No passado, sonhava-se com o momento em que o avanço tecnológico permitiria prolongar a vida – ficções científicas ilustram esse desejo humano há décadas. Em meio a chips no cérebro e bilionários que gastam fortunas para tentar evitar o envelhecimento, ainda que não seja possível escapar da morte, a tecnologia já se consolidou como aliada da medicina. Se até pouco tempo atrás o foco estava em diagnosticar e tratar as doenças quando surgiam, agora, o objetivo é antecipar-se a elas.
Esse é o propósito da medicina preditiva, que busca identificar com antecedência, com o auxílio da genética, os indivíduos mais propensos a apresentar uma determinada doença. Isso permite antecipar medidas que possam diminuir o impacto potencial dessa doença, explica Roberto Giugliani, professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), médico do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e head de Doenças Raras da Dasa Genômica.
— Por exemplo, indivíduos com certas "assinaturas genéticas" que possam ter maior risco a doenças cardíacas poderiam ser alertados e evitar situações potencialmente perigosas, como praticar determinados tipos de esporte — exemplifica.
A ciência vê esse campo com "muito bons olhos", desde que esteja baseado em evidências científicas comprovadas – ou seja, com estudos e dados que confirmem o potencial preditivo de determinado exame ou procedimento. É o caso de testes bioquímicos no sangue que estão sendo propostos para identificação precoce de pessoas com maior risco de desenvolvimento da Doença de Alzheimer, conforme o especialista.
Há inúmeros casos em que a eficiência da predição já está comprovada, indica Giugliani. Por exemplo, a presença de algumas variantes genéticas específicas aumenta o risco de trombose venosa (coagulação anormal do sangue nas veias). Assim, indivíduos que têm essas variantes – há graus variados de risco de acordo com a combinação delas – podem tomar medidas preventivas, como o uso de meias elásticas em viagens longas, que contrabalançam o risco trazido pela genética desfavorável.
A medicina preditiva estabelece probabilidades para o aparecimento de certas doenças – contudo, não necessariamente o paciente as desenvolverá. É importante também diferenciar o campo do "diagnóstico pré-sintomático", que é quando se identifica uma doença antes do aparecimento dos sintomas, geralmente com 100% de certeza, frisa o médico.
Assim, não é possível estimar precisamente se de fato a doença ocorrerá, nem quando, lembra Patricia Prolla, diretora de Pesquisa do HCPA e médica geneticista. Neste sentido, os testes genéticos direto ao consumidor geram debate e ceticismo no campo médico, pois costumam ser vendidos como uma certeza, além de, muitas vezes, serem menos fidedignos do que os testes para diagnóstico médico.
A especialista alerta ainda que, em alguns exames, há maior dificuldade de prever com precisão, já que não há definição clara do risco. É o caso das doenças multifatoriais, como hipertensão e diabetes. Há novas tecnologias sendo estudadas no Brasil com esse fim – como os escores de risco poligênico –, mas esbarram em entraves de representatividade da origem populacional.
Pessoas com determinadas variantes genéticas no gene BRCA1 têm um risco aumentado de desenvolvimento de câncer de mama e ovário, mas esse dado tem de ser avaliado no contexto da família e estudado junto com o histórico familiar e outros fatores
ROBERTO GIUGLIANI
Professor de genética da UFRGS
Uma das áreas em que a medicina preditiva está mais difundida é na oncologia. Um exemplo claro que ficou bastante conhecido envolve a atriz Angelina Jolie, que retirou as mamas devido ao alto risco de desenvolver câncer – que vitimou sua mãe.
— Pessoas com determinadas variantes genéticas no gene BRCA1 têm um risco aumentado de desenvolvimento de câncer de mama e ovário, mas esse dado tem de ser avaliado no contexto da família e estudado junto com o histórico familiar e outros fatores — pondera o médico.
Indivíduos com esse risco aumentado podem fazer um programa de acompanhamento mais intenso, que permita que, caso ocorra, o câncer seja detectado em estágios precoces, levando a uma intervenção mais bem-sucedida.
Além disso, a medicina preditiva também permite utilizar a genética para tentar prever o prognóstico (desfecho) de determinada doença, explica a diretora de Pesquisa do HCPA.
Medicina do futuro
Para o geneticista Roberto Giugliani, o momento atual é de desenvolvimento acelerado da medicina preditiva. Há uma compreensão maior em andamento a respeito do papel dos genes na propensão às doenças mais comuns (como diabetes, hipertensão, câncer), bem como uma identificação de biomarcadores específicos que podem ser medidos no sangue ou na urina, fornecendo informações importantes sobre riscos aumentados para doenças.
Além disso, o impacto da inteligência artificial (IA) na saúde é inegável. Algoritmos já são capazes de interpretar radiografias ou biópsias de modo preciso, segundo Giugliani. Portanto, o médico avalia que a tecnologia certamente poderá ser utilizada para vasculhar o genoma humano e descobrir combinações entre genes e dos genes com outros fatores que possam resultar em determinadas propensões.
O machine learning (aprendizado de máquina) também tem avançado. O recurso já vem sendo aplicado, por exemplo, para analisar registros médicos na busca de detalhes que passaram despercebidos pela equipe de saúde e que podem sinalizar um possível diagnóstico. Alguns programas também já avaliam dados de eletrocardiogramas e aprendem a identificar determinada doença nos exames de outras pessoas. Para o médico, este é o ponto de partida para o manejo mais adequado, já que se trata de um trabalho quase impossível de se fazer manualmente.
— As novas ferramentas da genômica, sua associação com biomarcadores bioquímicos, de imagem ou de outros tipos (eletrocardiograma, por exemplo), vêm sendo usados de maneira cada vez mais precisa para predizer risco para doenças, permitindo a tomada de medidas que possam diminuir a chance de aparecimento dessas doenças e/ou reduzir o seu impacto nos indivíduos. A inteligência artificial e o machine learning certamente vão trazer uma aceleração muito forte para as estratégias de saúde preditiva — avalia.
Cautela
Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o grupo de pesquisa Inteligência Artificial e Análise Preditiva em Saúde (GIAAPS) se dedica a estudar o tema. Os professores Flávio Demarco e Bruno Nunes reconhecem que o aprendizado de máquina consegue lidar com a interação complexa das variáveis e fazer predições. Eles observam muitas potencialidades no campo, como na questão de recursos, que poderão ser utilizados para melhorar a efetividade da saúde pública e privada, alocando-os da maneira adequada e resultando em economia.
No entanto, ponderam que o estágio ainda é inicial e há muito a avançar. Para a maior parte das questões de saúde, o momento é de analisar se os modelos são capazes de realizar boas predições – o que eles têm buscado fazer na UFPel. Posteriormente, será preciso testar e analisar como utilizar esses modelos no dia a dia dos serviços de saúde.
Para treinar os modelos, dados são necessários. Quanto maior o número de informações disponíveis, melhor tende a ser o modelo. A precisão, por sua vez, depende do tipo de doença analisada e da disponibilidade de dados, conforme Demarco. Os modelos atuais são bons, mas ainda há limitações, sobretudo na questão da equidade – a adequação a todos os grupos populacionais.
— Às vezes, a gente tem um modelo que é feito com dados de lugares mais ricos, e pode não ser adequado para pessoas mais pobres, com menor escolaridade ou de diferentes condições socioeconômicas, então ainda é uma área que a gente precisa avançar bastante — aponta Nunes, lembrando que, em muitos casos, essas populações não têm acesso adequado à saúde.
Às vezes, a gente tem um modelo que é feito com dados de lugares mais ricos, e pode não ser adequado para pessoas mais pobres, com menor escolaridade ou de diferentes condições socioeconômicas, então ainda é uma área que a gente precisa avançar bastante
BRUNO NUNES
Professor da UFPel
A qualidade dos dados também é um ponto importante – dados ruins levam a predições ruins. Além disso, o Brasil está atrasado em relação a outros países. Para atingir um desenvolvimento mais rápido, é necessário investimento, defende Demarco.
Mesmo com o avanço da tecnologia, o profissional de saúde ainda será necessário para interpretar a probabilidade e sua exatidão – nem sempre a tecnologia conseguirá predizer 100% dos casos corretamente. Portanto, as ferramentas não substituirão o profissional, mas terão potencial para auxiliá-lo.
— E até mesmo torná-los, talvez, mais humanos, a gente conseguir olhar mais para as pessoas e menos para as questões técnicas e burocráticas — enfatiza Nunes.
Na prática
O Hospital Moinhos de Vento já oferece serviços de medicina preditiva: exames genéticos, voltados à oncologia, que auxiliam na investigação da predisposição ao desenvolvimento de câncer. Ainda neste semestre, o hospital também passará a oferecer painéis de cardiologia e neurologia, capazes de prever o risco de morte súbita, arritmias cardíacas (hereditárias), doença de Alzheimer e Parkinson. A ideia é ir implantando cada vez mais especialidades.
— Com a possibilidade de saber quem tem mais risco, se consegue fazer um acompanhamento mais de perto desses pacientes. Ainda não se consegue evitar que a doença se desenvolva, mas se ganhou a possibilidade de fazer um diagnóstico muito precoce, poder tratar de forma precoce, o que aumenta muito a sobrevida dos pacientes — avalia Francine Hehn de Oliveira, médica patologista e coordenadora médica do laboratório de Genética e Biologia Molecular do hospital.
Com o risco aumentado, inicia-se um acompanhamento especial daquele paciente, com tratamento "personalizado" para aquele risco e perfil genético específicos – trata-se da medicina personalizada. Assim, o tratamento é facilitado, pois pode ser menos agressivo e, por vezes, levar à cura. E, no caso de não haver tratamento, como no Alzheimer, algumas medidas de estilo de vida podem ser adotadas para retardar o aparecimento – a medicina preventiva.
Como é feito o exame genético:
- Para prever o risco, realiza-se um teste germinativo (genético), por meio de exame de sangue ou de uso de swab na bochecha, com um cotonete
- Em seguida, o material genético passa por um processo complexo, cuja técnica principal é o sequenciamento de nova geração. Coloca-se o material em um equipamento chamado sequenciador, que fornece um resultado, com o código genético do paciente
- Ao pareá-lo com o código genoma humano, é possível ver o que difere – que pode repercutir na vida do paciente
- O software ajuda quem está interpretando o laudo a fazer avaliações. Diferentes bases de dados são utilizadas para fazer comparações, em uma análise que envolve engenharia de bioinformática e IA. O profissional também realiza uma ampla busca na literatura científica especializada por estudos que já tenham associado as variantes genéticas encontradas no genoma do paciente ao risco de desenvolvimento de doenças
- Ao comparar os registros com os dados do paciente, é possível fazer inferências e previsões – a probabilidade é definida com base no histórico de patologias de pacientes com aquela alteração genética, com o percentual estando estipulado por artigos científicos
- Por fim, é gerado um laudo que descreve as variantes genéticas identificadas no teste e suas implicações para a saúde do paciente
- Os exames oncológicos levam cerca de 15 dias para ficarem prontos
Os maiores e melhores bancos de dados, segundo a coordenadora, são os europeus e os americanos. O software aprende a identificar novas variantes no genoma conforme mais dados são inseridos neles.
A médica patologista garante que há precisão, mesmo que o banco de dados não seja nacional – ainda que possa existir discrepância. Francine argumenta que o Brasil ainda tem um baixo número de bancos de dados. O projeto Genomas Brasil tem buscado identificar e estudar diversas populações, incluindo indígenas, para, em breve, disponibilizar um banco nacional. A médica reconhece a importância dessa representação, motivo pelo qual o hospital utiliza o maior número de bancos possíveis, para representar uma população mais miscigenada, como é a brasileira.
No Hospital de Clínicas, também são realizadas análises genéticas, nas áreas de oncologia, neurologia, pediatria, cardiologia, endocrinologia, entre outras, bem como para doenças raras. Os exames são realizados em adultos e crianças, para múltiplas doenças – a depender dos sintomas e suspeita. No entanto, o acesso, sobretudo para predizer riscos, é dificultado, visto que o Sistema Único de Saúde (SUS) não cobre exames genéticos, apenas para algumas doenças raras e no caso de pessoas com deficiência intelectual, para tentar identificar a causa genética.
— A questão é como realmente dar o acesso, verdadeiramente permitir que todos que precisem dessa tecnologia possam ter acesso a ela — reconhece Patricia Prolla, diretora de Pesquisa do HCPA.
Debate ético
Ainda que o avanço da ciência permita descobertas e a antecipação de intervenções, a medicina preditiva também traz questões delicadas. Em alguns casos, o paciente pode não querer saber a probabilidade de desenvolver determinada doença – especialmente se não houver como impedi-la ou tratá-la, frisam as especialistas. Há, portanto, um debate ético que envolve o campo.
É necessário um cuidado especial e responsabilidade no manejo dessas situações e de como comunicá-las ao paciente – motivo pelo qual é indicado passar por aconselhamento genético. Recomenda-se consultar com um geneticista quando há histórico de casos na família, por exemplo. Com base no contexto do paciente, o especialista decidirá indicar o exame ou não.
Outros conflitos éticos complexos também podem surgir no campo no futuro, como a questão de acesso aos dados por planos de saúde e empresas, acrescenta o professor Flávio Demarco. Em meio ao debate, no Brasil, há um projeto de lei tramitando no Congresso que dispõe sobre a Inteligência Artificial (PL 2338/2023), buscando regulamentar seu uso, inclusive na área da saúde.
Projetos em andamento
Confira alguns projetos em andamento no RS que envolvem inteligência artificial e medicina preditiva:
- UFPel: projetos de predição de quem utiliza serviços de urgência e emergência; predição de riscos de multimorbidade; predição de diferentes desfechos na área de odontologia
- Na Rede CIARS (Centro de Inteligência Artificial Aplicada à Saúde do RS):
- Na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA): projeto para diagnóstico de doenças cardíacas
- Na Universidade Federal do Rio Grande (FURG): um modelo de predição da relação entre o uso de antibióticos e a resistência bacteriana em ambiente de UTI; um repositório de informações de saúde centrado no paciente, capaz de identificar tendências futuras; e um trabalho para predizer possíveis sequelas em novos casos de covid-19.