Não é utopia: nomes técnicos de referência podem resistir a ideologismos passageiros, ocupando cargos importantes em governos de variadas matizes do espectro político. Gonzalo Vecina Neto é um exemplo. Defensor do Sistema Único de Saúde (SUS), ele foi um dos mentores (e o primeiro presidente) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Depois, aceitou o convite de Marta Suplicy, então prefeita de São Paulo pelo PT, e foi secretário de Saúde da maior metrópole do país. Professor da Universidade de São Paulo (USP), ainda dirigiu o Hospital Sírio-Libanês, tornando-se um dos gestores de saúde mais experientes do Brasil – e uma das cem personalidades mais influentes da área no país, segundo a revista HealthCare Management.
Sobre a crise decorrente da pandemia de coronavírus, pode-se dizer que seu olhar é, na medida do possível, otimista.
– Aparentemente, nosso sistema não vai colapsar – diz, prevendo uma diminuição gradual do isolamento da população.
Mas não deixa de ser crítico:
– Espero que a sociedade acorde para a necessidade de garantir políticas públicas de saúde que construam um futuro menos desigual para as pessoas.
“Sem o Sus, é a barbárie.” Uma citação dessa sua frase abriu a coluna de Drauzio Varella em GaúchaZH no dia 4 de abril. Em tempos de pandemia, uma saúde pública de qualidade é a única forma de fugir da barbárie?
Vou responder lembrando como a Europa viveu seus últimos 15 ou 20 anos. Nesse período, os países europeus tentaram se readaptar a uma nova realidade, com novos parâmetros econômicos e de produção, buscando minimizar a importância de vínculos empregatícios, desregulamentando serviços, enfim, diminuindo o Estado. O resultado dessa experiência está se vendo agora, quando uma pandemia chegou e a saúde pública se mostrou enfraquecida para lidar com essa situação: há milhares e milhares de mortes, dificuldades generalizadas em todos os países, inclusive aqueles com melhores índices econômicos. Por lá, já está ficando claro para todos os europeus que essa experiência não deu certo. Eles sacrificaram uma parte da civilidade que construíram em nome desses princípios que se revelaram monstruosos. Os partícipes de uma sociedade moderna precisam ter garantias de direitos mínimos de sobrevivência – o que vinha sendo deixado de lado e agora, infelizmente, cobrou seu preço de modo muito eloquente. Aqui no Brasil, temos de acordar para isso também. Temos de tomar as lições que a experiência europeia nos legou e entender que o Estado precisa dar essas garantias.
A pandemia não é um momento de exceção?
Precisamos estar preparados para momentos de exceção. Em 2016, quatro anos antes do coronavírus, vimos ser aprovava a Emenda Constitucional 95, que limitou gastos do Estado. “Não congelou os gastos da saúde”, dizem seus defensores, “mas sim os gastos públicos; cabe aos governantes fazerem os cortes nas áreas que bem entenderem”. Mas isso é uma balela. Houve determinação de cortes. Isso é diminuir o Estado, o que se mostrou um problema. Ao final da pandemia, espero que a sociedade acorde para isso, para a necessidade de construir políticas públicas de saúde que construam um futuro menos desigual para as pessoas. Em uma situação de emergência como o atual, a população marginalizada, as pessoas que vivem nas periferias ou mesmo da informalidade, que somam 40% dos brasileiros, ficam em uma condição de extrema vulnerabilidade. Todos estamos vulneráveis, mas alguns são ainda mais do que os outros. Esses milhões de brasileiros não podem ficar desassistidos. É nesse sentido que digo: em uma sociedade desigual, não há como garantir segurança social para seus partícipes. A distribuição equânime do direito à assistência de saúde está intimamente ligada à segurança social de todos.
Em uma sociedade desigual, não há como garantir segurança social para seus partícipes. A distribuição equânime do direito à assistência de saúde está intimamente ligada à segurança social de todos.
Os EUA, país mais atingido pela pandemia, têm uma experiência ainda mais radical de ausência do Estado na área de saúde.
Os EUA, em saúde, são exemplo para nada. A média de gastos dos países europeus na área se situa entre 10% e 12% do PIB. Os EUA gastam 18%, o que dá mais ou menos US$ 7 mil per capita por ano. O Brasil, para se ter uma ideia, embora a alta do dólar demande uma atualização desse cálculo, vinha gastando entre US$ 10 mil e US$ 12 mil. Imagina: gastar tudo isso e não fornecer saúde pública para os cidadãos, ter expectativa de vida mais baixa e índices de mortalidade infantil muito menores, na comparação com os europeus... O sistema norte-americano é todo partido, tem o Medicare, o Medicaid, um regime para funcionários de empresas com mais de 50 trabalhadores, outro para empresas com mais de 50, outro para veteranos de guerra, enfim, é uma salada. E, no fim, você precisa ter um plano privado – sob pena de não ter assistência. Isso não dá certo, tanto que desde o governo Obama há movimentações para mudar essa realidade.
Paradoxalmente, os EUA são talvez o país que mais investe em pesquisa científica em saúde.
Isso se explica pela expectativa de ganhos. Veja bem: não quero dizer que sou contra o capitalismo. Não é isso. É o sistema em que vivemos e que triunfou. Isso está posto e não vai mudar. O que não quer dizer que o lucro tenha de pautar todas as nossas tomadas de decisão. O que faz um padeiro feliz pode não ser apenas o dinheiro que ele ganha vendendo pão, mas a satisfação do cliente, os laços com a comunidade a partir do produto que ele faz. A ciência e tecnologia, especialmente nos EUA, é totalmente dirigida pelo apetite das multinacionais em produzir produtos com patentes que lhes garantirão ganhos financeiros. Veja, agora, essa questão dos EPIs (equipamentos de proteção individual usados pelos médicos e agentes da saúde): sua produção foi transferida para Índia e China, porque a mão de obra é mais barata. Funciona bem em momentos de normalidade, mas estourou uma pandemia e não há mais EPIs para o mundo todo. Pessoas morrem por falta de equipamento. É a mesma coisa com relação ao teste PCR (que detecta a presença do coronavírus): centralizamos a produção onde era mais em conta e agora faltou. A ausência de uma relação mais sólida e responsável entre o capital e o trabalho, no âmbito da saúde, teve consequências desastrosas. Precisamos refletir sobre isso.
Aparentemente, nosso sistema não vai colapsar. Estamos fazendo uma quarentena que não é tão radical, mas que, me parece, começou na hora certa, a tempo de evitar a propagação maior do vírus. Acho que isso será suficiente para nos salvar do pior.
Corremos hoje o risco de um colapso no sistema de saúde do Brasil?
Se um país como a Itália colapsou, essa possibilidade existe, sim. Se não controlarmos o número de casos, e eles forem maiores do que a nossa capacidade de atender, claro que sim. Porém, se você perguntar minha impressão sobre a possibilidade de haver esse colapso a partir do que estamos vendo, minha resposta é não. Aparentemente, nosso sistema não vai colapsar. Estamos fazendo uma quarentena que não é tão radical, mas que, me parece, começou na hora certa, a tempo de evitar a propagação maior do vírus. É verdade que nosso presidente não consegue ajudar muito, mas os governadores tomaram a frente da situação e determinaram procedimentos adequados. Acho que isso será suficiente para nos salvar do pior.
Há muitos casos de doenças respiratórias nesta época, com a aproximação do inverno. Isso não pode piorar a situação?
Um período crítico é março-abril. Nesses dois meses, endemicamente, registramos no Brasil um aumento de casos de gripe sazonal e outros males respiratórios. Falo do Brasil como um todo – temos de considerar que o Sul fica mais frio, mas outras regiões, nem tanto. Neste ano, graças à quarentena, março-abril foi leve nesse sentido. Os pronto-socorros infantis, neste momento, estão com 10%, 15% de sua capacidade ocupada, somente. Isso é um claro reflexo da interrupção das aulas. As crianças não estão indo à escola. E a escola é onde as crianças trocam material biológico. É de lá que elas levam esse material para outros locais, suas casas, seus prédios. Só o fato de essa troca entre as crianças estar interrompida já é suficiente para frear dramaticamente o avanço de endemias respiratórias, o que traz consequências importantes para a luta contra o coronavírus: apesar de não haver marcadores da transmissão da covid-19 – porque nos faltam PCRs para testar as pessoas que têm os sintomas –, é perfeitamente possível presumir que seu avanço foi igualmente freado. Também por isso março e abril são meses críticos: é o período em que as trocas ocorrem mais intensamente, depois das férias de verão e do reinício das aulas.
Cientistas brasileiros conseguiram decodificar o vírus rapidamente, em apenas 48 horas. Não é possível fazer PCRs a partir disso?
É possível e foi feito, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e laboratórios, mas não em grande quantidade. Temos poucos equipamentos de testagem, daí só podemos testar para conseguir direcionar o paciente que já tem forte sugestão de estar com a covid-19.
Qual a consequência de não se entender precisamente quantas pessoas morreram, quantos são assintomáticos, entre outras respostas que os testes trariam?
É um problema. Ficamos com menos informação para fazer o controle de propagação do vírus, por isso o esforço do poder público em importar testes mais rápidos. Além do equipamento para testes em si, é importante importar dados de países que testaram mais pessoas, casos da China e da Coreia do Sul. Temos uma informação valiosa, que veio do sudeste asiático, que é a de que 80% das pessoas que foram infectadas tiveram a covid-19 de forma muito branda ou imperceptível. Isso significa que devem existir muitos assintomáticos. Mas essa é uma presunção, que deve ser considerada levando em conta que nossas condições sociais são distintas das de uma região tão distante.
O senhor considera que já é possível pensar em fim de quarentena? Se não, quando será?
A suposição que nós temos é de que o pico da epidemia vá ocorrer nos próximos dias. Está todo mundo dizendo que o pico está chegando, e chegando, mas ele não chega. É porque, ao que parece, estamos conseguindo controlá-lo. Ótimo. Mas estamos ou no momento mais crítico ou chegando nele nos próximos dias. Nós fizemos uma preparação, aumentando leitos, construindo hospitais de campanha. Foi suficiente? Ainda não sabemos ao certo. Pode ser que nem seja necessário tanta coisa, depende de como o vírus vai se propagar. Mas é melhor assim do que pagar para ver as mortes, como sugeriu o ex-ministro Osmar Terra. O que me parece claro é que, enfim, em cerca de duas semanas, mais ou menos, ou seja, até o fim de abril, a gente vai ter uma noção mais clara dessa chegada ou não do pico da doença. E aí vamos poder tomar as decisões sobre aliviar ou não a quarentena. É certo que a saída do isolamento terá de ser gradual. Quando? Vamos saber melhor em poucos dias.
A cloroquina, até agora, não recebeu nenhum estudo sério. Então, por enquanto, ela é uma perigosa promessa. Por que perigosa? Porque já sabemos que ela produz danos, que tem efeitos colaterais importantes. Ou seja, ainda não sabemos se ela é com certeza eficiente contra o coronavírus, mas já conhecemos sua possibilidade de trazer malefícios às pessoas.
Mesmo que ainda não tenhamos medicamentos com eficácia comprovada?
Tudo o que falo parte da premissa de que não teremos medicamentos. Isso demora, não tem como ter comprovações tão rapidamente. A cloroquina, até agora, não recebeu nenhum estudo sério. Então, por enquanto, ela é uma perigosa promessa. Por que perigosa? Porque já sabemos que ela produz danos, que tem efeitos colaterais importantes. Ou seja, ainda não sabemos se ela é com certeza eficiente contra o coronavírus, mas já conhecemos sua possibilidade de trazer malefícios às pessoas. Seu padrão de segurança em tratamentos para malária e artrite é um; no caso da covid-19, é outro.
Como será a convivência pós-quarentena sem medicamentos de eficácia comprovada e sem a expectativa imediata da existência de uma vacina?
A hora em que a epidemia começar a arrefecer, poderemos presumir que um grande número de pessoas já teve a doença. Não podemos esquecer dos assintomáticos, que são muitos, como já falamos. Então, mesmo que ainda tenhamos casos, estará claro que ela começa a ser controlada pelo nosso organismo. Agora, se depois de abrir a quarentena os casos subirem muito novamente, teremos de voltar tudo. É preciso ter humildade, respeitar o inimigo, que já demonstrou ser muito forte. E seguir tendo recomendações especiais com os grupos de risco: maiores de 60 anos e portadores de algumas patologias.
Recomendações das autoridades de saúde, incluindo as do ministério da área, não têm sido cumpridas pelo presidente Jair Bolsonaro. Como ficará esse processo de saída da quarentena se essa situação de orientações contraditórias permanecer?
Veja bem. A sociedade está submetida a um acordo social escrito chamado Constituição Federal, cujo guardião é o Judiciário, ou, no nosso país, o Supremo Tribunal Federal (STF). E o STF já disse que é da responsabilidade dos Estados decidir sobre o isolamento social nestes tempos de pandemia. Por isso, apesar de o Ministério da Saúde dizer uma coisa e o presidente, que é responsável pelo governo ao qual o ministério está vinculado, dizer outra, temos uma certa tranquilidade: quem vai coordenar a saída da quarentena são os governadores, que têm se mostrado alinhados com o ministério.
O dinheiro público da saúde tem de vir de impostos progressivos, ou seja, sobre a renda, e não regressivos, que incidem sobre o consumo. O imposto precisa servir para criar pontes para a igualdade.
Ao falar sobre os sistemas de saúde anteriormente, o senhor reiterou sua preocupação com a desigualdade. Como avalia o SUS hoje? Temos um sistema satisfatório ou que precisa avançar? Nesse caso, em que aspecto?
O SUS tem problemas. Por ser um sistema complexo, não há soluções simples. Acredito que seja impreterível ter um financiamento melhor. O que é isso? Um gasto público maior. Hoje, o Ministério da Saúde financia 42%, 43% dos gastos do SUS. Esse índice já chegou a ser de 52%. Em meio a essa queda, governos estaduais e municipais tiveram de aumentar seu gasto com o sistema – e o fizeram. De toda forma, não estamos passando dos 45% de financiamento público à saúde. Ou seja, 55% saem dos bolsos das pessoas ou das empresas. Isso significa que mais da metade do investimento é feito para benefícios individuais. Não constrói pontes para sanar a desigualdade, que, em se tratando de saúde, é o grande nó a ser desfeito. Na Europa, os países ainda têm como gasto público, apesar de terem feito movimentos para a diminuição disso, 70%, 80%. É bem mais do que nós. Então temos uma questão a resolver. Defendo que temos de aumentar o gasto público e, além disso, aumentar a capacidade de o Estado financiar esse gasto. O dinheiro público da saúde tem de vir de impostos diretos, progressivos, ou seja, sobre a renda, e não regressivos, que incidem sobre o consumo. O imposto precisa servir para criar pontes para a igualdade, é assim que uma sociedade civilizada deve ser, com os ricos pagando mais para que isso se traduza em saúde para todos, incluindo os pobres.
O sistema brasileiro de saúde também gera desigualdade social?
Vou dar um exemplo. O modelo de incorporação de tecnologia do SUS é regido pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), que avalia as possibilidades e aprova ou não o uso de determinadas ferramentas no sistema. Ao mesmo tempo, existe a Agência Nacional de Sáude Suplementar (ANS), que atualiza o rol de procedimentos dos atendimentos para quem tem plano de saúde de modo quase automático. Isso significa dizer que temos dois sistemas, um para os ricos, que é o da ANS, atualizado rapidamente, e outro para os pobres, que é o Conitec, mais burocrático. Esse é um retrato da desigualdade que precisa ser combatida no sistema brasileiro, sob pena de nos deixar muito mais vulneráveis como sociedade, afinal, as consequências disso são sentidas por todos, nem precisaríamos de uma pandemia para perceber isso.
Que outras lições a pandemia pode deixar para nosso sistema de saúde?
Duas coisas, ainda. A primeira é a digitalização do sistema. O Estado brasileiro não está digitalizado. O desenho administrativo do Estado data de cinco décadas atrás, lá dos anos 1960. Não modernizamos quase nada desde então. E é uma dificuldade... Em 2019, o Conselho Federal de Medicina (CFM) proibiu a telemedicina por uma razão absolutamente corporativista. Para defender os empregos na área, foram contra um recurso que garantiria o acesso à medicina de massas que hoje estão desassistidas. Isso é ininteligível. Hoje você não consegue garantir acesso à ultrassonografia para muita gente porque atrás do equipamento deve ter um médico. Por que não um técnico, apenas, que depois envia as imagens a um médico? É uma vergonha isso. O Estado brasileiro está atrasado. O SUS é ótimo. Mas mal gerido. Porque o Estado brasileiro é mal gerido. A segunda questão: criar uma rede integrada de acessos, fazer as redes municipais e estaduais conversarem. Não há integração da massa de serviços disponível na sociedade, em grande parte devido a questões políticas, broncas de uma administração com outra. O acesso precisa ser regulado, implantando uma atenção primária universal, em que as redes regionais conversem, otimizem o acesso à saúde. É claro que evoluímos: antes do SUS, as pessoas compravam um plano de saúde com direito, por exemplo, a 15 dias de UTI por ano. Precisou de 16? Azar, morreu. Isso mudou, inclusive planos de saúde melhoraram. E eles podem seguir existindo, oferecendo opções extras de atendimento, mais conforto no tipo de cama, mais espaço, televisão no quarto, menos fila de atendimento etc. Defendo a coexistência de modelos de saúde pública e privada. Mas a diferença não pode ser a vida e a morte. Precisamos aperfeiçoar o sistema justamente para diminuir essa diferença.