Dentre os vários comportamentos humanos transformados pela pandemia, a maneira pela qual dois indivíduos se comunicam foi atingida em cheio. Não em modelos de contato, mas no uso das ferramentas que constroem essa ponte. Todo e qualquer contato presencial desnecessário — ou até mesmo os necessários — foi substituído por uma mensagem de texto, um áudio enviado via WhatsApp, uma chamada de vídeo ou uma ligação telefônica.
Atendimentos de serviços públicos, idas ao supermercado, pedidos aos restaurantes, tudo que já estava na palma da mão há algum tempo, se intensificou ainda mais desde que o coronavírus mudou o jeito de viver. E a saúde, obviamente, não ficaria de lado. Com a sanção da crise sanitária, autorizou-se, de maneira emergencial, a aplicação da telemedicina. Uma ideia que vinha sendo maturada há anos com uso ainda restrito entre os profissionais, entrou na relação de médico e paciente. E o que veio como uma solução para os dias rígidos do distanciamento social, deve permanecer nas nossas rotinas, mesmo depois da pandemia.
Quem já precisou de atendimento por este meio, elogiam o acolhimento, como a auxiliar de serviços gerais Inajara Lopes dos Santos, 38 anos. Mãe de João Miguel, quatro anos, ela precisou levar o pequeno ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Com uma respiração ofegante, os pais tiveram medo de que a covid-19 tivesse contaminado o menino, que já estava com catapora. Depois do atendimento e descartada a possibilidade de covid-19, Miguel seguiu recebendo os cuidados médicos através das ligações do HCPA.
— Achei muito mais prático receber a receita médica pelo celular. Também foi muito bom não precisar retornar presencialmente a cada atendimento, já me senti muito bem acolhida com as ligações — conta ela.
Inajara também pontua que a ferramenta foi um auxílio diante da realidade do seu posto de saúde de referência, que não tem pediatra disponível. Ela é moradora do bairro Guarujá, na zona sul de Porto Alegre.
O conceito do atendimento remoto
A telemedicina consiste exatamente no que o seu nome transparece: colocar médico e paciente em contato sem que os dois estejam no mesmo espaço físico. Mas, não é apenas isso. Outras áreas e especialidades da Saúde também entraram nessa chamada, dando um tom mais abrangente à nomenclatura: telessáude. Alcunha já conhecida dos gaúchos, terra onde nasceu o Telessaúde-RS, serviço da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que desde 2007 atende gratuitamente profissionais de saúde que buscam esclarecer dúvidas, pedir consultoria e até estudar.
Essa era a limitação dos atendimentos remotos no país até antes da pandemia. Os contatos se resumiam a três nichos da telessaúde: consultoria, diagnóstico e educação. Profissionais atendiam colegas para auxiliar na avaliação de casos e na percepção de diagnósticos ou para treinamentos e cursos. Sem uma participação direta do paciente. O Telessaúde segue com esse serviço, que saltou em número de usos em 2021. Mas, agora, outras vertentes surgiram para desafogar demandas eletivas que foram represadas durante a pandemia, além de serem essenciais no acompanhamento de pacientes no pós-covid-19.
Crescimento durante a pandemia
Professor no serviço de Atenção Primária do HCPA, Marcelo Rodrigues Gonçalves também é coordenador científico do Telessaúde. Defensor do atendimento remoto como maneira de desafogar filas de espera e democratizar ainda mais o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), ele conta que somente no primeiro semestre deste ano, o Telessaúde prestou mais de 35,7 mil teleconsultorias para todo país. Em 2020, esse número foi de 82.353 atendimentos, volume 34% maior do que em 2019, antes da pandemia, quando foram 61.466 teleconsultorias via Telessaúde.
— É um caminho sem volta. O Brasil é um dos últimos territórios a ter isso como algo regulamentado. Muitos países já tem a telemedicina consolidada há muitos anos. Pessoas e profissionais daqui viram que é confiável, confortável e uma ótima solução para nossa realidade — defende Marcelo.
A aprovação da telemedicina de maneira emergencial pelo Congresso Nacional resolveu em dias uma discussão que se arrastava há quase duas décadas no país. A primeira tentativa legal surgiu em 2002, mas acabou não vingando por falta de apoio político e de concordância entre entidades. Em 2018, uma nova proposição de legislação surgiu, mas foi criticada por profissionais e afogada pela pandemia antes de tomar forma.
Com isso, em poucas linhas, deputados federais aprovaram no início do ano passado a aplicação de consultas de maneira remota enquanto a crise sanitária perdurar no país. Depois, ficará a cargo do Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentar os atendimentos. Tida como solução emergencial, a telemedicina veio para ficar, como avaliam médicos que estudam a área e entidades como CFM e a Associação Médica Brasileira (AMB).
A regulamentação, entretanto, ainda deve gerar discussões antes de ser sacramentada pelo conselho representativo da classe. O diálogo tem divergência em dois pontos que se completam: dar independência do médico mas, ao mesmo tempo, limitar o primeiro contato ao atendimento presencial.
Atualmente, países como Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália, Argentina e México tem a telemedicina regulamentada. Nos EUA, somente três dos 50 estados exigem uma primeira consulta presencial. Na Europa, 24 dos 28 países tem alguma regulamentação sobre teleconsulta. E somente três destes países tem alguma restrição, como a primeira consulta presencial. Entre os que não permitem a prática, estão Alemanha, Eslováquia e Itália.
Entenda as áreas da telessaúde
A prática dos atendimentos remotos não consiste apenas em médicos e pacientes fazendo contato. Veja quais os modelos de telessaúde são mais comuns e utilizados no país, principalmente, no RS.
- Teleconsulta: É contato do paciente com o profissional, seja ele médico ou de outra área da saúde, para a a realização de uma consulta.
- Teleconsultoria: É quando profissionais de saúde buscam contato com outros profissionais especializados para discutir casos e situações de pacientes. É o caso do serviço oferecido pelo Telessaúde-RS.
- Telemonitoramento: É o acompanhamento feito por profissionais de saúde para pacientes de doenças crônicas ou em recuperação da covid-19.
- Telediagnóstico: É quando profissionais especializados de serviços como o Telessaúde-RS prestam atendimento para outros serviços de saúde de maneira remota, dando os diagnósticos solicitados. Um dermatologista que dá o diagnóstico de um exame solicitado pelo médico do posto de saúde, por exemplo.
- Tele-educação: Consiste no uso de plataformas digitais para execução de cursos e práticas que visam aperfeiçoar o trabalho de outros profissionais em seus locais de trabalho.
*Fonte: Dr. Marcelo Gonçalves, coordenador do Telessaúde-RS/UFRGS e professor no serviço de Atenção Primária do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
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