A pandemia de coronavírus deixará em seu rastro milhões de mortos no mundo inteiro, mas também um conjunto de lições e mudanças de comportamento capazes de prevenir a repetição de uma tragédia de porte semelhante.
Entre os principais legados do combate ao coronavírus, segundo a avaliação de especialistas consultados por GZH, estão o desenvolvimento da nova categoria de vacinas baseadas em RNA mensageiro (mRNA), a aceleração de processos científicos e a consolidação de novas formas de trabalhar e estudar a distância. O Brasil, porém, até o momento segue em sentido contrário e corta investimentos em pesquisa em vez de multiplicá-los para garantir um lugar de destaque no novo mundo gerado pela covid.
Um dos maiores impactos da luta contra o vírus é uma verdadeira revolução científica: as vacinas mRNA confirmaram as melhores esperanças e abriram uma nova frente de combate não apenas à covid-19, mas a uma série de outras doenças. Essa técnica, já empregada pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna contra a pandemia, em vez de usar partes do vírus ou o micro-organismo inativado, reproduz trechos do seu código genético para induzir uma resposta do sistema imune de forma bastante eficiente.
– O legado mais importante é o desenvolvimento das vacinas com tecnologia de mRNA mensageiro, que até o começo da vacinação era uma grande incógnita. Mostrou ser a melhor opção pela rapidez de produção, pelo tipo de resposta gerada, pela baixa toxicidade. Foi impressionante, um resultado muito melhor do que o esperado. É grande candidata a um prêmio Nobel – afirma a imunologista e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Cristina Bonorino.
O Nobel ainda não veio, mas os pesquisadores responsáveis por esse avanço receberam há pouco mais de um mês o prêmio Lasker 2021, uma espécie de “Nobel norte-americano”. A tecnologia já vinha sendo pesquisada para enfrentar casos de câncer e, segundo a professora da UFCSPA, vem alcançando resultados promissores também nessa área. Uma das cientistas por trás desse avanço, a bioquímica húngara Katalin Karikó, sustenta que a novidade poderá ser empregada em novos imunizantes e tratamentos voltados a outras doenças como esclerose múltipla, zika, gripe, malária, entre outras possibilidades.
Grandes somas de dinheiro vêm sendo injetadas na nova vertente da biotecnologia diante do cenário cada vez mais promissor. Em agosto, a gigante farmacêutica Sanofi, da França, anunciou investimento de US$ 3,2 bilhões em pesquisas envolvendo RNA para desenvolver novas vacinas e medicamentos voltados a doenças raras.
Uma das vantagens é a velocidade de produção – menos de cinco meses depois da descoberta do coronavírus, os primeiros voluntários já estavam recebendo no braço vacinas da Pfizer e da Moderna em fases iniciais dos estudos. Aí entra outro aprendizado da pandemia: a multiplicação de recursos para pesquisa e a flexibilização de normas para agilizar o desenvolvimento de novos produtos sem comprometimento da segurança.
Somente o governo dos Estados Unidos despejou mais de US$ 5 bilhões em pesquisas de imunizantes contra o coronavírus no ano passado. A grande lição é de que o esforço nessa área costuma ser recompensado por redução de mortalidade, retornos econômicos e retomada de uma vida mais próxima do normal.
– Vimos dezenas de vacinas com estudos de fases 1, 2 e 3 aprovadas, com segurança e resultados muito bons. Se mantivermos essa agilidade tanto para financiar projetos quanto para a parte regulatória e de execução, ganharemos muito em processos de pesquisa e implementação de saúde. Esse é um legado muito positivo – analisa o mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard Marcio Sommer Bittencourt.
O legado mais importante (da pandemia) é o desenvolvimento das vacinas com tecnologia de mRNA mensageiro, que até o começo da vacinação era uma grande incógnita.
CRISTINA BONORINO
Imunologista e professora da UFCSPA
Até a pandemia, o mais comum era uma vacina demorar pelo menos 10 anos desde a descoberta de um patógeno até a entrega do imunizante. Isso mudou graças ao entendimento de que era preciso aumentar financiamentos, mobilizar pesquisadores e agilizar processos (sem queimar etapas de segurança) para conter a escalada de mortes. A ciência também contou com a sorte: o coronavírus mostrou não sofrer mutações tão rápidas quanto outras doenças como a gripe, e os cientistas conseguiram identificar rapidamente a parte do vírus responsável pela ligação com as células humanas.
– Em um determinado momento, passou a se dizer que doenças infecciosas não seriam mais um problema no futuro porque tudo andava muito bem. Essa pandemia foi um grande alerta. É necessário recolocar investimentos em sistemas de vigilância, monitoramento, plataformas de vacina, em todos os setores de manejo dessas doenças – ensina o virologista e professor da Universidade Feevale Fernando Spilki.
O que se aprendeu com a pandemia
A revolução das vacinas
Uma das principais inovações recentes na área de biotecnologia, as vacinas que reproduzem parte do código genético do vírus foram utilizadas pela primeira vez com resultados acima do esperado. O desenvolvimento ocorreu em tempo recorde e com índices de eficácia superiores a 90%. Investimentos seguem sendo feitos nesse tipo de tecnologia para combater outras doenças, desde câncer até zika e esclerose múltipla.
Para combater o coronavírus, os pesquisadores aprenderam a superar antigos desafios, como encontrar uma forma de estabilizar o RNA para permitir sua utilização nos imunizantes.
– Muita gente achava que não iria ser possível estabilizar o RNA para induzir uma resposta imune porque ele degrada com muita facilidade. Essa tecnologia mostrou que se pode modificar o RNA de maneira que ele fica mais estável – explica a imunologista Cristina Bonorino.
Novo ritmo da ciência
A urgência provocada pelo rápido alastramento da covid-19 exigiu uma resposta à altura de pesquisadores no mundo inteiro. Para dar conta do desafio, foram investidos bilhões de dólares em novas pesquisas de imunizantes e se deu maior agilidade no processo de desenvolvimento e aprovação de vacinas – que normalmente levavam mais de 10 anos desde a descoberta do patógeno até a entrega do produto. No caso da covid-19, ficou pronta em menos de 12 meses. Ainda assim, nenhuma das etapas de avaliação de segurança dos produtos foi anulada.
Para isso, contribuíram investimentos pesados, trabalho conjunto em diversos países e adoção de novas práticas para acelerar as etapas de pesquisa, como iniciar uma nova fase do processo de desenvolvimento enquanto a anterior ainda era finalizada, além de aprovações emergenciais por parte de entidades regulatórias.
Trabalho e ensino remoto
A necessidade de evitar contato próximo com outras pessoas obrigou o mundo a desenvolver novas formas de trabalhar e de estudar. O teletrabalho e o ensino a distância, que vinham avançando de forma lenta, ganharam um impulso inédito com a pandemia e levaram empregadores, trabalhadores, educadores e estudantes a aprender a interagir com o auxílio da tecnologia em diversas áreas.
- A telemedicina tem revolucionado a prática médica. Já fazíamos um pouco disso, mas não era algo oficial, parte da rotina. Agora é. É uma vantagem porque diminui distâncias, conseguimos atender pessoas que estão mais longe dos centros médicos – afirma o médico e epidemiologista Natan Katz.
A pesquisa Novas Formas de Trabalhar apontou que 58% dos profissionais em trabalho remoto entrevistados consideram que o home office aumentou a produtividade. Outro trabalho estimou que a redução nos tempos de deslocamento até o trabalho ampliou em 5% a produtividade econômica nos EUA.
O erro de polarizar a saúde
Um dos grandes aprendizados da pandemia foi conquistado por meio de exemplos negativos. A interferência de interesses políticos em discussões sobre saúde que deveriam ser exclusivamente técnicas trouxe prejuízos trágicos dentro e fora do Brasil.
– A gente criou divergências desnecessárias pela ação de grupos com visões que são não técnicas, não são voltadas para a saúde, mas puramente políticas. Isso foi extremamente negativo – afirma o especialista em Saúde Pública Marcio Sommer Bittencourt.
Em países como Brasil e Estados Unidos, esse tipo de polarização ameaçou a adesão de partes da população às campanhas de vacinação, estimulou a difusão de tratamentos contra a covid-19 sem comprovação científica e minou a adoção de estratégias como distanciamento social e uso de máscaras.
– A pandemia mostrou que as coisas que funcionam são aquelas que nós já sabíamos que funcionavam, como vacinas, uso de máscara, cordão sanitário, distanciamento. A grande lição é que tínhamos de fazer o bê-a-bá, como testagem, rastreamento de casos e isolamento de suspeitos, e não fizemos. Criamos polêmicas falsas onde não existiam. Agora precisamos olhar para o passado e aprender – avalia o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal.
Relevância do SUS
A pandemia reforçou uma lição já antiga, mas muitas vezes esquecida. A existência de um sistema de saúde público abrangente, estruturado desde as maiores até as menores cidades, foi fundamental para oferecer assistência médica – ainda que com as limitações de um modelo muitas vezes excessivamente burocrático e com restrições de financiamento – e operacionalizar um dos maiores programas de vacinação do mundo.
– Há sistemas de saúde melhores em outros países, com gestão menos centralizada, mas, apesar de tudo, temos um sistema de imunizações que é um dos melhores do mundo, com uma oferta universal e gratuita de vacinas. Mesmo quem usa serviços privados reconhece o posto de saúde como lugar de vacinação – destaca o epidemiologista Natan Katz.
Enquanto planos privados como a Prevent Senior se viram envoltos em denúncias de más práticas, a dedicação dos profissionais de saúde pública fez a diferença no combate à pandemia em todas as regiões do Brasil e mostrou a importância de valorizar e melhorar o SUS. Para o especialista em Saúde Pública Marcio Bittencourt, entres as lições da pandemia a serem aplicadas estão melhorar a flexibilidade do sistema para dar conta de aumentos súbitos de demanda, agilizar a mobilização de profissionais de saúde e reduzir burocracia.
A importância da comunicação
Qualquer estratégia de informação voltada a enfrentar futuras situações de emergência sanitária precisará voltar às lições de 2020 e 2021. A disputa entre informações com embasamento científico e mentiras sobre medidas preventivas ou vacinas deixou uma série de aprendizados. A comunicação oficial deve ser clara, direta, abrangente e coordenada entre diferentes esferas de governo, enquanto o combate às notícias falsas precisa ser intensificado pela remoção de conteúdos potencialmente danosos e eventual punição dos envolvidos quando existe ameaça à saúde pública. Em muitos países, notícias falsas estimularam protestos contra a vacinação.
Recentemente, pesquisadores defenderam em uma audiência na Câmara dos Deputados o compartilhamento de responsabilidades entre Estado, plataformas digitais e usuários no combate à difusão de inverdades. O diretor do Instituto Liberdade Digital, Diogo Rais, por exemplo, propôs um pacto social envolvendo ações de “prevenção, educação e punição”.
Necessidade de maior integração
Um dos padrões do combate à pandemia, tanto em nível nacional quanto internacional, foi a adoção de estratégias descompassadas entre diferentes níveis de governo e países. Uma das conclusões legadas pela pandemia é de que existe um extenso tema de casa a ser feito nessa área.
– Não conseguimos integrar políticas. Em guerras, os países se unem, mas, durante a pandemia, não conseguimos formar nenhum bloco, nem União Europeia, nem a Aliança do Pacífico, nem Mercosul, ninguém conseguiu trabalhar de forma homogênea para validar vacinas, estabelecer protocolos mínimos de exigências sanitárias, de testagem, de controle de fronteiras – avalia o especialista em Saúde Pública Marcio Bittencourt.
Essa falta de integração, no momento, resulta na distribuição desigual de vacinas pelo mundo. Enquanto há países como Israel que já aplicaram até doses de reforço em 43% da população, outros como Congo, Haiti ou Camarões têm menos de 1% da população com esquema vacinal completo. Isso mantém o risco de surgimento de variantes e deixa o mundo inteiro sob risco de novas ondas. Dentro do Brasil, a falta de coordenação entre o governo federal e os Estados trouxe grande prejuízo ao combate à doença ao impedir a adoção de uma estratégia comum.