O financiamento da saúde é há décadas o objeto de estudo de André Medici, economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial em Washington (EUA) entre 1996 e 2020. O estudioso palestrou na abertura do MV Experience Fórum 2024, realizado em São Paulo em setembro pela MV, empresa que desenvolve sistemas para a gestão da saúde.
Medici defende o financiamento público da saúde integrado com as empresas do setor. No entanto, pede que o Sistema Único de Saúde (SUS) mude a forma de organização a fim de reduzir o desperdício de recursos. Para ele, a alteração da lógica do sistema é necessária porque a tendência é de aumento de gastos devido ao envelhecimento da população nas próximas décadas.
A interoperabilidade – troca de dados entre organizações e sistemas – na saúde é outra bandeira apoiada pelo especialista como um meio para melhorar a qualidade do setor no país.
No currículo de Medici está a participação na construção do SUS. Ele é formado em Administração Pública, tem mestrado em Economia e doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é consultor internacional para organismos multilaterais – Banco Mundial, BID e Organização das Nações Unidas (ONU) estão entre elas –, além de instituições e empresas da área de medicamentos e de saúde suplementar no Brasil e Exterior.
O NHS (sigla em inglês para o Serviço de Saúde Nacional do Reino Unido), que serviu de inspiração para o SUS, tem enfrentado crises recentes. Há reclamação de médicos e insatisfação dos usuários, semelhante ao que ocorre no Brasil. O que esses dois cenários representam em relação à ideia do financiamento público da saúde?
O sistema financiado com recursos públicos enfrentará instabilidades. O NHS continua sendo muito bom, mas não teve capacidade de renovação. A crise pandêmica deixou o sistema em uma situação difícil, porque ele não estava preparado para receber um grande número de pacientes – a Inglaterra foi um dos países mais afetados pela covid-19. Temos de considerar o envelhecimento da população também.
O Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) também influenciou neste cenário. Há a chegada de imigrantes, que podem ter outros tipos de necessidades. Além disso, a situação econômica da Inglaterra não é boa. Se não há recursos, ocorre uma crise na saúde, com a perda de profissionais e desistência de carreiras para o sistema; o atendimento piora e as filas aumentam para os pacientes.
Podemos relacionar a situação atual do NHS com o presente do SUS?
O SUS também é um bom sistema. Até 2000, teve muitas inovações, uma delas a introdução da saúde da família, que criou a base de atendimento à população que não tinha acesso. Não sofreu tanto com a pandemia, que foi quando mais recebeu recursos. O SUS tem problemas e uma organização diferente da Inglaterra. A base de operação é municipal e a maioria dos municípios brasileiros tem menos de 50 mil habitantes, que, em muitos casos, não têm a capacidade necessária para organizar um sistema de saúde.
Por isso, a prefeitura recebe o dinheiro, não tem capacidade de gerenciar e as pessoas que precisam de níveis de complexidade maiores vão para municípios vizinhos. É o que ocorre na região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo. Isso faz com que a prefeitura receba o recurso para pacientes que são tratados na Capital. Assim, você sobrecarrega determinados sistemas e deixa outros sem a capacidade necessária de dar atenção. A base municipal não é uma boa forma de organizar o serviço de saúde.
Qual é a melhor maneira de organizar o SUS?
É um modelo de regionalização, mas não pode ser baseado em municípios, mas sim em regiões de saúde. Você tem que ter uma mínima população para que o risco da saúde seja equiparado e que se tenha capacidade de atendimento. Um hospital especializado, por exemplo, pode atender dois milhões de pessoas. Criar um desse tipo em um município de 50 mil habitantes será muito caro, não terá a utilização necessária, nem os médicos habilitados. Ou seja, é preciso ter os hospitais em regiões onde eles absorvam mais pessoas.
Primeiro deve existir uma boa atenção primária (municipal) e, depois, se precisar, o atendimento especializado (regional). O paciente, por fim, deve voltar para o centro de saúde do seu município de origem.
ANDRÉ MEDICI
Consultor internacional da área de medicamentos e de saúde suplementar
Também deve haver um sistema de prontuário médico eletrônico que consiga mapear pacientes, com a história clínica dele. No SUS é muito comum a pessoa realizar os exames que já foram feitos, com gasto excessivo de recursos. Um prontuário eletrônico ajudaria a evitar esses gastos.
Melhorar o SUS passa apenas por mudar como ele funciona ou é verdadeira a ideia de que faltam recursos para a saúde?
Antes de falarmos em investimentos, precisamos mudar a organização do SUS. O sistema precisa de uma divisão de trabalho. Uma pessoa com um problema simples de saúde deve resolver isso na atenção básica, e só depois ir para a média e alta complexidade. Mas não é o que ocorre: no Brasil, você não atende bem em nenhuma etapa. Isso faz com que as pessoas busquem uma emergência hospitalar quando não é o caso.
O resultado é uma fila enorme e horas de espera para os pacientes. Para o sistema, o atendimento é quatro ou cinco vezes mais caro para o hospital em comparação com a mesma assistência na saúde básica. É uma soma de desperdício de recursos, com reclamações de filas pelo fato de as pessoas não serem atendidas nas complexidades corretas. Exemplo disso são as cirurgias eletivas: os hospitais não conseguem reduzir a espera porque estão sobrecarregados com urgência e emergência, problemas que não deveriam ser atendidos por eles.
Observamos esses problemas no SUS em meio ao envelhecimento da população. No RS, os idosos representarão 40% da população em 2070. Como enfrentar esse cenário?
É uma questão mundial e foi uma das causas do agravamento da crise do NHS. Isso ocorre porque você estreita a base de financiamento do sistema e não tem estruturas capazes de tratar um conjunto de grandes pessoas. A solução é aumentar a promoção, a prevenção e fazer com que as pessoas tenham uma vida mais saudável.
Ou seja: é necessário que a população mantenha hábitos saudáveis desde cedo. Pessoas jovens estão com problemas cardiovasculares graves, obesidade, diabetes, hipertensão, colesterol alto e problemas renais. É um quadro de comorbidades que não tem como atender de maneira barata e efetiva.
O envelhecimento brasileiro ocorre em meio ao subdesenvolvimento, ao contrário dos países ricos. Qual é o tamanho do nosso prejuízo nesse contexto?
A diferença é muito grande. Países que ficam ricos antes de envelhecer conseguem enfrentar os custos da velhice.
O Brasil é um país que não enriqueceu e não terá os recursos para enfrentar o envelhecimento
ANDRÉ MEDICI
Consultor internacional da área de medicamentos e de saúde suplementar
Nunca vamos conseguir gastar 5 mil dólares por pessoa, como faz o NHS, ou 17 mil dólares, como fazem os Estados Unidos. Não chegamos a mil dólares por pessoa. Por isso, o Brasil precisa de soluções racionalizadoras para fazer com que a promoção, a prevenção e a atenção médica sejam mais eficazes.
A forma de fazer isso é por meio da interoperabilidade dos registros eletrônicos, que fazem com que a informação seja utilizada para administrar a gestão da saúde.
A interoperabilidade teria de ser encabeçada pelo governo federal?
O sistema de saúde brasileiro é tripartite, a União, os Estados e municípios são responsáveis. Os Estados podem estabelecer suas próprias possibilidades. Minas Gerais e Goiás são bons exemplos nessa área atualmente. Não depende do governo federal, que tem um papel normativo e a capacidade de transferir recursos para auxiliar os Estados que quiserem fazer.
Como seria o prontuário médico eletrônico e quais benefícios traria para o SUS?
Ele reúne todos os registros da história clínica do paciente, sejam procedimentos, gastos, medicamentos, intervenções, hospitalizações. O médico tem toda a informação de forma automatizada. Com isso, minimiza os tratamentos, sabe quais exames a pessoa fez, se já tomou determinado medicamento, evita outros remédios que são conflitivos. É um formato que melhora o atendimento ao paciente, reduz custos, agiliza o processo. Registros eletrônicos trazem uma efetividade do ponto de vista clínico.
O atendimento particular tem ganhado espaço no país por conta dos problemas do SUS. É uma saída para melhorar o setor?
Vejo o privado como um complemento ao sistema público. O SUS é importante porque possibilitou o acesso à saúde a uma parte da população que não tinha acesso. Nas capitais, em torno de 50% da população está coberta por seguro de saúde. Na média do Brasil são 25% que estão cobertos, os outros 75% são SUS. Isso ocorre porque há regiões rurais onde os seguros não estão disponíveis.
Podemos perguntar: não seria melhor acabar com o seguro e ter apenas o sistema público? Não dá
ANDRÉ MEDICI
Consultor internacional da área de medicamentos e de saúde suplementar
Devemos usar todos os recursos de forma inteligente. Parcerias entre o público e o privado são exemplos. Alguns países fazem a seguinte complementação: atenção primária, promoção e prevenção ficam concentradas no público. Já a atenção de média e alta complexidade são com os planos de saúde. No entanto, é mantida a altíssima complexidade na cobertura pública, porque, em muitos casos, as empresas não podem cobrir um medicamento de 5 milhões de dólares, por exemplo. O Estado também deve ter seus centros de excelência, de alta tecnologia, como são os hospitais universitários.
Temos visto uma disparada no interesse por vagas de medicina. Essa é uma demanda originada pela falta de médicos no país?
Por parâmetros internacionais, podemos dizer que não precisamos de mais médicos. No entanto, o país é gigante e vemos um problema de distribuição. A outra questão é o envelhecimento: teremos uma população que vai precisar ainda mais de médicos no futuro. Então penso que seja necessário formar mais.
No entanto, deve ser uma boa qualidade: não são faculdades criadas a torto e a direito que vão dar conta do problema. Somado a isso, após formado, o médico deve fazer uma prova para sabermos se ele está apto para exercer a profissão.
A contratação de médicos do Exterior pelo Mais Médicos voltou à pauta nacional com o governo Lula. É uma saída para melhorar a distribuição médica?
Em certo sentido, sim. Você não consegue reter o médico em algumas regiões. Que tipo de incentivo e infraestrutura há para ele? Não adianta levar o profissional se não existe um bom serviço de saúde, ambulância, hospital, medicamento. Ele pode melhorar um pouco a situação em regiões distantes, mas não dá conta da quantidade de pessoas que precisam ser atendidas.
Outro problema é que o médico não gosta de ficar em um lugar em que ele não está recebendo conhecimento e não pode conversar com pares. Isso faz com que seja difícil retê-los no interior do país. O programa de “mais médicos” deve ser acompanhado do programa “mais saúde”.
*O repórter viajou a convite da MV.