clientes e empregados e fugir com R$ 3 mil, 36 celulares e outros eletrônicos, parte do bando trocou tiros com o funcionário da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) Carlos Henrique Severo, que foi baleado na cabeça. O agente de trânsito morreu horas depois no Hospital Cristo Redentor.
Marcos foi apreendido e levado para a Fase em 11 de janeiro de 2017, uma quarta-feira, ao ser pego praticando outro assalto. A estadia no sistema para menores durou menos de uma semana. Ele foi resgatado por criminosos na terça-feira seguinte, quando voltava à Fundação depois de audiência. Três pessoas armadas abordaram os monitores no portão de entrada e levaram o menor até um carro, utilizado na fuga. Passaram-se algumas semanas até que Marcos fosse recapturado e recolhido novamente.
Sentado em uma cadeira na biblioteca da Fase na Capital, o rapaz franzino e de estatura média conversou com a reportagem, mas não comentou o resgate, apenas o latrocínio:
— Estávamos em 10 (pessoas). Nos dividimos em dois grupos para entrarmos na loja. Quando estávamos na rua, correndo para ir embora, alguém disparou contra o meu grupo. Os outros, que vinham mais atrás, viram e executaram o cara (agente de trânsito). Jamais teria coragem de matar alguém. Na verdade, queríamos apenas roubar – disse.
O rapaz de 19 anos foi parar oito vezes na Fase respondendo por atos como homicídio, roubo a residência, roubo de veículo e porte ilegal de arma de fogo. Quando deixar o sistema, no máximo em 2020, todas essas infrações serão varridas da sua ficha por terem sido cometidas antes dos 18 anos, como prevê o ECA. No internato, concluiu o Ensino Médio e fez cursos de Ocupação Administrativa e de Empreendedorismo e Inovação. Somente para atividades de aprendizado pode sair do seu dormitório individual de cinco metros quadrados, que se encerra na porta de grades trancada com cadeado. Bandeiras do Grêmio e fotos da família nas paredes enfeitam o cômodo:
— A Fase fecha uma grade para nós, mas abre muitas portas. Na cadeia, não teria essa oportunidade de me recuperar.
Quando terminar de cumprir a medida, afirma querer sair de Porto Alegre para recomeçar longe da criminalidade.
Enquanto isso, ao casal de filhos, ao enteado — todos na faixa dos 20 anos — e à mulher do agente da EPTC restam as lembranças do Réveillon trágico que seria de festa. O carro já estava abastecido e as malas acomodadas no porta-malas para a viagem que fariam ao litoral no dia em que Severo foi morto fazendo bico de vigia, atividade que garantia esse tipo de lazer à família.
Desde então, o fim de ano passou a ser visto de outra forma. Desta vez, a sensibilidade aflorou a ponto de impedir, pela emoção, que a única irmã de Severo conseguisse conversar com a reportagem. A companheira dele, também abalada, resumiu o sentimento em uma frase: "Ainda dói muito". O filho de Severo, em razão da morte do pai, teve de adiar o ingresso na faculdade por falta de dinheiro. Embora sua mulher trabalhasse, era Severo quem garantia a estabilidade financeira. Para a amiga Janize Cavalcanti, 57 anos, este período de festas de final de ano é o mais doloroso.
— É quando ficam todos sem chão.
Doutora em psicologia, Débora Dell’Aglio comenta que a morte violenta é mais traumatizante por ser inesperada e que, em geral, os familiares se questionam por que aquela pessoa tomou a atitude deliberada de matar:
— É incompreensível para a gente.
A especialista sugere que, para alguns, além de buscar ajuda especializada, é saudável compartilhar a dor com quem viveu experiência parecida e até envolver-se em causas que combatem aquele tipo de violência sofrida, mas reforça que cada pessoa reage de maneira diferente e que, por isso, não há receita única. Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRPRS), a psicóloga Priscila Detoni acrescenta que o luto não tem tempo pré-estabelecido para ser superado.