Ao menos a pandemia deixará um legado às novas gerações: a chegada ao mercado das vacinas de RNA mensageiro, consideradas um novo marco na história da ciência. No momento, as únicas disponíveis são produzidas pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna, com suas altas taxas de eficácia de 95% e 94,1%, respectivamente. Analistas defendem que o governo brasileiro precisa investir em importá-las e em desenvolver produtos com essa nova tecnologia – como resultado, o Brasil poderá oferecer à população, no futuro, imunizantes de ponta contra a covid-19 e outras doenças.
Neste momento, as vacinas de mRNA – sigla para mensageiro de ácido ribonucleico – são o carro-chefe das campanhas de aplicação em Israel e nos Estados Unidos, além de nações europeias. Estudadas a partir da década de 1970, passaram a ser aplicadas, pela primeira vez, contra a covid-19. Cientistas foram surpreendidos por sua enorme eficácia, muito acima dos 50,4% da CoronaVac e dos 79% da vacina de Oxford/AstraZeneca, que utilizam tecnologias convencionais.
A gente tem que aplicar só vacina de RNA daqui para frente. Não tem mais discussão. Isso quebrou um paradigma, a biotecnologia é o futuro. Hoje, não investir em biotecnologia é a pior decisão para um país
CRISTINA BONORINO
Professora de Imunologia da UFCSPA
A mais próxima de chegar ao Brasil é a da Pfizer, que já tem uso definitivo aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A partir de maio, o Rio Grande do Sul deve contar com uma vacina contra a covid-19 até então desconhecida dos gaúchos, acostumados a verem nos postos de saúde a CoronaVac ou o produto da AstraZeneca/Oxford. A Secretaria Estadual de Saúde (SES) espera receber cerca de 30 mil doses da vacina Comirnaty, produzida pela Pfizer e pela BioNTech. A previsão do Ministério da Saúde é distribuir as doses aos Estados no começo do mês, ainda sem data confirmada.
O presidente Jair Bolsonaro rejeitou, em agosto do ano passado, oferta de 70 milhões de doses da farmacêutica, a serem fornecidas até o fim de 2021, sendo 500 mil em dezembro do ano passado e 3 milhões até fevereiro. O argumento era a recusa em atender às condições exigidas pelo laboratório, a despeito de as demandas terem sido feitas também a outras nações. Mesmo após saber da grande eficácia da Pfizer, o governo manteve a recusa até que, pressionado, retomou as negociações e fechou em março acordo para adquirir 100 milhões de doses, com primeira entrega prevista entre abril e maio deste ano.
— A gente tem que aplicar só vacina de RNA daqui para frente. Não tem mais discussão. Isso quebrou um paradigma, a biotecnologia é o futuro. Hoje, não investir em biotecnologia é a pior decisão para um país. Teremos que importar, mas precisamos focar nessas vacinas — resume Cristina Bonorino, professora de Imunologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro dos comitês clínico e científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
O RNA é um "parente" do DNA que ensina células a produzirem proteínas – indica, como se fosse uma receita de bolo, quais aminoácidos devem ser usados e em qual sequência. No caso dos produtos da Pfizer e da Moderna, o objetivo é ensinar a criação da proteína spike, uma substância que faz parte do coronavírus e é responsável por ajudá-lo a se engatar e infectar as células humanas.
— Essas vacinas de RNA protegem mais por destruir as células infectadas, mas também porque auxiliam na produção de anticorpos. Precisamos dos resultados dos estudos que acompanham vacinados ao longo dos meses, mas, a princípio, as vacinas da Pfizer e da Moderna têm uma proteção mais robusta e duradoura. CoronaVac e AstraZeneca se tornaram muito eficientes em impedir a doença grave. Isso é o mais importante, que as pessoas não morram e não tenham sequelas. Agora, é fato que as vacinas da Pfizer e da Moderna se mostraram mais protetoras — afirma Ada Alves, chefe do Laboratório de Biotecnologia e Fisiologia de Infecções Virais da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.
Discute-se ainda a possibilidade de as vacinas de RNA impedirem, além do adoecimento, a infecção: em Israel, quem teve covid-19 produziu de 2,6 a 4,5 mais vírus do que quem foi protegido com a Pfizer. Mas não há, ainda, provas definitivas de que a tecnologia reduza a chance de uma pessoa passar o vírus ou se isso é algo conquistado com qualquer tipo de vacina.
Como são produzidas as vacinas de RNA?
Vacinas de RNA mensageiro não usam o coronavírus morto (como a CoronaVac) nem precisam de vetores, como vírus de resfriado (como a Oxford/AstraZeneca ou a Sputnik): utilizam instruções genéticas para as células criarem proteínas que fazem parte do Sars-Cov2 e, assim, treinar o sistema imune.
Para formular a vacina de RNA que enviará as instruções para a célula produzir um pedacinho do coronavírus, é necessário dominar o sequenciamento genético de todo o Sars-Cov-2. Uma vez vencida essa etapa, o processo é rápido: a Moderna levou apenas dois dias para elaborar o seu produto após analisar o coronavírus com detalhes fornecidos no ano passado por cientistas de Wuhan, na China. A mesma lógica se aplica para criar vacinas atualizadas para novas variantes – incluindo a cepa P.1, identificada em Manaus.
— A maior vantagem das vacinas genéticas é justamente essa: você troca a sequência genética de interesse como quem troca de roupa, então é muito fácil adaptar a vacina para uma variante nova ou mesmo uma nova doença. As vacinas de RNA são uma grande conquista da ciência da pandemia. Isso abre portas para a gente revolucionar vacinas daqui para a frente — sintetiza a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), em São Paulo.
Quais os ponto negativos das vacinas de RNA?
As moléculas de RNA exigem armazenamento em frio intenso porque são muito instáveis e se desintegram em temperatura ambiente. A da Pfizer precisa estar sob -75ºC e a da Moderna, -20ºC, o que demanda superfreezers, algo presente somente em laboratórios privados e algumas universidades. A Pfizer desenvolveu uma forma de conservá-las por mais tempo em menor temperatura, mas, ainda assim, usar vacinas de RNA em larga escala no Brasil exigiria uma aplicação focada em grandes cidades. Também são vacinas mais caras e que demandam, para produção, uma infraestrutura de alta tecnologia.
Por que a tecnologia de RNA é vista como o futuro das vacinas?
A maior vantagem das vacinas genéticas é justamente essa: você troca a sequência genética de interesse como quem troca de roupa, então é muito fácil adaptar a vacina para uma variante nova ou mesmo uma nova doença. As vacinas de RNA são uma grande conquista da ciência da pandemia
NATALIA PASTERNAK
Microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência
Pela altíssima eficácia, pela rápida fabricação e pela possibilidade de adaptar a vacina contra novas variantes em pouco tempo. A tecnologia também é estudada para uso em tratamentos contra o câncer – a ideia é ensinar as células de defesa a atacarem os tumores.
— Como a vacina de RNA simplesmente é uma mensagem para produzir uma proteína, é fácil mudar a mensagem. É só mudar umas letrinhas do código. O desafio não é fazer a vacina, mas distribuir para todo mundo — observa a imunologista Cristina Bonorino.
O Brasil poderia produzir vacinas de RNA? Por que devem ser o foco do governo?
Apenas em pequenas quantidades para pesquisa, mas não em escala industrial. A produção exige investimento em pesquisa básica e em aparelhamento de laboratórios. O armazenamento em baixa temperatura já é um empecilho a ser enfrentado pelo governo.
— O Butantan investiu na CoronaVac e a Fiocruz na AstraZeneca porque já havia know-how e infraestrutura em nível industrial para produzi-las. Atualmente, a vacina de RNA é a vacina dos ricos. Só que o problema não é qual a vacina que estamos tomando, mas qual é a política de controle da pandemia. A população tem que tomar qualquer vacina. Todas as disponíveis evitam hospitalização e mortes — diz Ada Alves, pesquisadora da Fiocruz.
O problema não é qual a vacina que estamos tomando, mas qual é a política de controle da pandemia. A população tem que tomar qualquer vacina. Todas as disponíveis evitam hospitalização e mortes
ADA ALVES
Pesquisadora da Fiocruz
Se o coronavírus se tornar um vírus a exigir vacinação anual, cientistas afirmam que o governo brasileiro deveria aumentar os investimentos em pesquisa básica e em infraestrutura para dotar laboratórios e universidades do país com o maquinário essencial para produzir imunizantes de RNA de ponta. Como resultado, o país não dependeria de insumos ou importação de doses prontas, ofereceria à população vacinas mais eficazes e poderia estudar a tecnologia para o tratamento contra o câncer, entre outras doenças.
— No momento, com todo potencial de desenvolvedores de vacinas, somos envasadores de vacinas. Em uma hora como essa, precisamos investir nas tecnologias que já temos para resposta rápida, então, faz sentido investir em uma ButanVac. A vacina de RNA é uma tecnologia muito promissora, mas precisa de investimento robusto se quisermos entrar nesse mercado. E aí precisa de política de estado para investir na ciência, o que não está acontecendo. Para o Brasil, é investimento de longo prazo, não para agora — resume Natalia.