Se você não está com grande empolgação para festas de fim de ano e o Carnaval, tranquilize-se – há mais pessoas assim. Nos últimos meses, cada vez mais terapeutas escutam em consultório o mesmo relato: muitos brasileiros, após passarem quase dois anos imersos em maratonas de Netflix em meio a algum grau de isolamento, encontram dificuldade em socializar na retomada aos contatos presenciais.
Se parcela dos brasileiros passou dois anos restritos ao convívio com pessoas extremamente próximas – indivíduos para quem era possível apresentar-se triste, infeliz, ansioso, descabelado e sem maquiagem –, rever pessoas mais distantes, que exigem a apresentação de uma máscara social, pode soar como sair de casa diretamente para uma passarela de moda, explica o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Confira a entrevista do especialista:
A pandemia obrigou grande parte das pessoas a se isolar em casa. Agora, muitas começam a sair, mas têm dificuldade em retomar o contato com quem não era bastante próximo. A pandemia deixou algumas pessoas mais introspectivas?
A pandemia foi um convite para selecionarmos e revisarmos nossas relações sociais e laborais. Nos Estados Unidos, 4 milhões de pessoas pediram demissão. Quando passa um tempo, você nota que muitas pessoas não fazem tanta falta assim. Outras, pelo contrário, que você via menos, passam a crescer dentro da avaliação subjetiva. Para quem ficou estritamente em casa e usou máscara, ver aquele vizinho que era legal saindo o tempo todo gerou uma raiva invejosa. Isso cria um abalo nas relações. O Natal passado foi muito tenso: representou um choque de políticas entre pessoas que a princípio se gostam. Quando alguém foi naquela festa e não usou máscara, portanto furou minha quarentena enquanto eu fazia um enorme sacrifício para manter a máscara e minha quarentena, esse alguém se torna depositário da minha raiva e indignação. Quando a gente sai e reencontra, há muitas vezes decepção porque muitas pessoas com as quais não tivemos contato se transformaram. E há uma síndrome da caverna: sair de casa depois de tanto tempo não permite que você se porte da mesma maneira, as coisas não acontecem no mesmo tempo, você tem que pegar fila, a outra pessoa se atrasa.
Qual o perfil dessas pessoas que estão mais introspectivas?
Você terá aquelas pessoas para as quais a pandemia fez bem: a pessoa se recolheu e ela está melhor, não precisa sair todo dia para se vestir, fazer a cara alegre falsa para o chefe. Essa pessoa foi para a introspecção porque a realidade colaborou para seu modo de sofrimento. O segundo tipo de introspectivo está fugindo e com medo do outro. Aí, será aquela pessoa de classe média, que não precisa enfrentar um ônibus, que se viu ressituada no seu território doméstico. Me reduzi para dentro da minha casa, dos meus pensamentos, porque no fundo não preciso do outro. Precisar do outro parece perder o valor de si próprio.
Muita gente está olhando para sua vida e dizendo: quero outra coisa. Muitos mudaram de bairro, de cidade ou de trabalho. E isso é muito importante, mas cobra trabalho, investimento e certa coragem.
CHRISTIAN DUNKER
Psicanalista
Por que é importante retomar o convívio social?
Muita gente está olhando para sua vida e dizendo: quero outra coisa. Muitos mudaram de bairro, de cidade ou de trabalho. E isso é muito importante, mas cobra trabalho, investimento e certa coragem. Muitos dos que não voltam pensam: queria voltar em outro mundo, mas não consigo ainda, não tenho os recursos, então fico como está. Para essas pessoas, é importante lembrar que a vida é o que é possível.
Que dicas você dá às pessoas que estão com dificuldade para retomar?
Se você não consegue vê-los, fale com eles. Se você não consegue voltar para sua turma, frequente lugares que você frequentava. Você precisa se reconciliar com a vida que ficou para trás, e isso exige um trabalho de memória. A vida pré-pandemia parece que criou um hiato com este momento atual. Temos que lembrar como era.