Lançado há cinco anos, em fevereiro de 2019, o RS Seguro, programa de combate à violência do governo do Estado, tem como uma das bases a análise das estatísticas. O monitoramento constante de onde, quando e como ocorrem os crimes é uma das premissas da estratégia batizada de Gestão de Estatística em Segurança (GESeg).
A prática passou a ser considerada essencial na redução de indicadores, como homicídios e roubos a veículos, por exemplo. Atualmente, o RS tenta avançar outro passo nessa área: automatizar o compartilhamento de dados entre a segurança pública e a saúde.
O Atlas da Violência 2024, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou que o RS pode ter mortes com causa indeterminada classificados erroneamente nas estatísticas do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
O estudo estima que até 89 das 313 mortes registradas sem causa determinada na Saúde, em 2022, seriam homicídios ocultos.
O sistema analisado no Atlas da Violência não é o mesmo usado pelas forças de segurança, que se baseia nos registros de ocorrências. Ou seja, esses mesmos casos podem já ter sido quantificados como homicídios ou outros tipos de mortes, como suicídio, por exemplo, na esfera da segurança. No entanto, em razão das deficiências no compartilhamento dos dados, aparecem ainda como mortes com causa indeterminada na Saúde.
— Aqui no RS não temos problemas de homicídios ocultos nas estatísticas da segurança pública. Estamos fazendo esse trabalho de depuração para que não tenha mais essa divergência com a saúde. Estamos trabalhando para que isso seja feito de forma automatizada, tanto a saúde ter acesso à base da segurança, como a segurança ter acesso à da saúde, o que é muito importante — afirma o secretário-executivo do RS Seguro, Antônio Carlos Padilha.
Quando uma pessoa é vítima de morte violenta no Brasil, o corpo deve ser analisado por médico legista. Na declaração de óbito, o médico pode apontar a circunstância da morte: se é suicídio, homicídio, acidente ou outra razão. Mas nem sempre isso é possível. Então, o campo é deixado em branco.
Em paralelo a isso, o caso segue na esfera da segurança, com as investigações sobre a morte, com intuito de concluir o que ocorreu. Mas quem registra o caso no SIM — base de dados nacional usada pelo Atlas — é a equipe da Saúde, a partir da declaração de óbito e outras informações.
— Quando estamos falando de dados de mortalidade, e não de homicídios somente, necessitamos de muito esforço para qualificação. Temos uma equipe que trabalha isso de forma muito forte. Quando entramos na correlação com a segurança pública, temos muitos movimentos. Temos uma nova etapa que está se desenhando, de refinamento detalhado, para cada óbito, com cruzamento de segurança e saúde. Provavelmente, no banco de 2023 a gente já se antecipará essa informação— avalia secretária adjunta da Saúde do Estado, Ana Costa.
As 89 mortes
Os dados do Atlas da Violência sobre homicídios ocultos no país são estimados a partir de metodologia com uso de inteligência artificial, que avalia probabilidades. São levados em conta aspectos como, por exemplo, idade, sexo, raça, cor, estado civil, escolaridade, local, ano, mês, dia do óbito e Estado de ocorrência. A partir disso, é realizada a classificação das mortes violentas com causa indefinida, apontando quais podem ser homicídios ocultos.
Desde a publicação do estudo, o governo gaúcho vem analisando os casos apontados no Estado como possíveis assassinatos. Segundo o secretário-executivo do RS Seguro, cerca de 10 mortes teriam ocorrido fora do RS, mas apareceram nos dados da saúde, em razão do local do hospital no qual a vítima foi atendida. Cerca de 80% dos casos já foram verificados.
— Quando foi feita publicação, começamos a fazer a depuração para identificar que 89 fatos são esses. Fazemos um trabalho para não ter nenhuma ocorrência fora da nossa base de dados. Começamos a verificar que tem casos de fora do RS, e que a maioria já está na segurança pública. Há casos que não são homicídios. E alguns, por deficiência de informação no cadastro da saúde, não localizamos ainda na segurança pública, mas é um número muito pequeno — avalia Padilha.
Atualização de casos
Dentro do RS Seguro, os profissionais regularmente monitoram as ocorrências, para que os registros possam ser atualizados pela Polícia Civil, caso o crime evolua, por exemplo, de uma tentativa de homicídio, para um caso consumado.
— A equipe desse grupo de trabalho lê todas as ocorrências. E quando há, por exemplo, uma tentativa de homicídio, e algum tempo depois, há o falecimento, já há disparo de mensagem para que essa ocorrência seja vinculada àquela de tentativa de homicídio lá atrás. E aquela não considere mais uma vítima ferida, e sim uma vítima morta. Temos feito esse trabalho desde 2019, para ter os dados bem apurados — explica.
Alguns desafios ainda precisam ser vencidos para o compartilhamento ocorra de forma automatizada. Um deles é a existência de bancos de dados diferentes, que não conversam entre si, e exigem o desenvolvimento de ferramentas para driblar essa questão.
— Os dados nos dão uma rota de maior clareza para que possamos intervir. Quanto melhor estiverem, mais chance temos, como governo, de forma ampla, de agir. Seja na ação preventiva em saúde, ou na ação preventiva de segurança. Mais do que cruzar informações, é essencial entender a informação, avaliar os dados, e assimilar que condutas devemos tomar. Acho que o Estado do RS tem feito belo trabalho de cruzamento de informações, além de fazer o debate desses dados — afirma a secretária Ana Costa.
Universidade inglesa
Em setembro de 2021, o governo do Estado firmou acordo de cooperação com a London School of Economics and Political Science — universidade europeia dedicada às ciências sociais — para o processamento de dados do Sistema GESeg. Por meio dessa parceria, são analisados dados, com intuito de identificar, por exemplo, variáveis que levam uma mulher a ser vítima de violência doméstica, e fatores que levam um jovem a ingressar na criminalidade.
No caso da violência doméstica, a melhoria da troca de informações entre Segurança e Saúde é uma aposta para compreender esse fenômeno. No RS, em média, metade das vítimas de feminicídio nunca procuraram a polícia para registrar uma ocorrência contra o agressor. No entanto, muitas vezes essas mulheres acabam recebendo atendimento na área da saúde. O cruzamento desses dados pode permitir um mapeamento mais fiel desse problema.
O que é Geseg
A plataforma Geseg, desenvolvida dentro do RS Seguro, em parceria com o Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado (Procergs), atinge os 497 municípios do Estado. No sistema, operadores de segurança, como delegados, diretores e comandantes, têm ao alcance de poucos cliques uma série de informações. É possível consultar tanto o cenário geral do Estado, quanto cada um dos municípios, com análises automáticas dos indicadores de crimes violentos letais e intencionais (CVLI), roubos de veículos e roubos a pedestre.
O Atlas
A situação mais preocupante no país em relação aos homicídios ocultos, segundo o Atlas da Violência, se dá em São Paulo, onde foram identificados 2.410 casos. Na sequência vem o Rio de Janeiro, com 843. Na lista dos Estados, o RS aparece na 12ª posição em número de casos.
As estatísticas mostram que o Brasil registrou 46.409 homicídios em 2022, uma taxa de 21,7 por 100 mil habitantes. Mas os autores do Atlas da Violência 2024 estimam, no entanto, 52.391 homicídios, somando a quantidade de casos oficialmente registrados com os que ficaram ocultos nos dados da saúde.