A medicina em que médicos e pacientes ocupam lugares distantes na "mesa de negociações" começa a perder espaço em consultórios, clínicas e hospitais do Brasil. Ainda que incipientes no país, se comparados à realidade de outras nações, propostas e movimentos de empoderamento dos pacientes vêm sendo discutidos em sociedades médicas e em entidades não governamentais. A ideia é que as pessoas, ao buscarem os serviços de saúde – sejam públicos ou privados – tenham um entendimento mais claro e objetivo dos caminhos a percorrer, tanto quando se fala em evitar danos quanto na busca pela cura, perdendo a passividade diante das decisões tomadas ao longo desse percurso. Não se trata de jogar ao paciente a responsabilidade das definições médicas, mas de torná-lo mais protagonista dos processos, cujos resultados, naturalmente, têm nele o maior afetado.
Esse empoderamento se traduz em ações que evitam procedimentos desnecessários e promovem uma revisão das condutas médicas, até então pouco questionadas pela sociedade. No Brasil, não se costuma debater com o médico. As escolas de medicina do país não têm a tradição de valorizar o envolvimento do doente e das famílias nas decisões, tampouco dão munição aos futuros médicos para que tenham uma boa comunicação com seus pacientes.
— Temos uma medicina paternalista, em que as informações repassadas pelos pacientes servem mais para abastecer o médico na tomada de uma decisão do que para incluir o paciente nessas decisões — diz Guilherme Brauner Barcellos, médico coordenador da Choosing Wisely Brasil.
A Choosing Wisely (Escolhendo Sabiamente, em tradução livre) é uma iniciativa da Abim Foundation, entidade criada pelo Conselho Americano de Medicina Interna em 1989, cujas proposições pretendem melhorar o atendimento em saúde, com o estabelecimento de condutas mais preocupadas com o bem-estar e o protagonismo do paciente. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre é um dos três centros do Brasil que estão mais avançados na sistematização dessas sugestões.
Poder em três frentes
Barcellos explica que, basicamente, há três frentes de ações que promovem essa nova forma de fazer medicina, de acordo com a Choosing Wisely. Uma delas, que não chega a ser novidade, mas ainda tem pouco alcance, pede às sociedades médicas que façam uma autocrítica – e também promovam isso entre seus associados – sobre o excesso de intervenções nos tratamentos de saúde. O propósito evidente é frear procedimentos que pouco modificam resultados. Assim como em países onde isso está mais consolidado, como Canadá e Estados Unidos, gera-se uma lista de recomendações e espera-se que ela seja colocada em pauta.
Noutra ponta, a promoção das ideias da Choosing Wisely incentiva que profissionais e instituições da área da saúde traduzam as recomendações e os procedimentos de forma adequada e clara, lançando mão de recursos, como vídeos e peças gráficas, que facilitem ao máximo a compreensão e fujam de linguagens técnicas.
A terceira frente na promoção de uma medicina mais próxima dos pacientes é que clínicas e hospitais também discutam condutas e gerem referências sobre o que se deve ou não evitar no cotidiano de assistência. Isso, além de assegurar o bem-estar daqueles que dependem do atendimento, pode garantir economia nas redes de saúde e, inclusive, redução de adversidades.
Barcellos usa como exemplo a prática de fazer exames de sangue diariamente em pacientes internados, mesmo que não haja um quadro específico que a justifique. No Clínicas, já se preconiza individualizar mais essa conduta, considerando particularidades de cada pessoa. Numa UTI, explica Barcellos, essa atitude sistêmica pode representar a retirada de até 50ml de sangue diariamente de um paciente crítico.
— A coleta de sangue pode ser, por si só, a causa do desenvolvimento de anemia no hospital. Então, se essa conduta diária não vai influenciar no resultado final de um tratamento nem mudar nada, ela só é uma coleta de sangue — diz Barcellos.
Empodere-se
A Organização Pan-Americana da Saúde destaca 10 perguntas-chave que o paciente precisa fazer para ampliar a segurança nos serviços de saúde:
1 - Qual o nome do problema que tenho? Qual é o meu diagnóstico?
2 - Quais são as minhas opções de tratamento?
3 - Quais são as minhas chances de cura?
4 - Como é realizado o exame ou procedimento?
5 - Quando e como receberei os resultados do exame?
6 - Como se soletra o nome do medicamento prescrito?
7 - Quantas vezes ao dia e por quanto tempo devo usar esse medicamento?
8 - É possível que haja alguma reação a esse medicamento?
9 - Posso usar esse medicamento junto com outros que já utilizo, com algum alimento ou líquido?
10 - O tratamento mudará minha rotina diária?
A Choosing Wisely sugere que o paciente faça cinco perguntas básicas aos médicos:
1 - Preciso realmente deste teste, tratamento ou procedimento?
Os testes podem ajudar você e seu médico ou outro profissional de saúde a determinar o problema. Tratamentos (como medicamentos) e procedimentos podem ajudar a tratá-lo.
2 - Quais são os riscos?
Indague sobre efeitos colaterais e chances de obter resultados que não são os esperados e também se há possibilidade de o procedimento levar a mais testes e tratamentos adicionais.
3 - Existem opções mais simples e seguras?
Existem opções para o tratamento que poderiam funcionar? As mudanças de estilo de vida, como comer alimentos saudáveis ou exercitar-se mais, podem ser opções seguras e eficazes.
4 - O que acontece se eu não fizer nada?
Pergunte se a sua condição pode piorar — ou melhorar — se você não fizer um teste, tratamento ou procedimento imediatamente.
5 - Quais são os custos?
Os custos podem ser financeiros, emocionais e inclusive de tempo. Deve-se questionar se há um custo para a comunidade, se é razoável ou se existe uma alternativa mais barata.
Conhecer e cuidar de si
O empoderamento do paciente é uma tendência observada em todos os âmbitos da promoção da saúde, desde a escolha da medicação em uma situação pontual, a orientações em doenças crônicas até o momento de adotar apenas cuidados paliativos. No caso das doenças crônicas, é prover o doente de condições e informações para que ele possa ter domínio da própria condição.
— Empoderamento da pessoa com doença crônica é cuidar de si, buscando saber quais são as necessidades do corpo e da mente, melhorando o estilo de vida, para evitar hábitos nocivos, desenvolver uma alimentação sadia, conhecer e controlar os fatores de risco que levam às doenças e adotar medidas de prevenção — resume o professor associado da Universidade Estadual do Ceará Andrea Caprara, médico e PhD em Antropologia Médica pela Universidade de Montreal (Canadá).
O professor ressalta o modelo de cuidados crônicos desenvolvido pelo médico Thomas Bodenheimer, do Departamento de Medicina Comunitária Familiar da Universidade da Califórnia, em que se atua em três esferas: a comunidade, com as suas políticas e recursos, o sistema de saúde, e a organização desse sistema.
Os princípios desse modelo apontam para a melhoria na qualidade do atendimento em casos de doenças crônicas por meio de uma abordagem proativa capaz de prever e antecipar possíveis complicações, com envolvimento dos pacientes, da família e da comunidade. No Brasil, a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab) propõe que sejam organizadas ações de saúde no âmbito individual e coletivo, que abranjam a promoção e a proteção da saúde, mas nem sempre isso se estabelece na prática.
— Muitas vezes, a rede de atenção à saúde é organizada de forma fragmentada e não está centrada nas necessidades da população. Além disso, cada usuário percebe seu próprio adoecimento, em seu contexto de vida, de forma singular. Por isso, a importância da sensibilidade do profissional de saúde para perceber cada um como único e, dessa maneira, adaptar a forma de atenção — analisa.
Protagonismo inclusive no fim da vida
Criada há pouco mais de dois anos, a Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH) tem trabalhado para promover o empoderamento do paciente também no ambiente hospitalar, inclusive nas situações mais adversas, de quadros graves e irreversíveis. Nesse contexto, o empoderamento se estende não só ao paciente, mas também às famílias.
— Isso significa dar subsídios técnicos e reflexivos para que o paciente, com seu núcleo familiar, possa, ao lado da equipe médica assistencial, tomar as melhores decisões, pautadas nas melhores evidências científicas, na experiência dos médicos assistentes e em seu conjunto de valores — explica Paulo Paim, médico e presidente da (ABMH).
Nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), afirma Paim, as decisões são cruciais em razão da gravidade dos casos e das desproporcionais expectativas de resultados produzidas, entre outros fatores, pela forte emoção diante do agravamento dos quadros.
— Quando o paciente e seus familiares apoderam-se de conhecimento técnico e das experiências da equipe assistente, eles podem tomar decisões mais sóbrias e assertivas em relação à forma de conduzir o caso. Podem, de maneira mais clara, optar por aceitarem ou não determinados métodos diagnósticos ou terapêuticos, levando em consideração variáveis do prognóstico e o desconforto que esses métodos podem causar e o resultado real que impactará em sobrevida ou no controle de sintomas — diz.
Um dos entraves para que essa tendência se dissemine com mais rapidez no sistema de saúde do Brasil é, na avaliação de Paim, a falta de tempo durante a interação médico-paciente. As consultas são rápidas demais, e a visita do médico aos leitos, em muitos casos, não excede 10 minutos. Para o médico, é preciso batalhar para uma medicina com maior tempo a ser dedicado aos pacientes e avaliar os modelos de financiamento da saúde, que acabam por ditar as regras, nem sempre estabelecidas com foco na real necessidade das pessoas.
— O diálogo técnico com uma alta dose de empatia certamente gera consensos mais maduros e com menor probabilidade de erros — conclui Paim.