É muita sacanagem sofrer ataque cardíaco, derrame cerebral ou ter câncer de pulmão depois de parar de fumar. Depois que você, leitora, comeu o pão que o diabo amassou para resistir às crises de abstinência da nicotina, receber um castigo desses é maldade pura.
Uma tragédia assim enquanto a gente fuma faz parte do jogo. Graças à propaganda criminosa da indústria do fumo, minha geração ficou viciada em nicotina sem saber sequer que o cigarro fazia mal. Mas, hoje, fumante nenhum pode alegar desconhecimento, estamos cansados de ouvir que o cigarro causa câncer, doença cardiovascular, enfisema e muitos outros males.
Os malefícios são tão numerosos, que um fumante do sexo masculino vive 12 anos menos; se for mulher, serão 10 anos de vida jogados numa cova.
É mais fácil largar do crack do que parar de fumar.
Tem gente que diz: "Minha tia teve uma morte tão bonita: sentou no sofá para assistir à novela, quando fomos ver tinha parado de respirar". Tomo a liberdade de discordar com veemência, prezado leitor conformado. Para quem está em boas condições de saúde e em pleno domínio das faculdades mentais, mortes súbitas nunca são bonitas. Bonito é estar vivo para sentir os prazeres que a existência nos traz: da água quente na pele embaixo do chuveiro à alegria de encontrar o amigo, ao sorriso de uma criança, ao orgasmo nos braços da mulher amada.
O cigarro não respeita as virtudes da pessoa e ataca à traição justos e pecadores, sem a menor piedade. As doenças cardiovasculares são campeãs de mortalidade no mundo inteiro. Das mortes por infarto do miocárdio que ocorrem na faixa dos 30 aos 44 anos de idade, 38% são atribuídas ao fumo.
No Brasil, com a proibição da publicidade nos meios de comunicação de massa, conseguimos destruir a imagem construída a peso de ouro pela indústria que exibia o cigarro como um hábito charmoso de mulheres lindas e homens poderosos. Foi possível mostrar à sociedade o que o cigarro realmente é: um vício chinfrim que dá hálito repulsivo e deixa mau cheiro no corpo, nas roupas e em todos os lugares fechados por onde o fumante passa. Não é um hábito. Hábito é tomar banho logo cedo ou ler antes de pegar no sono, o cigarro é um dispositivo para administrar nicotina, a droga que cria a mais dominadora das dependências químicas. É mais fácil largar do crack do que parar de fumar.
Os coreanos acabam de realizar um estudo para responder à pergunta: "Quanto tempo o ex-fumante leva para reduzir o risco de doenças cardiovasculares aos níveis dos que nunca fumaram?". Publicada no Journal of the American Medical Association (JAMA), em outubro deste ano, a pesquisa avaliou o risco de infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca congestiva e AVC em mulheres e homens que já deixaram de fumar.
A publicação envolveu grandes números. Foram 5,3 milhões de participantes selecionados no Korean Health Insurence Service Database. Nesse universo, 4,4 milhões nunca haviam fumado, 853 mil ainda fumavam e 104 mil haviam parado de fumar em períodos variáveis. Além dos números significantes, a pesquisa avaliou a relação entre doenças cardiovasculares e o número de cigarros fumados pelos ex-fumantes, dado que falta na maioria dos estudos semelhantes.
Os ex-fumantes foram divididos em dois grupos: "light" e "heavy", que não vou traduzir porque fumantes leves e pesados não fazem sentido em português. Foram considerados "light" aqueles que fumaram até 8 pacotes/ano. Ou seja, aqueles que fumaram 1 maço/dia por até 8 anos ou 0,5 maço/dia por menos de 16 anos. "Heavy" foram os que fumaram mais do que 8 pacotes/ano, portanto, 1 maço/dia por mais de 8 anos ou 0,5 maço/dia por mais de 16 anos. Eu, que fumei cerca de 1 maço/dia por 19 anos, sou considerado ex-fumante "heavy".
Os resultados mostraram que em ex-fumantes "light" o risco de doenças cardiovasculares cai lentamente em relação ao dos que continuam a fumar, mas só depois de 10 anos é que fica igual ao de quem nunca fumou. Nos que foram fumantes "heavy", a queda é bem mais lenta. Só depois de 25 anos é que o ex-fumante atinge os níveis de risco dos que nunca fumaram. Eu, que parei há 45 anos, espero fazer parte desse contingente.
Já, o câncer de pulmão é mais vingativo. Embora sua incidência diminua gradativamente no decorrer dos anos de abstinência, a probabilidade de surgir parece nunca igualar a de quem jamais colocou um cigarro na boca.
Que droga maldita.