Há um ano, em 8 de dezembro de 2020, imagens de uma amável senhorinha ruiva de 90 anos, vestindo uma prosaica camiseta azul com estampa de pinguim, correram o planeta. A britânica Margaret Keenan recebia uma dose de vacina contra a covid-19 da Pfizer e se tornava a primeira ocidental a ser vacinada fora de ensaio clínico.
A foto injetou esperança e provocou arrepios ao redor do mundo. A pandemia de covid-19, que ceifou milhões de vidas, obrigou bilhões a se isolarem em casa, elevou o desemprego e traumatizou gerações, começava a ter fim.
O desenvolvimento de vacinas deu-se em tempo recorde, acumulando avanços científicos das últimas décadas e passando por todas as etapas de segurança. Em março de 2020, quatro meses após o Sars-Cov-2 circular na China, começaram ensaios clínicos (em humanos) da Cansino e da Moderna.
Em abril do ano passado, a Pfizer anunciava parceria com a BioNTech para criar uma vacina. Em julho, pesquisadores britânicos publicaram artigo científico na revista The Lancet cujos resultados animaram: um imunizante produzido na prestigiada Universidade de Oxford tinha grande resultado contra a covid-19 — era a AstraZeneca. No mesmo mês, a chinesa SinoVac anunciava que testaria sua vacina no Brasil — a CoronaVac.
Hoje, após quase 8 bilhões de doses aplicadas em todo o planeta, há consenso científico — provado em estudos com milhares de indivíduos, nas estatísticas e na rotina hospitalar — de que vacinas reduziram a circulação do vírus, salvaram milhões de vidas, deram espaço à retomada das atividades econômicas com mais segurança e reconduziram crianças às escolas.
Grande parte do mundo retomou alguma normalidade, ainda que a força de movimentos antivacina no Hemisfério Norte tenha afastado pessoas da imunização.
— A vacinação está mudando a história e o ritmo dessa pandemia. Vacinas se mostraram extremamente seguras, com excelente eficácia e efetividade contra formas graves. O Brasil é exemplo: saímos como retardatários e aos poucos ultrapassamos outros países por conta da grande adesão. Temos hoje uma situação de maior tranquilidade. Caso o vírus resolva de fato ter mutações importantes a ponto de fugir da resposta imunológica, sabemos que, em 90 dias, teremos vacinas específicas — resume a médica Rosana Richtmann, diretora do comitê de imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Com a chegada da variante Ômicron, farmacêuticas já anunciaram que estão desenvolvendo novas versões das vacinas. Para o futuro, a ciência espera imunizantes que protejam simultaneamente contra várias cepas e que atualizações sejam produzidas anualmente, conforme surgirem novas variantes. Por essa expectativa, a reaplicação seria periódica, assim como ocorre para a vacina da gripe.
Estudos em fase inicial indicam a cientistas que o mundo assistirá ao desenvolvimento de uma “segunda geração de vacinas”, com foco, sobretudo, na dose de reforço. Os produtos, espera-se, serão mais efetivos, com proteção mais duradoura, a serem aplicados de um novo jeito e produzidos com novas tecnologias.
O imunizante da norte-americana Novavax, por exemplo, em vez de ensinar células a produzirem proteínas (como Pfizer e AstraZeneca), entrega proteínas sintéticas diretamente ao organismo para gerar a resposta imunológica — estudo mostra que protege em quase 90% contra infecção.
— A nova geração de vacinas terá que ter duração mais prolongada e também com a possibilidade de ser mais abrangente para vírus respiratórios, sejam coronavírus, seja o vírus da gripe. Imaginamos que os reforços serão anuais, o que seria mais prático — diz a médica infectologista Rosana Richtmann.
A farmacêutica Moderna estuda produzir um imunizante que combine reforço contra o coronavírus e proteção contra o vírus influenza. Outro objetivo buscado por farmacêuticas é para que as próximas vacinas bloqueiem a infecção e, portanto, que o vírus não seja passado adiante, lembra a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
— A gente precisa evoluir para vacinas que impeçam a infecção, porque aí teremos uma proteção coletiva maior, assim como a vacina do sarampo. Isso está no horizonte, a ciência está buscando isso — diz.
Entre as novas formas possíveis de aplicação, está por spray nasal, o que é pesquisado na Universidade de São Paulo (USP) e mesmo em Israel. A expectativa é de que gerem um número maior de anticorpos capazes de bloquear a entrada do vírus, que chega ao organismo justamente pelo nariz.
Outros estudos analisam os efeitos de imunizantes aplicados como um adesivo na pele, o que é investigado por pesquisadores da Universidade de Queensland, na Austrália, e de outras instituições nos Estados Unidos. O adesivo, menor do que uma unha, traria microagulhas capazes de inserir o imunizante no organismo. O produto seria mais resistente a diferentes temperaturas, o que auxiliaria na logística de vacinação em diferentes regiões, sobretudo onde seja difícil manter produtos em baixa temperatura.
Desafio é reduzir desigualdade vacinal
Ter novas e mais poderosas vacinas, contudo, não basta — é preciso expandir a cobertura de segunda e terceira dose. Hoje, o Brasil apresenta quase 75% da população com uma dose, 64,5% com esquema completo e menos de 9% com o reforço — uma cobertura exemplar, mas que precisa ainda ser melhorada.
Dados do portal coronavirusbra1.github.io mostram que cinco Estados não vacinaram com duas doses metade da população — o Amapá sequer chegou a 40% dos habitantes com esquema completo.
No mundo, dois países não começaram a vacinar suas populações - Eritreia e Coreia do Norte. Na África, nem 10% da população recebeu duas doses, segundo o Our World in Data. Enquanto houver bolsões de não vacinados, o mundo está suscetível a novas variantes potencialmente mais transmissíveis ou letais, capazes de reduzir a eficácia de imunizantes.
— Ainda vemos boa parte do planeta sem vacina, principalmente países da África e da Ásia. Precisamos dar prioridade a eles, senão a gente não consegue eliminar o risco de novas variantes. O vírus não se replica no ambiente como uma bactéria, ele depende de invadir uma célula para se replicar. Durante a replicação, o vírus sofre mutações não programadas, em uma roleta-russa. Quanto mais pessoas infectadas houver, maior a chance de nascer uma variante em uma dessas situações — pondera Isabella Ballalai, da SBIm.
Em meio à crescente demanda por doses, o surgimento de vacinas de novos laboratórios e as parcerias firmadas por empresas ajudarão a descentralizar a produção de doses, pontua a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.
No Brasil, a Eurofarma já firmou acordo para produzir vacinas da Pfizer. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi selecionada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para ser centro de fabricação de vacinas de RNA mensageiro na América Latina — o que a habilitaria para produzir Pfizer e Moderna.
O Instituto Butantan, por sua vez, estuda a produção de uma nova vacina, a ButanVac. Para além disso, novos imunizantes devem chegar ao país em 2022, produzidos pelas farmacêuticas Novavax, Sanofi/GSK e Clover — as duas últimas, já testadas em Porto Alegre.
— É possível que mais locais se vinculem a farmacêuticas para haver mais plantas fabris de produção. Há movimentação de algumas farmacêuticas fechando parcerias com outras para aumentar a produção. Isso pode ser organizado para aumentar a força de produção de imunizantes. Há espaço para otimismo, especialmente no Brasil, que está avançando na vacinação — diz Fontes-Dutra.