Uma das principais vozes da ciência e no enfrentamento ao coronavírus no Brasil, Margareth Dalcolmo, 63 anos, vem traduzindo o rigor dos termos técnicos para o público em suas análises na Globonews e no jornal O Globo. Observadora perspicaz, ela previu, em março, o fenômeno do “rejuvenescimento” da pandemia no Brasil, ao contrário do que se observou em países como a Itália, onde os idosos foram as grandes vítimas.
Depois de padecer de uma forma moderada da covid-19, a médica capixaba conta que temeu sentir falta de ar e que passou a haver um entendimento recíproco entre ela e os pacientes que nunca deixou de atender. Nesta entrevista, ela fala sobre a rapidez no desenvolvimento de vacinas, condena a propaganda “lamentável” de drogas sem comprovação de eficácia por parte de figuras públicas e destaca o reconhecimento dos cientistas do país.
– Acredite em nós, acredite nos pesquisadores, acredite nos médicos que têm credibilidade quanto ao que estão dizendo – pede Margareth.
Desenvolver uma vacina é um projeto demorado. Ainda que exista um esforço mundial, com resultados promissores até aqui, a senhora acredita que esteja havendo um excesso de otimismo precipitado?
Nós já começamos a produção da vacina no Brasil. É preciso deixar claro que a produção que está sendo feita agora, em todos os lugares do mundo, é a chamada produção sob risco porque estamos diante de uma tragédia humanitária. O Brasil deu um passo muito significativo na negociação de testagem em fase 3 das vacinas chinesa, da Sinovac, e a da AstraZeneca com a Universidade de Oxford, que estamos fazendo pela Fiocruz. Nunca houve, na história, uma vacina aprovada em tão pouco tempo. Estamos falando de uma doença que conhecemos há sete meses. A vacina mais rápida que já houve, de influenza, levou quatro anos para ser liberada. Iniciamos a produção, paralelamente ao estudo de fase 3. Assumiremos, sob risco, dois lotes de 15 milhões de doses cada. O que quer dizer isso? Se a vacina for ruim, vai tudo fora. Existe sempre um risco. Mas tudo indica que esse risco é muito pequeno porque a publicação dos estudos de fase 1 e 2 mostrou um resultado de muita esperança. Existe um cronograma muito bem ajustado. É impossível ser mais rápido. Pensar em vacina para 2020 não é realista. Temos 13 vacinas em fases clínicas já iniciadas no mundo. Em um ano, provavelmente, teremos resultados de eficácia, segurança e efetividade. Quando falo efetividade, estou falando de mundo real, de gente vacinada e protegida. O momento é promissor. Não falaria nem em excesso, nem em falta de otimismo; falaria em realismo. De forma realista, nós precisamos ter, nós todos, médicos, cientistas, opinião pública, todo mundo precisa ter um laivo de esperança no meio dessa tragédia, com tantas mortes, com uma doença sem tratamento nenhum. Nenhum fármaco, até o momento, sendo eficaz para tratamento, muito menos ainda para prevenção. E, teoricamente, também quero deixar isso registrado, sabemos que, para as doenças virais, a grande arma são as vacinas, e não os medicamentos. Não há dúvida.
Nunca houve, na história, uma vacina aprovada em tão pouco tempo. É impossível ser mais rápido. Pensar em vacina para 2020 não é realista.
O que a senhora acha do presidente Jair Bolsonaro fazendo propaganda ostensiva da hidroxicloroquina e de outros medicamentos sem eficácia comprovada pela ciência contra a covid-19, como a ivermectina?
Acho lamentável, muito constrangedor, profundamente constrangedor. Acabo de ler (a entrevista foi concedida na manhã de 22 de julho) que o presidente testou positivo pela terceira vez. Isso prova, no próprio Bolsonaro – a quem eu desejo que tenha a melhor evolução, naturalmente –, que ele vai ficar bom, e apesar de ter usado esse remédio que não tem ação alguma (no dia 25 o presidente testou negativo). Eu já disse algumas vezes e estou dizendo mais uma: Bolsonaro ficará bom, mas a prova de que isso não funciona, de que não é capaz de fazer a eliminação viral, está nele mesmo. Considero a cloroquina uma opção eliminada. A cloroquina foi o fármaco da esperança. E foi mesmo, no início, na China ainda. Depois começaram a ser publicados os estudos observacionais, que não podem ser utilizados como prova de validade para adoção de medicamentos em larga escala. Para isso se exigem ensaios clínicos randomizados e controlados. A partir daí, vários ensaios clínicos randomizados foram finalizados e, em nenhum deles, foi possível encontrar benefícios da cloroquina ou da hidroxicloroquina em qualquer fase da doença. A hidroxicloroquina não tem ação provada e, portanto, consideramos temerários esse discurso e essa utilização de maneira mais política do que como uma medida sanitária defensável.
E quanto aos outros remédios?
A situação é pior. A história da ivermectina é mais lamentável ainda. Ficamos muito tristes quando vemos prefeituras fazendo política com isso, utilizando isso de maneira politizada, a meu juízo demagógica. A ivermectina, que é um vermífugo, foi estudada em um processo de remodelamento de fármacos para bloquear a replicação viral. In vitro (em laboratório), em uma dose 10 vezes maior do que esta que é usada, ela teve alguma ação. Portanto, consideramos a utilização atual não só inadequada como indefensável. Se fôssemos utilizar a dose que teve ação in vitro, seria altamente tóxica. Como as pessoas que estão usando e nem sabem disso, acabam tomando a dose padrão, para tratar piolho, verme, sarna. É um fármaco muito conhecido, mas não tem ação contra a covid-19. É um uso inadequado que não tem nenhuma defesa.
É lamentável, profundamente constrangedor (Bolsonaro fazer campanha de medicamentos sem eficácia comprovada pela ciência). Ficamos muito tristes quando vemos prefeituras fazendo política com isso, utilizando isso de maneira politizada, a meu juízo demagógica.
Há um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) começando em breve, com um braço na Santa Casa de Porto Alegre, com ivermectina. Acredito que a senhora deve ter ouvido falar.
Sim. Vamos esperar os resultados para ver se tem alguma ação. Se o objetivo é verificar se, em pacientes sem gravidade o medicamento impede que o quadro se agrave... É muito difícil essa análise, inclusive. Estamos falando de uma doença que é leve em 80% a 85% das formas. Então, as pessoas vão melhorar de qualquer maneira. O problema da covid-19 é que se trata de uma doença que demanda cuidados, independentemente do grau de gravidade, porque é uma doença longa. Não é uma doença como uma virose qualquer por outros coronavírus, que são nossos velhos conhecidos, responsáveis por grande parte dos resfriados que temos ao longo do ano. O Sars-CoV-2 é um vírus que perdura no corpo, mesmo com sintomas leves. Exige o uso de medicação sintomática, distanciamento da família, cuidados pessoais. Em casos moderados, até o uso de oxigênio em baixo fluxo. Por isso que venho defendendo a utilização desse investimento enorme que foi feito em hospitais de campanha para albergar pacientes com formas leves e moderadas que não tenham condições de ficar em suas casas de maneira adequada. A epidemia diminuiu nas classes altas porque as pessoas fizeram o isolamento social e cresce nas periferias e comunidades mais carentes.
Em março, a senhora previu o “rejuvenescimento” da pandemia no Brasil. Que avaliação faz agora?
Eu estava certa, né? Houve um momento em que, no Rio de Janeiro, por exemplo, havia 50% dos leitos hospitalares ocupados por pessoas com menos de 50 anos. Por que a epidemia rejuvenesceu? A letalidade, melhor dizendo, ou seja, mortes sobre o número de casos, foi maior em pessoas acima de 75 anos com comorbidades, na maior parte dos locais. Mas a morbidade, ou seja, casos internados, pacientes doentes, se distribuiu entre gente mais jovem. A nossa pirâmide de população não tem a proporção de idosos como a da Itália ou a da Espanha. Ela é menor. E, mais do que isso, a doença toma um caráter social e econômico, e a população que vive nas periferias é, sabidamente, de menor idade. É aquela que sai para trabalhar e, portanto, fica mais exposta à contaminação e não tem condições adequadas de fazer o distanciamento social. Hoje é o que estamos vendo em todas as cidades.
Fala-se que a pandemia escancarou a desigualdade social do Brasil. A senhora concorda ou acredita que tudo já era visível para quem estivesse disposto a enxergar?
Na primeira entrevista que dei, publicada em 16 de março, eu disse: a epidemia vai colocar a nu a absolutamente obscena desigualdade social do Brasil. E colocou. A concentração de renda é tão iníqua que os programas de suplementação social que havia não resolvem. A epidemia também trouxe duas coisas novas. Primeiro: falamos várias vezes que não cabia só ao governo comparecer para amenizar essa desigualdade, mas careceria também de um robusto comparecimento da iniciativa privada. É a primeira vez, pelo menos na minha geração, que vejo a iniciativa privada tão presente. Bancos doando testes diagnósticos, respiradores.
Porto Alegre assistiu à construção de um hospital em 30 dias.
A Rede D’Or compareceu fazendo hospitais de campanha, e estes são os que têm os melhores resultados, inclusive quando comparados aos construídos por redes contratadas pelas companhias da saúde. Vimos fornecimento de insumos, de equipamentos de proteção individual. E, agora, empresas privadas financiando estudos de vacina. Portanto, estamos vendo uma sensibilização, e quero ser otimista ao dizer isso: que seja uma coisa permanente, e não gestos esporádicos que, ao passar a pandemia, deixem de existir. O Brasil precisa que essas iniciativas sejam mantidas para amenizar essa desigualdade. A segunda coisa que considero também muito positiva é o reconhecimento de que o país tem uma ciência nacional. Embora tenhamos perdido muitos cérebros preciosos, que foram embora do país pelo desestímulo e pela falta de condições adequadas dos últimos anos, tivemos um grande reconhecimento. Vocês estão vendo aí a Fiocruz fabricando milhões de testes RT-PCR, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de São Paulo (USP) fabricando respiradores a baixo custo. A comunidade científica ganhou muito reconhecimento neste período, e isso funciona como um estímulo grande para que continuemos com o nosso compromisso de produzir conhecimento aplicável a nossa população.
Vimos fornecimento de insumos, de equipamentos de proteção individual. E, agora, empresas privadas financiando estudos de vacina. Portanto, estamos vendo uma sensibilização, e quero ser otimista ao dizer isso: que seja uma coisa permanente, e não gestos esporádicos que, ao passar a pandemia, deixem de existir. O Brasil precisa que essas iniciativas sejam mantidas para amenizar essa desigualdade.
Vi uma imagem curiosa nas redes sociais: um calendário com os meses de março a novembro embaralhados, sob a palavra “quarentena”. A salvo, apenas janeiro, fevereiro e dezembro. Ficaremos “trancados” até o final do ano, com atividades econômicas e sociais diminuídas e movimentação restrita?
Acho que teremos ainda, durante o segundo semestre, esse fluxo de fechamento e abertura de maneira muito dinâmica. Todas as cidades e prefeituras têm de estar preparadas para isso. Considero ainda profundamente precoces, neste momento, a abertura de escolas e as atividades coletivas. Os estudos que estão saindo mostram que não dá para abrir escola de criança. As condições logísticas são muito complexas. O padrão ouro é testar todo mundo. Quem vai arcar com esse custo? E tem que ser o RT-PCR, que não é feito uma vez só. Quem vai fazer isso, quem vai arcar com esse custo nas escolas? Tem de ser feito, idealmente, a cada semana. Imagina abrir uma escola de crianças ou adolescentes... Os adolescentes são muito mais propagadores do que as crianças pequenas. É um risco. Eles vão voltar para as suas casas, onde estão pais, avós, avôs, pessoas idosas que são altamente suscetíveis, e eles podem transmitir a doença estando assintomáticos. Nós – e estou falando nós porque já tive a doença –, começamos a transmitir antes de ter o primeiro sintoma. É a fase da viremia, quando ela está alta e nós estamos liberando o vírus e nem sabemos. A doença é perigosa por isso.
Li um depoimento em que a senhora dizia, quando estava com a covid-19, que não dormia direito esperando a falta de ar. Como foi, para a médica especialista, enfrentar essa doença?
Não tive forma grave de covid-19, foi moderada. E o fato de ser médica aumenta a inquietude, aumenta a angústia e dá medo. É uma doença que dá medo porque é bifásica. Tem essa fase virêmica inicial, nos primeiros dias, e, após a primeira semana, entra na chamada fase inflamatória, que é quando liberamos enorme quantidade de citocinas, tem até o termo “tempestade de citocinas”, que é quando o nosso organismo está brigando com ele mesmo: quem vai ganhar, o nosso sistema imune ou as citocinas tóxicas liberadas pelo corpo? Nesse momento é que tememos entrar em insuficiência respiratória aguda. Não quer dizer que estivesse com falta de ar, mas passei umas duas noites em que acordava com medo de que ela chegasse. Quando tratamos nossos pacientes, temos de entender que eles têm medo. Eles estão em casa, sozinhos, porque é uma doença com a qual você fica completamente só, é você e você mesmo, e se você tem um médico ao qual pode recorrer e dizer “doutor, eu estou com medo”, o médico tem de estar aberto a entender, orientar, conversar. A tecnologia tem ajudado muito, fazemos consultas online. Vejo o rosto deles, eles veem o rosto do médico. Isso faz muita diferença.
Teremos ainda, durante o segundo semestre, esse fluxo de fechamento e abertura de maneira muito dinâmica. Considero profundamente precoces, neste momento, a abertura de escolas e as atividades coletivas. Os estudos que estão saindo mostram que não dá para abrir escola de criança. As condições logísticas são muito complexas. O padrão ouro é testar todo mundo. Quem vai arcar com esse custo?
A sua interação com os pacientes contaminados mudou depois que teve a enfermidade?
Tratei tanta gente desde o início da epidemia... Tinha um entendimento grande da doença. Quando fiquei doente, continuei fazendo as consultas online, e eles sabiam que eu estava doente, até porque isso se tornou público, foi noticiado. Infelizmente, não foi uma coisa privada. Ficava muito cansada, falava com muito esforço e tive um comprometimento muscular bem importante, mas fazia uma consulta ou outra com meus pacientes. Em um momento melhor, ligava, conversava com eles. Havia um entendimento recíproco.
Minha impressão é de que grande parte da população aderiu rapidamente ao uso da máscara, mas me espantam as muitas maneiras de utilizá-la de forma errada: tocando-a o tempo todo, descendo-a para o queixou ou o pescoço. A senhora também tem essa impressão?
A gente precisa continuar nessa saga de educar as pessoas, orientá-las e fazê-las entender que, quando elas põem uma máscara de maneira correta no rosto, estão não só se protegendo como protegendo aquelas pessoas queridas com as quais convivem. A máscara passou a ser, com essa epidemia, uma indumentária, e continuará fazendo parte da nossa indumentária por muito tempo ainda. Não dá para vir da rua e ter contato com o avô ou a avó sem máscara. Isso é falta de solidariedade. O uso da máscara é um gesto solidário. Não é só para se proteger, é para proteger os outros. Quando dou um espirro, estou liberando 200 milhões de partículas virais. É uma doença transmitida pela fala. Quando nós falamos, conversamos, liberamos micropartículas transmissoras. Distância de um metro, um metro e meio é o que recomendamos em todas as relações. Muita gente tem me perguntado: “Não dá ainda para fazer uma festinha?”. Não, não dá para fazer festinha nem de aniversário de um ano. Não dá para fazer casamento, não dá para fazer churrasco. Churrasco ao ar livre, dá para fazer? Estou falando com os gaúchos, né? Dá para fazer churrasco ao ar livre, mas com pouquinha gente, entendeu? Porque ninguém fica de máscara para comer. Não pode ser um grupinho maior do que uma pequena família, senão vocês estarão sob risco.
A senhora tem 63 anos, o que seria o seu único fator de risco, e está na linha de frente. Pensou em se recolher?
No começo da epidemia, internei muitos pacientes, mas evitei entrar em centros de terapia intensiva, onde a carga viral é muito alta. Eu e muitos colegas acima de 60 contávamos com a cooperação dos colegas mais jovens, valorosos, por quem sinto enorme gratidão. E a tecnologia ajuda muito. Controlava todos os pacientes, e os que não estavam entubados ficavam com seus celulares para que pudessem falar com a família e amenizar a solidão. Depois que o paciente entra no hospital e aquela porta se fecha, acabou, ele não vê mais ninguém. Se morrer, vai morrer sem ver ninguém da família nunca mais. Aos meus pacientes não entubados, eu dizia quem era o médico que passaria lá para vê-lo. Havia interação. E eu via os pacientes que estavam fora da terapia intensiva. Agora está mais tranquilo, tenho muito menos pacientes em terapia intensiva e já passei pela doença.
Mas, antes de adoecer, a senhora nem pensou em ficar em casa, longe do trabalho?
Não. Eu não tinha nada. Não só não me recolhi como estimulei que outros colegas de grande experiência também não o fizessem. Faço pesquisa clínica e tenho doentes que estão, neste momento, em tratamento de tuberculose. Meu ambiente de trabalho é muito bom, com muita biossegurança. Tínhamos equipamentos adequados e continuamos a atender até hoje. Nunca paramos.
Que conselho a senhora daria a essa altura dos acontecimentos?
Acredite em nós, acredite nos pesquisadores, acredite nos médicos que têm credibilidade quanto ao que estão dizendo. Não acredite em remédios que não funcionam. Usem máscara como gesto de solidariedade. Cuidem dos seus queridos.