Cada geração de adolescentes vive seus tormentos. Na minha, foram os cigarros, moda que nos aprisionou na dependência de nicotina, para tirar a vida dos que não conseguiram se livrar dela. Os adolescentes de hoje caem na mesma armadilha ao fumar cigarros eletrônicos.
Apresentados como forma de reduzir danos para fumantes de tabaco, os eletrônicos trazem um dispositivo que contém uma solução de nicotina, a droga que provoca a mais feroz das dependências químicas.
Com a experiência da queda nas vendas do cigarro comum, a indústria aprendeu que precisava vencer os obstáculos do hálito repulsivo causado por ele e o mau cheiro que deixa no corpo, nas roupas e no ambiente. Para não reincidir no erro, lançaram mão dos flavorizantes que, adicionados ao reservatório em mistura com a nicotina, têm cheiro e sabor de frutas, chocolate, balas, sorvete de creme e outros tão ao gosto da criançada.
Fabricantes falam que esses compostos já provaram ser seguros. É mentira.
Os fabricantes falam que esses compostos já provaram ser seguros para uso em seres humanos. É mentira. Eles esquecem de dizer que a segurança foi testada para uso na indústria alimentícia e na cosmética, jamais para irem parar nos pulmões. Resultantes da decomposição pelo aquecimento (pirólise) no interior do dispositivo eletrônico, os subprodutos desses flavorizantes são menos conhecidos ainda.
Milhões de pessoas tomam vitamina E, com efeitos colaterais insignificantes. Quando adicionada aos eletrônicos, entretanto, os mais de 10 compostos químicos resultantes de sua degradação pelo calor foram responsáveis pelos casos de EVALI que levaram à hospitalização de 2.087 americanos e a 68 mortes por insuficiência respiratória. Prezada leitora, você imaginaria que uma vitamina seria capaz de provocar um desastre dessas dimensões?
Na composição original dos eletrônicos, havia em seus reservatórios apenas quatro componentes: nicotina, água e dois compostos químicos. Quando foram lançados comercialmente em meados do ano 2000, entretanto, o número de substâncias acrescentadas aumentou de forma dramática. Atualmente, há pelo menos 180 combinadas em diversas proporções para obter o sabor desejado.
Um estudo europeu mostrou que a média é de seis flavorizantes por reservatório. Pesquisa semelhante conduzida nos Estados Unidos revelou que esse número variava de 22 a 47. Nesses dois estudos e em diversos outros, a proporção de flavorizantes foi maior do que a de nicotina.
Já fiz reflexões semelhantes nesta coluna diversas vezes. Volto a elas motivado pelos dados obtidos num estudo científico de alta qualidade, publicado em maio pela revista Nature, uma das mais respeitadas pela comunidade científica internacional.
O grupo de Akira Kishimoto, do Royal College of Surgeons, da Irlanda, se propôs a avaliar a toxicidade dos produtos de degradação térmica desses flavorizantes adicionados aos cigarros eletrônicos. A metodologia empregada foi altamente tecnológica, envolveu métodos como construção de redes neurais, espectrometria de impacto eletrônico, estudos computacionais e acesso às bases de dados que relacionam os principais problemas de saúde associados aos compostos químicos empregados. Os dados obtidos foram tabulados por metodologia de Inteligência Artificial.
Não podemos esperar as mortes para agir. Temos que educar os mais jovens e a sociedade, mostrar os malefícios e os perigos que essa nova praga representa.
Os estudos se concentraram nos 180 flavorizantes presentes nas principais marcas encontradas no mercado. Entre eles, há ésteres, aldeídos, cetonas, hidrocarbonetos aromáticos, álcoois e acetatos.
Como o cigarro eletrônico funciona por aquecimento da solução contida no reservatório, a pirólise quebra essas moléculas em subprodutos mal conhecidos. Os bancos de dados permitiram identificar 127 compostos químicos capazes de provocar toxicidade aguda, 153 causadores de outros agravos à saúde e 225 irritantes para os pulmões e demais órgãos do trato respiratório. Modelos de Inteligência Artificial chegaram a identificar 500 compostos químicos tóxicos.
O principal problema para avaliar os efeitos dessa nova forma de administrar nicotina que se dissemina entre nossas crianças e adolescentes é que os piores efeitos do fumo surgem depois de décadas de uso. Quanto tempo levamos para demonstrar que o cigarro comum era causa de câncer, doenças cardiovasculares, enfisema e tantas outras?
Desta vez, não podemos esperar as mortes para agir. Temos que educar os mais jovens e a sociedade, mostrar os malefícios e os perigos que essa nova praga representa.