Antes encarado como uma espécie de atestado de óbito em vida, o diagnóstico de câncer ainda causa medo e apreensão em pacientes e familiares, mas sem o caráter de uma sentença de morte antecipada. Quanto mais precoce for a descoberta, mais chances de cura um tratamento pode ter. Com o passar dos anos, o conhecimento da ciência sobre a doença aumenta e, com ele, se arregimenta um portentoso aliado, a tecnologia. À luz do Dia Mundial do Câncer, em 4 de fevereiro, especialistas reiteram que a enfermidade, apesar de ser devastadora, não é invencível.
— O câncer vem acompanhando a humanidade para sempre. Mas, claramente, tivemos um avanço gigantesco no entendimento do microambiente tumoral (local de desenvolvimento do tumor) e como isso pode nos ajudar na tomada de decisão. Entendemos muito mais o mecanismo da doença — diz o médico oncologista e pesquisador da Oncoclínicas no RS, Stephen Stefani.
Atualmente, segundo Stefani, é possível identificar os "alvos" adequados para potencializar os tratamentos, com menos toxicidade ao paciente, por meio de procedimentos ou medicamentos, e mais resultados terapêuticos.
— Na última década, algumas doenças consideradas incuráveis se tornaram curáveis. Algumas doenças que preestabeleciam curtos prazos de vida passaram a cronificar, ou seja, a pessoa pode conviver muitos anos com o câncer — pontua Stefani.
Referência nacional e internacional na especialidade, o oncologista elenca uma soma de fatores para os avanços recentes. Uma delas é a evolução da medicina de precisão, que visa melhorar a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da doença, com foco no paciente. Desta forma, medicamentos são formulados especificamente para aquela pessoa.
— Outra estratégia é a imunoterapia, onde posso usar a imunidade do próprio paciente para combater determinada doença. Tem uma técnica chamada de Car-T, células de defesa do paciente ou do doador de medula, caso seja transplantado, chamadas linfócitos T, geneticamente modificadas para expressar um receptor específico contra o tumor. São tratamentos combinados que garantem respostas terapêuticas bem mais interessantes do que as percebidas no passado. Não é ficção científica — destaca o especialista.
A "toxicidade financeira"
Um outro desafio da oncologia, tão importante quanto o desenvolvimento de terapias inovadoras, para Stefani, é encontrar formas de viabilizar este serviço a um número maior possível de pacientes.
— Vários medicamentos, por exemplo, já estão presentes no sistema de saúde. Infelizmente, atualmente, só no privado. O sistema público, que tem muitos méritos, ainda carece da possibilidade de inclusão de muitos remédios que são de custo alto — lamenta.
Novas estratégias de tratamento oncológico para reduzir o que ele chama de "toxicidade financeira" começam a ser debatidas por médicos em diferentes países a fim de ampliar sua abrangência e controlar o crescimento de custos do paciente. Uma delas é a imunoterapia com dose híbrida, no uso de doses calculadas especificamente para cada caso e suficientes para desencadear o processo imunológico da pessoa.
— Já existem dezenas de cenários em oncologia em que essa estratégia terapêutica passou a ser adotada. Não é só o Brasil que sofre. Particularmente em pacientes que não tenham mais de 90 quilos, é uma possibilidade real — afirma Stefani.
O médico explica que os primeiros dados foram trazidos do Instituto Nacional da Índia em câncer de cabeça e pescoço, publicados no Jornal da Sociedade Americana de Oncologia no início de 2023, quando pesquisadores mostraram que doses chamadas ultrabaixas, baseadas no peso dos pacientes, tinham respostas até melhores que as quantidades fixas definidas pelos laboratórios, e que são essencialmente calculadas com base em um norte-americano de 80 quilos.
Alguns dos medicamentos custam mais do que R$ 100 mil por mês, ponto que tem norteado a discussão global sobre rumos que o sistema de saúde pode levar. Stefani comenta:
— Não se trata somente de ter responsabilidade orçamentária, mas de tentar chegar a valores compatíveis com o que os pacientes possam ter acesso.
Incluir pacientes em protocolos de pesquisa também é uma possibilidade de obter bons resultados, segundo o oncologista. Ele defende uma maior participação de brasileiros nesses estudos clínicos, comumente direcionados a norte-americanos ou europeus, pelas características biológicas:
— Precisamos customizar trabalhos para os nossos pacientes, mais do que identificar "alvos celulares", mas uma forma de que possam ter acesso a tratamentos, do ponto de vista biológico e, por que não, social.
A inteligência artificial
Segundo o oncologista Stefan Stefani, o uso de Inteligência Artificial (AI) é um tema presente na literatura científica, nos principais periódicos internacionais. Para ele, a ferramenta já demonstra utilidades, como exames mais rápidos, cirurgias com a utilização de robôs e terapias menos invasivas, e pode contribuir ainda mais no futuro:
— É precoce imaginar que a IA vai resolver todos os nossos problemas, mas está claro que ela consegue identificar padrões, por meio dos algoritmos, de funcionamento celular e imagens que podem nos ajudar a antecipar evoluções e reconhecer as melhores estratégias para tratar cada paciente, que tem vivido mais e melhor. A tecnologia nos ajuda a modificar desfechos.
O oncologista enxerga um "crescimento exponencial" no trabalho realizado na especialidade para o combate à doença hoje em dia. Esta evolução deverá até aumentar:
— Eu me arrisco a dizer que, nos últimos 10, 15 anos, aprendemos mais sobre o manejo do câncer do que em toda a história da medicina até hoje. É incerto dizermos até onde vamos. Mas, com certeza, teremos tratamentos com alvos mais assertivos, com menos toxicidade no futuro. Ou seja, reações como perdas de cabelo, vômitos e mal-estar podem virar coisa do passado.
Eu me arrisco a dizer que, nos últimos 10, 15 anos, aprendemos mais sobre o manejo do câncer do que em toda a história da medicina até hoje. É incerto dizermos até onde vamos. Mas, com certeza, teremos tratamentos com alvos mais assertivos, com menos toxicidade no futuro.
STEFAN STEFANI
Médico oncologista e pesquisador da Oncoclínicas no RS
A precificação dos medicamentos, no entanto, é um tema que ainda precisa ter mais estratégias em discussão, de forma global, diz o médico:
— Se alguém não tomar providências para construir soluções que tornem tratamentos mais pagáveis, poderemos patinar nesses avanços ou elitizá-los, o que não tem sentido para a medicina. Não queremos ter que perguntar para o paciente se ele tem dinheiro ou plano de saúde para dar o remédio certo.
A cura do câncer está entre as possibilidades para as próximas gerações, mas ainda não há uma viabilidade imediata. No entanto, Stefani lembra que já existem vacinas que podem ajudar a evitar que a doença se manifeste no organismo.
— Existe a vacina contra a hepatite, uma enfermidade fator de risco para o câncer de fígado, ou a imunização para o vírus do HPV, doença que é fator de risco para o câncer de colo do útero. Temos muito caminhos, não é uma solução linear, há um emaranhado de alternativas. Mas será uma doença curável, sem dúvida — aposta o médico, que rechaça os boatos conspiratórios de que já houvesse uma cura ainda escondida por alguns profissionais, pois, desta forma, seria mais rentável para a indústria farmacêutica, e não o contrário.
O presente e o futuro
Segundo a chefe do Serviço de Radiologia do Hospital Moinhos Vento, a médica Alice Schuch, a sua área conta com diversos métodos diagnósticos imprescindíveis para a detecção precoce do câncer. Entre eles, a mamografia e a ultrassonografia para o rastreamento do câncer de mama, o mais frequente nas mulheres. A tomossíntese mamária (que permite coletar imagens detalhadas) é outro exemplo de tecnologia recente em favor das pacientes.
Já, para o câncer de próstata, que atinge os homens, a ressonância multiparamétrica se tornou uma ferramenta de detecção do tumor clinicamente significativo, com melhor precisão da extensão, planejamento de radioterapia e avaliação de recorrência.
— Investimos muito em tecnologia de informação nos últimos anos. Temos, atualmente, o armazenamento de todas as imagens dos exames em um sistema chamado PACS, em que o paciente pode acessar todo o seu histórico pela internet, com relatórios precisos indicando as "imagens chaves" que mostram os detalhes das lesões para médicos assistentes e pacientes — explica Aline.
A tomografia computadorizada é mais uma importante ferramenta para o paciente oncológico na avaliação dos tumores primários e identificação de possíveis metástases.
— A tecnologia de múltiplos detectores traz mais segurança para os pacientes, que incluem redução da dose de radiação, de artefatos e do tempo do exame. Com essa tecnologia, é possível fazer reconstruções 3D, em que demonstramos a relação do tumor com as estruturas importantes do órgão e é possível inclusive fazer uma navegação por dentro das estruturas — relata a médica do Moinhos de Vento.
Alice cita, ainda, a importância da ressonância magnética (RM), um método favorável a pacientes que não podem ser expostos e têm maior risco de desenvolveram neoplasias diferentes, como portadores de síndromes genéticas. O equipamento pode rastrear o corpo inteiro em um único momento:
— A RM consegue trazer mais detalhes das lesões sólidas, trazendo características funcionais também, além das anatômicas. Em 2024, estamos apostando na aquisição de softwares de inteligência artificial de aceleração de aquisição de imagens que trarão ainda mais qualidade nas imagens em menor tempo de realização dos exames.
Para os próximos 10 a 15 anos, a médica radiologista acredita em uma tecnologia que intensificará a segurança, qualidade e agilidade nos processos:
— O futuro da radiologia é a "radiômica", quando as imagens podem trazer dados que mostram características que poderão ser comparadas com os aspectos histológicos dos tecidos das lesões. Para isso, o médico radiologista estará integrado à equipe multidisciplinar dos pacientes, beneficiando cada um deles de forma individualizada. A inteligência artificial ampliará as habilidades do médico, trazendo ainda mais precisão ao diagnóstico do câncer.
Benefícios aos pacientes
O médico radio-oncologista Tadeu Ludwig, responsável técnico da Radioterapia do Hospital de Clínicas Ijuí, no noroeste gaúcho, lembra que a tecnologia sempre foi aliada da medicina e continuará sendo nos próximos anos:
— As ferramentas e os algoritmos nos auxiliam em todas as etapas no cuidado do paciente, conseguem detectar algumas alterações que eventualmente olhos humanos ainda não conseguiriam alcançar. Podemos escolher qual o medicamento se encaixa mais para cada pessoa. Quanto maior a precisão, mais rápido poderemos delimitar a área exata onde está o tumor.
Além do tratamento em si, Ludwig lembra que as novas tecnologias contribuem também no acompanhamento posterior:
— Por exemplo, aqueles pacientes com doença que tem maior risco de recidiva (recorrência do câncer) podem ser avaliados com mais frequência. O importante é sabermos filtrar as ferramentas que serão mais úteis, que farão a diferença às pessoas, tanto para um paciente específico, quanto para uma determinada população.
O avanço na radioterapia nos últimos anos também é referida pelo médico, tanto em tempo de exposição à radiação, quanto à precisão das detecções.
— Em determinadas situações, fazemos em cinco a sete sessões o que, antes, precisaríamos de 40. É uma diferença muito grande, traz menos efeitos colaterais aos pacientes e um benefício social e econômico a ele que, muitas vezes, precisa se deslocar de uma cidade para outra para ser atendido — acrescenta Ludwig.
A radioterapia adaptativa, segundo ele, é o que aparece no horizonte no segmento, em que características personalizadas do paciente são levadas em conta durante o serviço:
— Ao avaliar como está a anatomia do paciente naquele dia, conseguimos ser mais específicos e proteger as regiões próximas do corpo. Estamos caminhando para uma radioterapia adaptada à biologia, ou seja, guiada pela própria atividade do tumor. Quanto melhor a qualidade de exames de imagem, teremos uma assertividade melhor.