Ansiedade, medo de sair à rua, insônia, desânimo e sensação de incapacidade para retomar o trabalho e as aulas. Depois de desenvolver um quadro grave de covid-19, que exigiu internação em unidade de terapia intensiva (UTI), entubação e passagem por dois hospitais, Laura Mello dos Santos, 20 anos, teve de lidar com dificuldades de cunho emocional que não conhecia, mesmo com a progressiva melhora física.
— Era muito perturbador pensar que tinha que sair, ficar longe da família. Parece que virei criança de novo. Me sentia miudinha. É como se uma Laura antiga tivesse ido para o hospital e uma Laura nova tivesse voltado para casa — define a estudante de curso técnico em Contabilidade, que sempre gostou de viajar e se reunir com amigos.
O abalo mental sentido por pacientes que enfrentam as formas mais severas da infecção pelo coronavírus vem sendo acompanhado com atenção por especialistas e estudiosos (leia mais abaixo). Pelos próximos anos, a chamada covid longa (sequelas persistentes após a doença) será um dos grandes desafios da medicina e das autoridades em saúde. Sentir sintomas como os de Laura é considerado dentro do esperado por um período de até um mês após o retorno para casa, mas quando a situação ultrapassa esse prazo é recomendado que se busque ajuda profissional.
Muito abalada após o período de solidão na UTI, onde trocava o dia pela noite, Laura continuou com dificuldade para conciliar o sono ao retornar para casa, no bairro Partenon, em Porto Alegre.
— Não conseguia dormir, parecia que eu voltava para lá. A sensação em volta do corpo era de como se eu estivesse no hospital — recorda.
Muito apegada à mãe, a educadora infantil Cláudia Lúcia Azevedo Mello dos Santos, 56 anos, Laura dividiu a cama com ela por algumas noites. Depois de voltar para o próprio quarto, chamava por Cláudia quando despertava, chorando, de madrugada. Rezavam juntas. A menina ganhava um chá e companhia até conseguir adormecer de novo.
— Ela só se sentia bem se eu ficava junto. Quase dois meses depois da alta, ela continuava desse jeito. Comecei a me desesperar — lembra Cláudia.
Na passagem da jovem pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) durante a enfermidade, em novembro do ano passado, a família criou bom vínculo com a médica geneticista Lavínia Schüler-Faccini, integrante do grupo de comunicadores da instituição, que transmite a familiares, diariamente, informações sobre os pacientes internados. Cláudia pediu orientações sobre como ajudar a filha e foi encaminhada a um serviço do Sistema Único de Saúde (SUS) no início deste ano.
Com terapia e medicação, Laura se sente melhor. Depois de desistir do estágio profissional que cumpria antes de adoecer — e para o qual não conseguiu voltar, por se sentir mal ao tomar o rumo do escritório, como se estivesse revivendo o dia que antecedeu a hospitalização —, está empregada novamente, em um local onde se sente acolhida pelas supervisoras, e na reta final do curso profissionalizante. Tentou se inscrever para um estudo de vacina contra a covid-19, mas não pôde participar por já ter tido a doença. Agora, vibra com a ampliação da faixa etária para imunização, que passou a contemplar sua idade desde a última quinta-feira (19).
— Me acalmei muito, muito, muito. Aos poucos, estou conseguindo "desgrudar" um pouco — conta a estagiária, que adora estudar e cogita tentar formação superior em Ciências Contábeis ou Direito.
Fazendo planos para morar com o namorado, Laura introjetou um ensinamento aprendido nos últimos meses:
— Preciso ter calma. A única coisa que vai resolver o que tenho é o tempo. Tenho que dar tempo ao tempo e esperar.
O trauma de não saber se "vai voltar"
Coordenadora do Núcleo de Estudos e Tratamento do Trauma Psíquico (NET-Trauma) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), a psiquiatra e psicanalista Lúcia Helena Machado Freitas explica que, antes da pandemia, o atendimento era focado em pacientes vítimas de violência urbana ou doméstica. A partir da eclosão da crise sanitária do coronavírus, começaram a chegar pacientes que haviam enfrentado a covid-19, especificidade que vem sendo pesquisada.
— O que sabemos até o momento: estamos vivendo um trauma coletivo, compartilhado, de magnitude planetária, uma coisa descomunal. Uma dor que, muitas vezes, não tem palavras para se definir — descreve Lucia, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A definição de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), por exemplo, está sendo rediscutida pela comunidade científica, levando-se em conta a situação atual.
— O critério mais importante para TEPT envolvia ter sofrido evento traumático. A pandemia não estava incluída, e agora isso terá que ser revisto. Se vamos considerá-la ou não um evento traumático, está em discussão dentro do campo científico. Tem pessoas que terão covid-19 e será leve, ficarão em casa, e pessoas com risco de morte, na UTI. Quem se aproximou muito disso acaba sofrendo risco de desenvolver transtornos — afirma a psiquiatra Stefania Pigatto Teche, médica e professora da residência médica em Psiquiatria do HCPA, cocoordenadora do NET-Trauma e membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre
Lúcia destaca que uma forma severa da doença, necessitando de entubação (conexão a um respirador artificial), é uma vivência de trauma terrível para o paciente e a família:
— A pessoa não sabe se vai voltar. Despede-se, vai dormir e não sabe se vai acordar ou morrer. Uma vulnerabilidade, um desamparo muito grande no paciente, no familiar, em toda a rede social e inclusive nos profissionais da saúde.
Estudos já apontam, na população que desenvolveu covid-19 grave, maior taxa de sintomas iniciais de TEPT, como pesadelos, insônia, medo adoecer e ir para a UTI de novo, falta de vontade para retomar atividades, evitar ver familiares, isolamento, alteração do humor e da concentração, irritabilidade e perda de interesse pelas coisas.
— Isso tudo vai ser esclarecido mais à frente — aponta Lúcia.
O histórico de cada um pode influenciar nos desdobramentos futuros, acrescenta a coordenador do NET-Trauma:
— Se a pessoa já tem uma vulnerabilidade, uma doença psiquiátrica prévia, a tendência é, ao passar até por uma covid leve, ter algum tipo de descompensação ou ficar com sintomas de TEPT. Estrutura familiar boa ou ruim não garante nada. Se é boa, claro que a probabilidade de ela conseguir superar as dificuldades da vida e essa dificuldade da covid, que é nova para nós, tenderá a ser maior, mas também não é algo absoluto. Antes da pandemia, pessoas nos procuravam com situações terríveis de trauma de infância e se saíam muito bem.
Sinais de alerta
Sintomas de instabilidade emocional podem ocorrer por até 15 ou 30 dias após a alta hospitalar de pacientes que tiveram quadros graves de covid-19. Se persistirem, é hora de procurar apoio especializado
- Permanência do medo excessivo apesar da melhora física. Por exemplo, o médico pneumologista já afirmou que está tudo bem, mas a pessoa segue aflita, temerosa de voltar a ser internada. A sensação também pode se relacionar a familiares, como o medo de que alguém seja hospitalizado pela mesma doença
- Alteração persistente do sono, com dificuldade para adormecer, interrupções e pesadelos. Dormir mal de vez em quando é esperado, mas o problema não pode se tornar rotineiro
- Pensamentos intrusivos: você está bem e, de repente, é assaltado por uma lembrança da situação vivida, sentindo abalo emocional
- Crises de choro
- Isolamento: mesmo com as medidas restritivas para prevenção da infecção por coronavírus, que demandam afastamento, é fundamental que o paciente mantenha seus vínculos e contatos, da forma que for possível e segura
- Sensação de culpa excessiva: "O que eu fiz de errado?". Refletir sobre eventuais comportamentos de risco é normal, mas essa culpabilização não pode ser demasiada
- Pessimismo constante: ideia de que nada vai dar certo
- A observação de familiares e amigos é essencial para perceber mudanças de comportamento: o paciente era tranquilo antes da enfermidade e agora está muito irritado? Passou a ficar muito ansioso e triste? Buscar ajuda profissional pode ser importante também para quem convive diretamente com essa pessoa
- A iniciativa para marcar uma consulta pode ter de partir de familiares, ao perceber que o período de alterações se prolonga
- É preciso ser ágil e não esperar demais para procurar ajuda, evitando que o quadro se torne crônico
Onde procurar ajuda
- Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), busque a unidade básica de saúde (UBS) de referência ou mais próxima para uma consulta. A equipe poderá orientar quanto a serviços de referência
- Ao longo da pandemia, profissionais, universidades, hospitais e outros serviços se organizaram para oferecer atendimento psicológico e psiquiátrico gratuito à população. Informe-se se há algo do gênero na sua cidade ou região
- Na rede privada ou por convênios, um médico de confiança, que acompanha o paciente, pode ser o primeiro contato, mesmo que atue em outra área, como ginecologia ou clínica geral. Esse profissional será capaz de ajudar e até resolver o problema ou encaminhar a um especialista
- O tratamento, se necessário, poderá envolver terapia e medicação, conforme o caso
Fontes: Lúcia Helena Machado Freitas, psiquiatra, psicanalista, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS e coordenadora do Núcleo de Estudos e Tratamento do Trauma Psíquico (NET-Trauma) do HCPA, e Stefania Pigatto Teche, psiquiatra, médica e professora da residência médica em Psiquiatria do HCPA, cocoordenadora do NET-Trauma e membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre