Se você não está com grande empolgação para festas de fim de ano e o Carnaval, tranquilize-se – há mais pessoas assim. Nos últimos meses, cada vez mais terapeutas escutam em consultório o mesmo relato: muitos brasileiros, após passarem quase dois anos imersos em maratonas de Netflix em meio a algum grau de isolamento, encontram dificuldade em socializar na retomada aos contatos presenciais.
Em um momento no qual a covid-19 apresenta níveis mais baixos de transmissão e ao menos 70% da população gaúcha tomou duas doses, finalmente especialistas em saúde afirmam em consenso: é seguro e, inclusive, saudável, reencontrar pessoas, com preferência aos ambientes ao ar livre e bem ventilados.
Todavia, se muitos brasileiros estavam ávidos para rever o maior número de amigos, outros (privilegiados, que puderam isolar-se em casa) agora enfrentam um dilema introspectivo: não desejam rever todo mundo. A maior dificuldade é deixar o lar para cumprir a etiqueta social do trabalho presencial e encontrar amizades que não fizeram parte daquele círculo mais restrito visto ao longo da pandemia, nos momentos de maior vulnerabilidade.
Conhecida por ser extrovertida, a servidora pública e produtora cultural Lívia Biasotto, 36 anos, passou os dois últimos anos isolada sozinha no apartamento e, depois, no Interior e na praia, em meio à natureza. Ao retomar a vida em Porto Alegre no último mês, o que incluiu encontros a trabalho e saídas com amigos, viu-se deslocada.
— Quero encontrar todo mundo mas, às vezes, dá vontade de sair correndo. Muita gente está com minha imagem de antigamente: uma pessoa que circulava em muitos eventos e vivia rodeada de gente. Não sabem que repensei muito minha vida, me transformei em uma pessoa low profile, que gosta de conviver com pessoas, mas que agora precisa de momentos de silencio e solitude. É difícil explicar que tu não estás com a expectativa de retomar a normalidade e cair num bloco de Carnaval — conta.
Se parcela dos brasileiros passou dois anos restritos ao convívio com pessoas extremamente próximas – indivíduos para quem era possível apresentar-se triste, infeliz, ansioso, descabelado e sem maquiagem –, rever pessoas mais distantes, que exigem a apresentação de uma máscara social, pode soar como sair de casa diretamente para uma passarela de moda, explica o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) – leia a entrevista aqui.
— Eu dividiria a insegurança de sair em dois degraus: estou há tanto tempo sem fazer isso, será que não desaprendi? Sei me comportar nesse espaço público? Ainda sei paquerar? Esse tipo de insegurança se resolve com a experiência. Mas há um segundo tipo de insegurança que gera ansiedade: a que brotou de meses pensando que o outro é perigoso e que pode portar um vírus mortal. Aí, sinto angústia quando saio na rua, vou evitar aquela festa para a qual fui convidado. Há uma diferença entre quem vai rompendo o medo aos poucos e aquele para quem não adianta ir devagar — diz Dunker.
No segundo caso, em que o medo pode paralisar, buscar terapia é uma boa opção. O médico Ives Passos, professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador dos efeitos da pandemia na saúde mental, destaca que a introspecção de agora vem sendo chamada por estudiosos de “ansiedade na reentrada”.
— Quando as pessoas estavam em trabalho remoto, tinham controle maior das variáveis que poderiam acontecer dentro de casa. Quando se vai ao mundo de fora e se restabelecem laços sociais em outros territórios, pode surgir uma ansiedade, porque o grau de controle diminui, não só por conta de novas situações que podem acontecer, mas também pelo risco de pegar o vírus — diz o psiquiatra.
Retomar laços é importante para boa saúde mental
Passos destaca a importância do contato presencial como protetor de questões como ansiedade e depressão. O contato ao vivo, e não mediado pelas tecnologias, é defendido com unhas e dentes pela psicóloga canadense Susan Pinker, autora do livro The Village Effect: How Face-to-Face Contact Can Make Us Healthier and Happier (O efeito aldeia: como o contato presencial pode nos deixar mais saudáveis e felizes, em tradução livre), publicado em 2014.
— Essa conversa boba de "você viu o jogo ontem?", "você viu aquele gol genial?" parece não ter sentido, mas tem grande importância. A interação protege mais a saúde do que perder peso ou parar de fumar. Há milhares de estudos mostrando a importância de fazer exercícios para a longevidade, mas é mais importante não estar sozinho — afirmou Pinker a ZH em 2017.
A arquiteta Mariana Mincarone, 28 anos, que passou os tempos de pandemia isolada com o namorado e a família em um sítio na Lomba do Pinheiro, zona sul da Capital, diz que está se adaptando à nova realidade. Ela perdeu um pouco de traquejo social, mas espera retomá-lo no futuro.
— Me cansa muito ver pessoas e bater papo banal, parece que nem sei como retomar esses contatos. Noto que tem muita gente à vontade, curtindo, e eu me sinto estranha. Eu sou super extrovertida, agora que estou mais introspectiva. Hoje, parece que é mais difícil fazer essa performance social. Mas é um processo: no começo, muita gente via só a família, depois amigos mais próximos e depois os outros amigos. Eu estou dando prioridade para ver quem é mais próximo. Aos poucos, vou ampliando — diz Mariana, enquanto fala de uma praia do Nordeste, onde foi ver uma amiga próxima.
Muitos dos que se isolaram realizaram um balanço da vida, viveram uma epifania e se transformaram. Para estes, certos amigos e contatos podem ter perdido o sentido – e tudo bem, faz parte deixar algumas pessoas no passado. A questão é refletir: isso decorre de uma reflexão profunda ou de uma ansiedade do momento?
A hesitação em rever certas pessoas pode também ter nascido da decepção oriunda de um Brasil polarizado: quem teve a opção e não respeitou o isolamento cometeu, aos olhos de quem se afasta, grave falha ética, o suficiente para desmotivar o reencontro, cita Maria Ângela Bulhões, integrante da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e psicóloga no ambulatório Melanie Klein, do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
— Vivemos uma polarização complicada. Cada um vai para seu lugar para não brigar. Não ter conflitos virou um valor. Fica mais fácil não se relacionar porque relacionamento implica lidar com ideias diferentes. A ideia que está no ar hoje é de que muita convivência faz as pessoas não se suportarem. E conviver dá trabalho — diz a psicanalista.
Mas Bulhões destaca que a vida traz movimento apenas quando convivemos com diferenças, que servem para ensinar. A reflexão que ela traz é: as diferenças com amigos menos próximos se tornaram inconciliáveis ou ainda é possível manter o contato com aquela pessoa a quem não recorremos em momento de urgência, mas que ainda assim proporciona boas risadas e diversão?
— É no contato com o outro que sou transformado e transformo o outro. A vida que vale a pena é aquela em que tu te arriscas a discutir com pessoas que pensem diferente, a se apaixonar por alguém que tu nem imaginas que poderia — diz a psicanalista.
O que especialistas em saúde mental pregam não é que brasileiros se aglomerem desenfreadamente, como se a pandemia houvesse acabado, mas que se proponham a retomar laços afetivos em um cenário no qual encontros presenciais são mais seguros. Isso envolve, também, encontros com amigos de um segundo círculo de intimidade.
— Teve um tempo para se isolar em função do vírus. E há um tempo para retomar alguns hábitos sociais e sair do isolamento. É redescobrir velhos gostos, velhos amigos. Agora é o momento de resgate. A vida humana são relações — acrescenta Bulhões.
A boa notícia é que socializar é como um músculo: quanto mais exercitamos, melhor ficamos. Uma das saídas para quem enfrenta dificuldades é retomar aos poucos – e buscar, quando possível, momentos de refúgio. É o que faz a produtora cultural Lívia Biasotto:
— É muito legal voltar porque a gente reencontra nossos afetos. Mas me vi reproduzindo em Porto Alegre um fim de semana pedalando sozinha até a Zona Sul, porque eu precisava. Tenho visto, agora, minha rede de apoio da pandemia. Não sinto que não quero ver outras pessoas, mas é o tempo de cada um. Sigo extrovertida, mas dei uma freada. Agora, estou bem “pianinho” — reflete.
Dicas para lidar com o desconforto na retomada do presencial
– A avaliação de que é seguro encontrar-se presencialmente é também dos médicos mais conservadores, para quem Rio Grande do Sul e, sobretudo, Porto Alegre, vivenciam controle da epidemia.
– As estatísticas também apontam para um cenário seguro: Porto Alegre chegou, nesta semana, a cerca de 40 pessoas com coronavírus em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) – no pior momento da epidemia, em março, eram mais de 900. A média móvel de mortes por covid-19 é, desde o fim de outubro, de duas vítimas diárias – em março, eram mais de 60. Discute-se que a capital gaúcha esteja em endemia.
– A Ômicron chegou e merece cuidados. Mas, se você recebeu duas doses da vacina recentemente (e reforço, caso seja apto), estará protegido contra adoecimento grave. Priorize encontros em ambientes ao ar livre e bem arejados.
— Faça um esforço para rever velhos amigos. Não são apenas os mais próximos que provocam boas sensações e memórias. Lembre os locais que você gostava de frequentar antes da pandemia.
— Se marcar uma saída traz pressão para você, seja espontâneo e apareça sem avisar naquele encontro com amigos.
– O sonho do ser humano é se bastar a si mesmo, lembra a psicanalista Maria Ângela Bulhões. No entanto, isso não é possível. A questão não é o número de pessoas com quem convivemos, mas entender que se fechar apenas em poucos amigos e familiares pode restringir experiências.