O nariz entupido parecia um mero resfriado. Quando um colega começou a passar café na sala de descanso do hospital onde trabalha, em Porto Alegre, a médica intensivista Diana Margarita Cascán Valiente, 39 anos, entendeu que tinha algo errado: não sentia o cheiro da bebida.
— Me liguei que podia estar com covid. Escrevi para a minha chefia dizendo que não estava sentindo cheiro do café e fui direto fazer o teste. Deu coronavírus — conta ela.
O episódio, no fim do ano passado, deixou Diana aflita. Tinha ouvido relatos de pessoas que haviam se infectado e permanecido por dias ou mesmo semanas sem sentir o aroma ou os sabores dos alimentos. Em menor intensidade, seu paladar também havia sido afetado.
— Também perdi o gosto, mas não muito, foi mais o olfato. Não sentia o cheiro da bergamota, não sentia o cheiro do meu perfume. Isso incomoda. A pessoa está tão acostumada com esse sentido, que não dá valor. As pessoas têm seu cheiro, e não sentir isso te deixa angustiado.
Um estudo realizado no ano passado pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-USP) apontou que a perda de olfato e de paladar é muito comum entre os pacientes contaminados pelo coronavírus. Das 580 pessoas entrevistadas, 80% apresentaram distúrbio de olfato, conhecido como anosmia, e 76% de paladar, fenômeno ligado à anosmia. Os sintomas acometeram tanto os que tiveram quadro grave e precisaram de internação quanto os que tiveram a forma leve da doença. Uma parte dos pacientes que participou da pesquisa seguiu em acompanhamento para avaliar como seria a recuperação. Em um período de dois meses após a infecção, 54% recuperaram os sentidos e 43% recuperaram apenas parcialmente. O restante, cerca de 3%, não apresentou qualquer melhora.
Não sentia o cheiro da bergamota, não sentia o cheiro do meu perfume. Isso incomoda. A pessoa está tão acostumada com esse sentido, que não dá valor
DIANA MARGARITA CASCÁN VALIENTE
Médica que perdeu o olfato após o coronavírus
Médico otorrino que participou da pesquisa, Fabio Pinna explica que, ao entrar no nariz, o vírus Sars-Cov-2 provoca uma reação inflamatória muito forte que leva à destruição dos receptores do olfato. Em uma escala menor, também há danos aos receptores do paladar. Como a covid-19 é uma doença nova, é cedo para afirmar se existe a possibilidade de o olfato se perder para sempre. Em pouco mais de um ano de pandemia, há casos, ainda que poucos, de pessoas que ainda não voltaram a sentir os cheiros. A demora para buscar ajuda médica pode agravar a situação.
— A mensagem é a seguinte: se passaram os 14 dias após o diagnóstico e o olfato não melhorou, procure um otorrino. Quanto mais cedo tratar, melhor. Mesmo que exista uma perda tardia de olfato, após dois meses, nunca é tarde para tratar — diz ele.
Queixa comum
Segundo o otorrino Fernando Barcellos do Amaral, que atua nos hospitais Conceição e Mãe de Deus, em Porto Alegre, a perda de olfato era um problema incomum antes da pandemia. Com a covid-19, passou a ser uma queixa recorrente nos consultórios e emergências dos hospitais, o que pode facilitar médicos e pacientes a detectarem a doença.
— Converso com vários colegas e todos dizem a mesma coisa: essa queixa da falta de olfato é bem específica da covid-19. Febre pode ser várias coisas, dor de cabeça também, mas alteração de olfato e de paladar são muito peculiares da covid. E é importante para os leigos saberem, porque serve de alerta para a pessoa se resguardar em casa — diz.
Além da perda de olfato e de paladar, a covid-19 também pode provocar a parosmia, quando a pessoa sente cheiros distorcidos. Amaral cita um exemplo que já ouviu de paciente: o feijão com odor de óleo diesel. E também tem a fantosmia, que é sentir um cheiro que não existe. Outro exemplo que o otorrino traz: a pessoa está em um lugar sem qualquer cheiro e começa a sentir aroma de baunilha.
Apesar de desconfortável, deixar de perceber cheiros tão marcantes pode ser o menor dos problemas. Colega de profissão de Diana, a médica Regina Fior Giacomolli, 26 anos, quase provocou um acidente doméstico quando perdeu o olfato após pegar coronavírus no inverno do ano passado. Havia colocado nozes para tostar no forno do fogão e foi para a sala assistir TV. Só percebeu que a comida tinha queimado quando viu fumaça saindo da cozinha.
As nozes se desmanchavam de tão torradas.
— Não sentia sequer o cheiro da fumaça, mas o olho ardia — lembra ela.
Regina recuperou o olfato em uma semana, mas Diana só voltou a sentir odores após 14 dias, e a recuperação foi parcial. O cheiro vinha de forma muito intensa e, às vezes, ficava sem sentir nada novamente. Precisou buscar tratamento para que voltasse ao normal. Os médicos costumam dar remédios para tentar regenerar os receptores do olfato, além de indicar um treinamento em que o paciente inala ingredientes como cravo e canela, entre outros itens, para que o cérebro assimile essas fragrâncias novamente. Médica otorrino do ambulatório pós-covid do Hospital São Lucas da PUCRS, Viviane Feller Martha diz que, nos primeiros dias da doença, a pessoa que perdeu o olfato pode fazer em casa o exercício de cheirar produtos até recuperar o sentido. No entanto, deve procurar um médico se a situação persistir.
— A maioria dos pacientes recupera o olfato dentro dos primeiros 15, 30 dias. Quando passar desse tempo e o paciente não recuperar nada, ou só recuperar parcialmente, deve fazer uma avaliação com o médico.
Colocar o nariz no pote de café logo ao acordar foi o método da publicitária Francine Ramos, 26 anos. Diagnosticada com a covid-19 nesse verão, ficou quase um mês sem sentir o cheiro e o gosto dos alimentos:
— Teve um dia em que pedi sushi por causa da textura do peixe, porque eu só sentia a textura das comidas, mas comi na maior tristeza. Gosto nenhum.
Não havia sabor porque paladar e olfato estão intimamente ligados. Segundo o otorrino André Pinna, ao comer, também sentimos o cheiro do alimento, o que torna a comida mais apetitosa. E ainda que a perda do olfato seja menos grave do que perder a vida para a covid-19, deixar de sentir o cheiro da feijoada e do café passado pode ter um impacto brutal na vida das pessoas.
— Tem a relação do olfato com memória, lembranças, humor. Claro que perder a vida nem se compara com perder olfato, mas em um paciente que sobrevive, essa privação é uma sequela chata, que incomoda — reflete Pinna.
Há uma recomendação importante para os casos em que o olfato ainda não foi restabelecido: instalar detectores de fumaça na casa para evitar acidentes domésticos, como as nozes torradas da Regina.
Como fazer o treinamento em casa para recuperar o olfato
Confira dicas da médica otorrino Viviane Feller Martha, do ambulatório pós-covid do Hospital São Lucas da PUCRS, para recuperar o olfato e o paladar. Esse treinamento pode ser feito nos primeiros dias do sintomas. Escolha quatro dos seguintes produtos:
- Canela
- Café
- Cravo
- Essência de baunilha
- Mel
- Suco de maracujá
- Pasta de dentes de menta
Depois, basta aproximar cada um dos produtos do nariz e ficar inalando por 20 segundos, com intervalo de 10 segundos entre cada uma das substâncias. O exercício deve ser feito duas vezes por dia. A pessoa precisa prestar atenção para notar se há evolução com o passar dos dias, além de avaliar se começou a sentir o cheiro de forma mais fácil. Com o tempo, deve fazer os exercícios afastando o produto do nariz. Se após 14 dias do diagnóstico da doença o olfato não for recuperado, é importante buscar um médico.