Sem o SUS, é a barbárie. Essa frase do sanitarista Gonçalo Vecina resume tudo o que penso.
O SUS é a mais injustiçada das instituições brasileiras. O povo se queixa dos pronto socorros lotados, das filas para cirurgia, das dificuldades para conseguir internações e consultas com especialistas.
Ninguém mais lembra de que antes da criação dele, em 1988, só recebiam assistência médica aqueles com carteira assinada, beneficiários do antigo INPS. Os que trabalhavam no campo e na economia informal eram rotulados de indigentes, portanto dependentes da caridade pública, nas Santas Casas e outras instituições de beneficência.
Pouquíssimos reconhecem que somos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou garantir assistência médica para todos, como direito do cidadão. E que, em apenas 32 anos, o SUS desenvolveu o maior programa mundial de vacinações, de transplantes de órgãos, de hemodiálises, de tratamento dos que convivem com o HIV e de distribuição de medicamentos para diversas doenças crônicas. Hoje, o SUS controla a qualidade de nossos bancos de sangue, o Resgate nas cidades e realiza 90% do total de cirurgias do país, entre outros serviços essenciais.
O que adianta ter um plano maravilhoso com direito aos melhores hospitais se estiverem superlotados, sem vagas na UTI?
O programa Estratégia da Família, com agentes de saúde que batem às portas de dois terços dos brasileiros, é considerado pelos técnicos da Organização Mundial da Saúde como um dos melhores do mundo.
Quando pergunto qual é o maior programa brasileiro de distribuição de renda, todos lembram do Bolsa Família, iniciativa importantíssima, mas que não passa de uma pequena ajuda quando comparada ao SUS.
Infelizmente, nos últimos anos, os recursos federais que deveriam ser destinados ao sistema único diminuíram gradativamente, sobrecarregando Estados e municípios, com dificuldades orçamentárias para atender a população.
O desinteresse dos governantes pela saúde pública brasileira foi tão grande que fizemos o diabo para sediar a Copa do Mundo, decisão que nos obrigou a construir estádios para satisfazer os caprichos da Fifa. Gastamos bilhões para atender as solicitações de governadores empenhados em construir arenas modernas em suas capitais.
Na época, quem considerava absurdo desperdiçar recursos que poderiam ser investidos em saúde e educação era acusado de pertencer à elite que negava aos mais pobres as alegrias do futebol.
O tempo mostrou que a maioria desses estádios se tornou elefantes brancos de manutenção insustentável. Não é vergonhoso que alguns desses monumentos ao desperdício e à corrupção tenham que ser transformados em hospitais a toque de caixa, para enfrentar a epidemia do coronavírus?
A verdade é que o Brasil não chegou a ter uma política pública de saúde digna desse nome. O ministério sempre foi usado como moeda de troca para arranjos políticos, haja vista que nos últimos dez anos 13 ministros ocuparam a cadeira. A média de tempo de permanência no cargo foi de 10 meses. É possível?
O descaso e os desmandos com o SUS não indignaram os 50 milhões de brasileiros que puderam pagar planos de saúde. Quem adquiriu um desses planos imaginou que nunca mais colocaria os pés numa unidade do SUS.
A realidade agora é impiedosa. O que adianta ter um plano maravilhoso com direito aos melhores hospitais de São Paulo se eles estiverem superlotados, sem vagas na UTI?
Neste momento de tantas incertezas, o sistema único enfrentará as maiores dificuldades de sua existência. Há enormes diferenças regionais, o número de leitos nas UTIs de São Paulo é muito maior do que os disponíveis no Maranhão, Rio de Janeiro ou Alagoas. Faltam médicos, enfermeiros e demais profissionais nas cidades menores.
É preciso entender que a epidemia só será contida quando a transmissão for controlada no Brasil inteiro. Enquanto houver bolsões em que o vírus transita com liberdade, todos continuarão a correr risco.
Por isso, há necessidade de uma coordenação central com técnicos competentes e autonomia para reduzir ao máximo as disparidades.
É fundamental que nos convençamos da necessidade de criar uma forma de recolher doações para auxiliar na compra de equipamentos e na prestação de serviços médicos. Não há tempo para discussões políticas nem entraves burocráticos, agora tudo é urgente.
Vamos ter que reparar em semanas os erros que cometemos no decorrer de anos. Mas temos o SUS, felizmente.