Quem tem medo de injeção talvez se conforme ao saber que, séculos atrás, a tentativa de proteger os seres humanos de uma doença infecciosa não envolvia agulhas e perfurações, mas dependia de um método que exigia mais, talvez, do estômago do que do braço. Alguns dos primeiros registros do uso rudimentar de imunizantes datam do século 10, na China, quando a ameaçadora varíola provocava febre, mal-estar, dores no corpo, bolhas e pústulas na pele, colocando o paciente sob risco de cegueira e morte – sobreviventes ficavam com sequelas e horríveis cicatrizes. Crostas das feridas eram trituradas, e esse pó, soprado sobre o rosto dos indivíduos, que inalavam as partículas ressecadas de inflamação e poderiam, eventualmente, ficar a salvo.
Um salto na linha do tempo. A enfermidade continuava avassaladora. Em alguns períodos da história, durante epidemias, o número de óbitos alcançava 30% de certas populações. No final do século 18, despontou um protagonista da imunologia: o inglês Edward Jenner (1749-1823). Intrigado com o fato de que moradores da zona rural não se infectavam com o vírus da varíola depois de terem desenvolvido a forma bovina da doença (cowpox, em inglês), mais amena, o médico e cientista conduziu um experimento com trabalhadores que lidavam diretamente com a ordenha das vacas. As secreções dos ferimentos cutâneos de um indivíduo doente eram introduzidas, com uma lanceta (instrumento cortante), no braço ou na perna de outro, saudável.
O teste mais famoso data de 1796, quando Jenner inoculou um menino de oito anos com o pus da lesão de uma mulher que havia sido infectada por um animal. Em dois meses, o garoto recebeu o vírus da varíola humana (smallpox) – e não sofreu mais do que uma leve febre. Nascia, então, a primeira vacina que, 200 anos depois, com subsequentes aprimoramentos da técnica, seria capaz de erradicar esse mal do planeta. Nome de batismo, em latim: Variolae vaccinae.
Viviane Boaventura, otorrinolaringologista e imunologista, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), contextualiza o potencial devastador da varíola à época:
– Estima-se que matava, por ano, cerca de 400 mil pessoas. Um terço das que sobreviviam ficavam cegas. É como se fosse uma catapora de hoje em dia, mas muito mais grave. Espalhava-se internamente e na pele, e uma das formas poderia levar a quadros hemorrágicos. Matava muitos bebês. A expectativa de vida, no século 19, não passava dos 40 anos, e 15% das crianças morriam antes de completar um ano de idade.
Viviane lembra que as tão combatidas fake news da atualidade já disseminavam desinformação nesse passado distante. Quando a vacina foi adotada em outros países, como os Estados Unidos, logo se espalharam dúvidas e medo sobre o que estaria sendo introjetado no organismo. Desenhos mostravam criaturas humanoides com cabeça de vaca e bovinos enormes engolindo crianças. Alvo de críticas, Jenner esbarrou em forte resistência, mas teve o devido reconhecimento. Em 1806, Thomas Jefferson (1743-1826), terceiro presidente americano, enviou uma carta, um “tributo de gratidão”, ao estudioso britânico. “Nunca antes a medicina produziu um avanço de tamanha utilidade”, assinalou o mandatário dos EUA. “A humanidade nunca poderá esquecer que você existiu.”
Outros nomes fundamentais seguiram-se ao de Jenner. O microbiologista francês Louis Pasteur (1822-1895) apoiou-se no estofo moldado pelo colega inglês para continuar em frente – prática sempre mantida e exaltada no meio científico, em que a cooperação e as referências dos antecessores são essenciais para o progresso. Numa simplificação ilustrativa, é como se cada pesquisador contribuísse com seus tijolos para erguer uma casa: a construção da moradia nunca volta à primeira estaca porque há sempre diversos operários se esforçando pelo conjunto da obra. Pasteur alavancou os conhecimentos sobre a origem das infecções e ostenta o mérito de ter desenvolvido a vacina contra a raiva humana, um grande salto.
André Mota, historiador e professor do Departamento de Medicina Preventiva e coordenador do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), interpreta a “virada” que se deu justamente no século 19. Pasteur, explica Mota, insere-se em um capítulo precioso: o da consolidação da medicina experimental a partir do invento de Jenner. O pus das feridas começa a ser retirado dos animais, e não mais dos humanos.
– O animal passa a ser tratado pela medicina e pelos laboratórios em três grandes áreas: fisiologia, microbiologia e imunologia. Desenvolve-se uma vacina antivariólica, também produzida com a cowpox, mas com tratamento laboratorial, e se pode discutir a produção em larga escala. As vacinas ganham variedade – lembra o historiador, citando as doses contra o tétano, com potencial de frear as mortes decorrentes do uso de materiais não esterilizados em cirurgias e partos.
Situar as descobertas no período histórico é imprescindível. Essa mudança, diz Mota, desenrolou-se à época da Revolução Industrial, entre os séculos 18 e 19, com o crescimento das cidades e da população, cada vez mais urbana, e o deslocamento de migrantes. A ciência está vinculada aos contornos sociopolíticos que lhe são contemporâneos. Deve-se assinalar outro marco relevante: a vacina contra a febre amarela, de 1937.
– O boom das vacinas é a partir da segunda metade do século 20, após a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1947. Tecnologias que tinham sido utilizadas nas grandes guerras, e inclusive na guerra nuclear, são transferidas para os meios científico e médico. Começam a se discutir programas ampliados de imunização e erradicação de doenças – salienta o professor da USP.
Os conceitos de cidadão e bem-estar social embasaram o transcorrer das pesquisas.
– Todos os mais vulneráveis devem ser protegidos, olhados de forma especial. As vacinas acabam chegando às populações mais pobres, aos lugares mais recônditos – complementa Mota.
Em 1980, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou oficialmente que, após um sofrimento de espantosos 3 mil anos, “o mundo e todos os seus povos estão livres da varíola”, a maior conquista global em saúde pública (a data da erradicação é dezembro de 1979). Só no século 20, registraram-se 300 milhões de óbitos em decorrência dessa moléstia infecciosa.
– Até hoje, é a única doença humana já erradicada, um exemplo do que podemos alcançar quando todas as nações trabalham em conjunto. Reconhecemos os heróis que se uniram para combatê-la e para manter as futuras gerações a salvo – afirmou o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, na celebração dos 40 anos do feito, em 2019, quando ele estava prestes a se tornar personalidade conhecida com o advento da pandemia de coronavírus, que seria declarada três meses depois.
Quem não conviveu com o drama da varíola pode pensar, como referência, na poliomielite, popularmente conhecida como paralisia infantil. A previsão das doses, indicadas para todas as crianças de até cinco anos, continua no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Graças ao respeito ao calendário vacinal, não há registro de circulação do poliovírus selvagem no Brasil desde 1990.
O currículo profissional do médico veterinário Akira Homma, 81 anos, pesquisador emérito da Fiocruz, instituição à qual está vinculado há mais de cinco décadas, mistura-se com os progressos e a consolidação dos imunizantes no Brasil. O doutor em Ciências, que dirigiu o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz), atuou de forma decisiva contra a poliomielite e o sarampo.
– Em 1976, fui chamado para organizar o desenvolvimento e a produção de vacinas necessárias para a saúde pública nacional. Começamos modernizando o laboratório de febre amarela. Queríamos fortalecer Bio-Manguinhos como indústria autossustentável – relembra o descendente de japoneses.
A Fiocruz (fundada em 1900), no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan (1901), em São Paulo, são referências na América Latina das quais o grande público leigo se aproxima agora, sob as intempéries da corrida pela maior campanha mundial de vacinação de todos os tempos, contra a covid-19. Testemunha conhecedora dessa história, Homma lastima que o Brasil não tenha criado o seu próprio imunizante (a Fiocruz atua em parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca, e o Butantan, com a Sinovac), uma vez que dispõe de corpo técnico e experiência exemplares.
– Não tivemos os investimentos e a prioridade que os governos dos países desenvolvidos deram para essa vacina. Eles colocaram uma soma astronômica (de dinheiro). Em tempo algum houve esse volume de recursos. Nunca houve uma vacina desenvolvida em tempo tão curto – comenta Homma, acrescentando que a aceleração, o encurtamento e a sobreposição de etapas viabilizaram as conquistas.
Viviane agrega outros fatores-chave para o sucesso da empreitada. Nos estudos, as substâncias precisam ser dadas a um número elevado de participantes. A mobilização sem precedentes também foi um facilitador, portanto.
– Com o número enorme de pessoas adoecendo e de voluntários interessados, consegue-se ter a resposta da taxa de eficácia da vacina. Com poucos casos de doença, fica difícil confirmar a eficácia – contrapõe a imunologista.
“Subir nos ombros do gigante”, conforme a professora, também se mostrou determinante para atingir a supervelocidade exigida pelo estado de calamidade – trata-se de uma referência à casa de tijolos que é montada pela rede de cientistas, citada anteriormente neste texto, e que permite que o conhecimento avance de forma colaborativa. O modelo de RNA mensageiro, incorporado pelos imunizantes da Pfizer/BioNTech e da Moderna, tem entre seus maiores expoentes a bioquímica húngara Katalin Karikó, que nos anos 1990 empilhou cartas de rejeição a pedidos de financiamento para suas investigações e agora, no entanto, é reverenciada.
– Já existia um avanço tecnológico que permitiu que chegássemos aonde chegamos – pondera Viviane.
De maneira geral, explica a pesquisadora, o que todas as vacinas têm em comum é um elemento do germe que pretendem combater. O imunizante nos prepara para um futuro encontro com esse agente, como se fosse um “treinamento”.
– É treinar o sistema de defesa para que responda de forma rápida e adequada quando encontrar a doença. O organismo precisa desse aprendizado, precisa ter encontrado (esse elemento) anteriormente para ter uma resposta melhor. Em geral, para doenças infecciosas, a primeira vez que pegamos uma doença tende a ser mais grave do que a segunda. O sistema monta uma memória imunológica, de defesa. É um sistema muito evoluído – detalha a médica.
Vacinas são submetidas a extensas e rigorosas testagens antes de serem liberadas para aplicação em massa. Na pandemia, esses processos vêm sendo acompanhados de perto, com grande interesse geral, dada a urgência da crise sanitária sem precedentes provocada pelo Sars-CoV-2, detectado em Wuhan, na China, em dezembro de 2019. Os experimentos começam com animais, para que se avaliem a segurança e o potencial de prevenir doença. Vêm, na sequência, os estudos clínicos, em três fases, com a participação de voluntários. No Brasil, milhares de cidadãos se dispuseram a auxiliar pesquisadores e laboratórios nacionais e do Exterior, recebendo doses de imunizante ou placebo. O monitoramento dos estudiosos se estende para além da aprovação da vacina, para que possam conhecer a efetividade do produto, ou seja, sua performance na “vida real”.
Pense no mundo sem vacinas. A expectativa de vida seria muito baixa, em torno de 40 a 50 anos. imagine o impacto da covid mais o do sarampo, da pólio, da varicela, do tétano, da raiva, da rubéola. A lista é enorme.
VIVIANE BOAVENTURA
Imunologista, pesquisadora da Fiocruz e professora da UFBA
O site da OMS lista uma série de vacinas capazes de proteger contra doenças, entre elas cólera, difteria, hepatite B, gripe, meningite, coqueluche, rotavírus e rubéola. O PNI brasileiro, criado em 1973, é exemplo global de organização, alcance e qualidade, apesar da queda nos índices de cobertura verificada ao longo das duas últimas décadas – o que permitiu o ressurgimento de surtos de sarampo, por exemplo.
– A humanidade esqueceu o que viveu. Não temos mais a memória do quão problemático era ter casos de sarampo e pólio. Os mais velhos são de gerações que viram a paralisia infantil, internados graves no hospital, comprometimento permanente, mortes. Mas isso foi esquecido – lamenta Viviane.
A missão mais urgente do momento é organizar amplas campanhas de vacinação e convencer a parte resistente da população a tomar as doses contra a covid-19, agora que houve a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Movimentos antivacina, antes mais ruidosos nos Estados Unidos e na Europa, fortaleceram-se no Brasil com o advento do coronavírus.
Viviane propõe um exercício mental interessante: pense no mundo sem vacinas.
– A expectativa de vida seria muito baixa, em torno de 40 a 50 anos. As mulheres dificilmente conseguiriam trabalhar fora e precisariam ter muitos filhos para garantir que alguns sobrevivessem até a idade adulta. A economia ficaria muito fragilizada. Imagine o impacto a covid-19 mais o do sarampo, da pólio, da varicela, do tétano, da raiva, da rubéola. A lista é enorme. As pessoas não poderiam trabalhar porque estariam adoecendo, tendo custos com tratamento, hospitalização e tratamento de sequelas. Muitos de nós não teriam nem nascido – constata a pesquisadora da Fiocruz.