Um tratamento promissor contra a leucemia, que pode eventualmente substituir, com maior eficácia e segurança, o transplante de medula óssea, está sendo pesquisado no Rio Grande do Sul. Fazendo uso de células exterminadoras naturais — conhecidas como NK, do inglês "natural killer" — aplicadas por meio de uma espécie de injeção, essa forma experimental de tratar o câncer vem apresentando resultados considerados surpreendentes nos pacientes em que foi testada até agora.
Dois portadores de leucemia mieloide que passaram pelo tratamento no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) neste ano apresentaram remissão da doença. Os pacientes chegaram a um estado de aparente normalidade, em que não se encontra mais evidências do câncer, mas isso ainda não significa que estão curados. Ambos já haviam passado por outros tratamentos, convencionais, como quimioterapia, e experimentais. Um deles teve recaída mesmo após um transplante de medula óssea.
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O estudo está sendo desenvolvido no Brasil exclusivamente pelo Centro de Tecnologia e Terapia Celular do HCPA. A iniciativa é uma parceria com o MD Anderson Cancer Center do Texas, nos Estados Unidos, onde foi desenvolvida uma tecnologia pioneira de fabricação das células NK.
Em fase inicial, a técnica já passou por testes pré-clínicos com animais e já é aplicada experimentalmente em pacientes, mas ainda não foi aprovada por órgãos de controle de medicamentos como a FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora americana, ou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
— Mas vai ser. Vai ser. Eu nunca vi um paciente tão doente responder (dessa maneira). Estou boquiaberta com os resultados — diz a hematologista Lucia Silla, responsável pela pesquisa no Brasil.
No fim de agosto, a rigorosa agência americana aprovou um tipo de tratamento semelhante que reprograma as células do paciente para atacar um câncer fatal, tornando seu próprio organismo um remédio contra o câncer. Os primeiros testes começaram em 2012, e agora o remédio, com o nome comercial de Kymriah, poderá ser usado em hospitais para o tratamento de leucemia linfoide aguda. O custo estimado ainda é exorbitante: US$ 475 mil, o equivalente a R$ 1,5 milhão por paciente.
A expectativa é de que o tratamento com as células NK seja bem menos custoso. A técnica desenvolvida pelo pesquisador Dean Lee, professor no Nationwide Children's Hospital em Columbus, no Estado americano de Ohio, envolve a fabricação de grandes quantidades dessas células em uma máquina criada especificamente para esse fim.
— Até agora, não encontramos câncer resistente a essas células. Usamos a tecnologia em pacientes com câncer de ovário, de mama, tumores cerebrais. Os melhores resultados foram em pacientes com leucemia, mas pode haver vários outros usos para essa técnica — prevê Lee.
O otimismo dos pesquisadores é visível também nos pacientes.
— Eles começam a melhorar a partir do momento em que você infunde as células. O que acontece, eu ainda não sei. Pode ser o efeito placebo, mas a sensação de bem-estar aumenta gradualmente. Ele não melhorou ainda, os exames estão ruins, mas se sente bem. E aí vai indo, e a doença vai desaparecendo devagarinho — diz Lucia.
Moradora de Novo Hamburgo, uma mulher de 51 anos com leucemia mieloide foi a primeira no Brasil a receber o tratamento. Em poucos dias após a primeira infusão, ela diz ter se sentido muito melhor, mais disposta. Isso após ter passado por outros quatro tratamentos contra a doença, que sempre voltava.
— É uma esperança no meio de tanto sofrimento. Foi uma grande surpresa — relata a paciente, ainda em observação no hospital.
A pesquisa coordenada por Lucia no HCPA deu ainda um passo inédito, mundialmente, nos estudos da aplicação de células NK contra a leucemia: conseguiu, por enquanto com sucesso, levar à remissão do câncer em uma criança. Agora, a técnica vai ser aplicada em mais dois pacientes — com o objetivo de se tornar um tratamento eficaz e acessível contra o câncer.
Saiba mais sobre o tratamento
- Denominada imunoterapia adotiva com células NK (Natural Killer), a técnica que pode revolucionar o tratamento do câncer consiste na expansão in vitro de células do sistema imunológico, que vão atingir apenas o tumor sem causar qualquer dano a outros tecidos do organismo.
- As células NK, chave do tratamento, têm sido estudadas há décadas, mas uma tecnologia desenvolvida no MD Anderson Cancer Center de Texas, nos Estados Unidos, e aplicada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre conseguiu produzir um número suficiente delas para levar à remissão de alguns tipos de câncer, como a leucemia mieloide.
- O procedimento começa com a coleta de glóbulos brancos do paciente, que são depois cultivados na presença de células modificadas geneticamente para que possam atacar o próprio tumor da pessoa.
- Essas células são expandidas em uma tecnologia inovadora desenvolvida para esse fim, e depois concentradas em altas doses _ que passam de 1 milhão por quilo do paciente _ para serem aplicadas no tratamento do câncer.
- A aplicação é feita por meio de injeção, que leva as células exterminadoras naturais diretamente ao sangue do paciente.
- Para que o tratamento tenha efeito, é preciso que o paciente tenha seu sistema imunológico "silenciado", a fim de que as novas células sejam aceitas pelo corpo. Para isso, é feita quimioterapia aliada a um processo de depleção dos linfócitos, que "comandam" o sistema imunológico.
- Entre os pacientes tratados até o momento, aqueles com leucemia mieloide aguda _ que não tiveram sucesso com outros tratamentos, inclusive transplantes de medula _ são os que parecem apresentar os melhores resultados. O tratamento também pode ter aplicação no combate a tumores cerebrais, câncer de mama e de ovário, entre outros.