Rafael Dutra, 42 anos, teve alta do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) em abril de 2020. Desenvolveu um quadro gravíssimo de covid-19, dos piores — se não o pior — enfrentados pela equipe assistencial até então, com 26 dias de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), dependente de ventilação mecânica e hemodiálise. Sofreu duas paradas cardíacas. Mais de um ano depois, inúmeras sequelas permanecem, configurando a chamada síndrome pós-covid ou covid longa, que desafiará especialistas e autoridades pelos próximos anos.
O gerente de casa noturna padece de pouco fôlego, zumbido no ouvido, granuloma (lesão) em corda vocal, dormência na coxa, ansiedade e insônia. O problema mais urgente, que demanda cirurgia, é pedra na vesícula — a relação direta com a covid-19 é pouco provável, mas a doença crítica pode predispor o paciente a isso. No ano passado, Rafael realizou sessões de fisioterapia motora e respiratória. Com a melhora progressiva e pelo fato de custear o tratamento na rede particular, passou a fazer exercícios em casa, incluindo pedaladas na bicicleta ergométrica adquirida especificamente para essa finalidade. Tempos depois, admite, acabou relaxando e parou.
A redução brusca no orçamento familiar, as economias zeradas e o temor de uma reinfecção pelo coronavírus abalaram o gerente, que está sem trabalho, no aguardo de uma retomada cautelosa das atividades do setor de entretenimento na Capital. Bruna Sarate, 28 anos, a esposa, teve de entregar o espaço alugado onde atuava como micropigmentadora e agora ministra cursos em outra área.
Imunizado com as duas doses de vacina, Rafael começa a se sentir mais tranquilo, mas sem afrouxar nas medidas de prevenção, que incluem pouco contato com a filha de seis anos, que mora com a mãe — ele também é padrasto de um menino de 11 anos. As crises de ansiedade, raras antes do adoecimento, tornaram-se praticamente diárias, exigindo o consumo de medicamento controlado. O sono, que sempre foi calmo e revigorante, apesar das eventuais preocupações cotidianas, virou um tormento — para evitar até 10 despertares em uma única noite, ele toma remédio, que não garante o repouso necessário.
— Isso que eu já assimilei bastante do que passa na TV, mas fico desconfortável — conta.
Enquanto procura se organizar para tentar conseguir consultas e exames pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Rafael contemporiza:
— O que me conforta é que tem pessoas que ficam com enxaqueca, dor no corpo crônica, coisas bem mais graves. Pelo que passei, o que ficou é plausível, faz parte da doença, infelizmente. A covid-19 está deixando sequelas graves em um monte de gente.
Do período no HCPA, o paciente recorda uma conversa marcante entre médicos, ao ser transferido da UTI para um leito de enfermaria.
— Está vendo? Isso é um milagre — comentou um colega com outro.
Quadros de menor impacto também deixam rastros
Regis Goulart Rosa, médico intensivista, pesquisador do Hospital Moinhos de Vento e membro do comitê executivo da Coalizão Covid Brasil, que tem na covid longa um de seus focos de investigação, lembra que, no início da pandemia, acreditava-se que as sequelas se limitariam a curto prazo. Mais adiante, descobriu-se que os sintomas podem ser duradouros, afetando a saúde física, mental e social (o desempenho no emprego, por exemplo). O período posterior à infecção é hoje uma das prioridades da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Um grupo de determinadas sequelas, explica Rosa, já era esperado em pacientes que tiveram formas severas da doença, necessitando de cuidados intensivos. Nessas situações, pode haver surgimento ou piora de sintomas decorrentes da enfermidade crítica ou de tratamentos e drogas utilizados durante a internação, como ventilação mecânica, sedativos, bloqueadores neuromusculares, corticoides. O uso prolongado do respirador pode causar distúrbio de deglutição, aponta o médico. O que surpreende a comunidade médica é que quadros de menor impacto no organismo também podem deixar rastros.
— Não esperávamos isso, é totalmente novo e gerou alarme na OMS, que estabeleceu prioridades de pesquisa. Mesmo nos casos não graves, de pacientes que não foram hospitalizados, estudos têm mostrado alta prevalência de sintomas prolongados relacionados à covid, como fadiga, dificuldade de concentração, problemas de memória, falta de ar, tosse, palpitações, insônia, ansiedade, alterações de paladar e olfato — enumera Rosa.
Estudo de autoria de pesquisadores de Bergen, na Noruega, publicado no periódico científico Nature Medicine em junho, demonstrou que, em uma amostra de pacientes com covid-19 não grave, que não chegaram a necessitar de hospitalização, 55% deles apresentavam algum sintoma persistente relacionado à doença seis meses depois. No recorte das pessoas acima de 60 anos, 60% continuaram com algum sintoma e, entre adultos jovens (16 a 30 anos), 52%. As sequelas mais comumente descritas foram fadiga/cansaço (30% dos doentes), alterações de paladar/olfato (27%), dificuldade de concentração (19%), problemas de memória (18%), falta de ar (15%) e tosse (6%).
Ainda não há consenso sobre o intervalo de tempo que define o que é sequela persistente, observa o médico intensivista.
— Se, após a covid, os sintomas durarem mais de duas semanas e provocarem impacto na vida da pessoa, já é para se preocupar e começar a procurar ajuda para fazer diagnóstico e reabilitação específica — orienta Rosa. — A boa notícia é que grande parte dessas sequelas são reabilitáveis. Quanto mais rápido o paciente tiver acesso a tratamento, mais rápido vai voltar a seu estado de antes da doença — acrescenta.
A orientação é começar procurando um clínico geral, que poderá fazer uma avaliação completa, examinando se as queixas estão relacionadas à covid-19 ou a eventuais doenças de base, preexistentes. Assim, o médico poderá traçar um plano de reabilitação. Rosa reforça a importância de o indivíduo perceber que necessita de ajuda:
— Tem que partir do reconhecimento da pessoa de que aquilo está incomodando a vida dela. Não pode se conformar. Quem sobrevive a um quadro grave fica bastante agradecido, não quer reclamar, sente até vergonha de procurar um serviço de saúde.
"Fiquei bem debilitada. Sinto falta de ar", diz Sônia
Sônia Maria Jardim Moreno, 63 anos, também enfrentou uma forma severa de covid-19. Gaúcha radicada em Nova York, nos Estados Unidos, sentiu-se mal logo depois de desembarcar em Porto Alegre, em março de 2020, para acompanhar o nascimento do neto.
Encaminhada ao HCPA após uma consulta em clínica particular, a chef de cozinha passou por 36 dias de internação, 26 dos quais na UTI. Camila Moreno Pastorini, 38 anos, teve uma crise de pressão alta com o resultado positivo para covid-19 da mãe, e o parto de Théo foi antecipado. A equipe que acompanhou Sônia teve de driblar muitos momentos graves e uma entubação difícil.
— Se estivesse lá, não teria sobrevivido. Fui muito bem tratada aqui. Tenho muito a agradecer. Renasci aqui — emocionou-se Sônia em maio de 2020, depois da alta, recordando a situação caótica do sistema de saúde em NY no início da pandemia, com falta de leitos e respiradores.
Sônia retornou aos EUA em julho do ano passado, ainda bem debilitada, de cadeira de rodas. Sentia-se fraca, sem fôlego. Viajou outra vez a Porto Alegre no final de 2020, quando começou a se sentir melhor e retomou as atividades físicas. Embarcou outra vez para Nova York em fevereiro último, ansiosa pela vacinação.
Aposentou-se por invalidez e faz acompanhamento mensal com pneumologista, contando com a cobertura de um seguro de saúde. Sofria de asma desde antes da covid-19, mas não dependia das duas bombinhas a que recorre agora — uma de uso regular, outra para emergências.
— Minha vida mudou muito. Fiquei bem debilitada. Sinto diferença na respiração, falta de ar. Qualquer coisinha, começo a tossir e fico com medo. Sinto muito cansaço. Ao subir as escadas do trem, 18 degraus, tenho que parar um pouco. Antes, isso não acontecia. Se caminho rápido, me sinto ofegante — relata Sônia, aproveitando uma tarde recente em um banco no Central Park, por videochamada.
Na recuperação, a chef cogitou uma mudança definitiva para o Brasil para viver perto da família. Por ora, o plano é transitar entre os dois países — já tem passagem comprada para o Rio Grande do Sul para o final de outubro —, aproveitando o verão de cada hemisfério e mantendo todos os cuidados.
— A vacina não impede a contaminação. Tive uma chance que acho que não vou ter de novo — conclui.