Com a identificação da Ômicron, um movimento previsto há meses por especialistas se confirmou: o risco de novas variantes surgirem em regiões de baixa vacinação. Para acabar com a pandemia, será preciso distribuir doses e assegurar que nações mais pobres, sobretudo da África, vacinem suas populações contra a covid-19 — um desafio, dado o cenário atual.
Quase um ano após as primeiras vacinas contra a covid-19 chegarem ao mercado, 44% da população mundial recebeu duas doses. Essa proporção é desigual pelo planeta: se quase 60% dos europeus e sul-americanos completaram o esquema vacinal, o índice cai para 6,7% dos africanos, segundo dados do Our World in Data.
As estatísticas escancaram a desigualdade de acesso: entre mais de 50 países da África, só três completaram o esquema vacinal em mais de 50% da população: Seychelles, Ilhas Maurício e Marrocos. Em 42 nações, o que inclui Botswana, onde a Ômicron supostamente surgiu, a cobertura está abaixo de 20% dos habitantes. Em Guiné-Bissau, Chade, Congo e Burundi, nem 1% das pessoas receberam duas doses.
Enquanto isso, a Europa aplicou 72,6 milhões de doses de reforço, o suficiente para 10% dos habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) conclamou nações a doarem vacinas à África em vez de as usarem como reforço. Caso governantes tivessem doado o quantitativo, as populações de Quênia, Somália e Botswana, somadas, receberiam a primeira dose.
A desigualdade vacinal no mundo reflete a desigualdade econômica entre países: nações mais pobres têm menos dinheiro para comprar vacinas, acabam mais suscetíveis à pandemia e dependem da caridade dos mais ricos, observa André Luiz Reis da Silva, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para piorar, as farmacêuticas responsáveis pelas vacinas estão concentradas em países ricos, o que favorece a concentração de doses. O convênio Covax Facility, organizado pela OMS, angaria vacinas para enviá-las a nações mais pobres. A iniciativa é bem-intencionada, diz Silva, mas não soluciona justamente por depender da vontade de países ricos.
— O bem público global é aquele bem do qual todos vão se beneficiar. Grandes potências oferecem se há lucro para elas. Muitos governos têm dificuldade de buscar legitimidade interna para fazer uma doação internacional: em vez de ofertar primeira dose aos países africanos, preferem entregar a terceira dose para sua população porque isso agrada aos eleitores internos. Mas a pandemia é algo global — acrescenta.
O Instituto Butantan confirmou a GZH que estuda a possibilidade de doar doses da CoronaVac à África, mas não há número nem data fechados. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirmou que toda a sua produção está destinada a atender ao Ministério da Saúde e que qualquer decisão sobre doar doses cabe ao governo federal. O Ministério da Saúde não respondeu se pretende doar doses ao continente.
Fatores diversos
Para além de convencer países mais ricos a passaram vacinas adiante, é preciso assegurar que as doses cheguem ao braço das pessoas. Na África, autoridades de alguns países chegaram a recusar doações porque já possuíam estoque sem procura.
Reis, que é especialista em África, destaca que há vários fatores que pesam para a baixa cobertura vacinal: sistemas de saúde frágeis, concentrados em grandes cidades; dificuldade de deslocamento da população rural; desinformação sobre vacinas; negacionismo.
— Além da falta de vacina, há distribuição desigual e dificuldade logística para colocar a vacina no braço das pessoas. Há desde fake news dizendo que reza protege o corpo até simpatias, muito parecido com o que vimos aqui no Brasil. Há também negacionistas dos mais diversos — explica o professor da UFRGS.
A covid-19, no entanto, não aguarda o tempo dos políticos e impõe sua velocidade própria: gera novas mutações em regiões com baixa cobertura vacinal. Mutações surgem no vírus durante a infecção, enquanto ele se replica dentro do organismo.
Por isso as vacinas ganham relevância, já que reduzem o tempo que o vírus permanece no corpo, o que naturalmente diminui o risco de surgirem mutações que tragam mais riscos, explica a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19 e integrante do comitê independente de cientistas que assessora o Palácio Piratini.
— As mutações aparecem no ciclo de replicação do vírus. A pessoa vacinada elimina mais rápido o vírus do que não vacinados. O vírus terá menos oportunidade de mutar porque as células estão treinadas e prontas a se defender. O regime vacinal completo, além de fornecer proteção maior individual, protege a sociedade por controlar a transmissão e suprimir a frequência de mutações — afirma a biomédica.
Se a riqueza parece ser proporcional à vacinação, há um exemplo contrário: a América do Sul já vacinou 58,6% da população com duas doses, mais do que a Europa (58,2%). Ainda que as estatísticas possivelmente estejam desatualizadas e os números apontem um “empate técnico”, os dados mostram que a rica estrutura de saúde europeia não basta — e que países sul-americanos, apesar de serem mais pobres, contam com boa-vontade para com imunizantes.
— A despeito da questão econômica e da disponibilidade inicial de vacinas, a América do Sul supera a Europa por conta de hesitação mais intensa por lá. Países da América do Sul têm uma cultura de vacinação maior. A narrativa de ser contra a vacina teve sua gênese com pesquisadores europeus. Isso se espalhou na América do Norte na década de 1990 — explica André Giglio Bueno, médico infectologista no Hospital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).
Desigualdades também no Brasil
O desafio de assegurar melhor cobertura vacinal não está só no estrangeiro: o Brasil também precisa olhar no espelho e melhorar os índices, sobretudo no Norte e Nordeste. Até o momento, Amapá e Roraima sequer atingiram 40% da população com duas doses. Na outra ponta, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul lideram o ranking, com quase 70%.
— Visto que a distribuição de vacinas é equânime, não é para ter esse tipo de diferença. Isso é reflexo da capacidade de organização dos Estados em distribuir essas doses. O risco é o mesmo de ter outras regiões do mundo com baixa cobertura vacinal. O agravante é ser mais próximo, o que pode facilitar dispersão nacional de eventual nova variante — acrescenta Bueno.
Uma medida viável para expandir o acesso vacinal é quebrar as patentes de grandes farmacêuticas, diz André Reis, da UFRGS — o que permitiria que outras nações produzissem vacinas. A medida já foi discutida no âmbito internacional: o governo Jair Bolsonaro foi contra, na tentativa de se alinhar aos Estados Unidos, mas depois voltou atrás e se posicionou a favor da iniciativa na Organização Mundial do Comércio (OMC).
— Dá para negociar com as farmacêuticas e fazer permissão de licença sob supervisão para que outros países possam produzir. Pfizer e Moderna têm tecnologia mais avançada, mas outras têm tecnologia mais tradicional. Ficar na mão de três ou quatro empresas é complicado. Passar a tecnologia pode permitir que muitos outros países produzam, como Índia, Brasil e África do Sul e inclusive outros países europeus. Dá para chegar a um acordo razoável para a lucratividade das empresas e do ponto de vista da saúde pública — defende.