São tantos anos de TV que Drauzio Varella, 76 anos, dá ao público a sensação de uma amizade de longa data. A fala didática — tranquila e agradável —, a empatia evidente, a intimidade com temas que envolvem parcelas marginalizadas da população e livros best-sellers deram ao médico uma justa e sólida fama nacional. Difícil encontrar quem não conheça o “doutor Drauzio”.
De passagem por Porto Alegre a convite do Instituto Rio-Grandense do Arroz (Irga), para a gravação da websérie De Grão em Grão – Especial Saúde, que em breve irá ao ar em GaúchaZH, o cancerologista falou de coronavírus (veja a opinião do médico sobre o assunto neste link), da vivência de mais de 30 anos como voluntário no sistema penitenciário brasileiro (que inspiraram os livros Estação Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras), da paixão pela corrida, de envelhecimento e da própria saúde.
— A idade traz mais sabedoria para quem está antenado. Não tenho limitação física, não tomo remédio. Pressão normal, glicemia normal, durmo bem — contou Drauzio, em entrevista concedida na ATL House.
Confira a entrevista:
O senhor trava uma luta antiga contra o tabagismo. Percebe avanços?
Muitos. Nos anos 1960, 60% dos brasileiros acima de 15 anos fumavam. Hoje são 10%. Fumamos menos do que nos Estados Unidos, do que na Europa. Vocês, no Rio Grande do Sul, estão um pouco para trás, são os maiores fumantes do Brasil. É uma pena. Acho que tinha de haver uma abordagem mais intensa dos órgãos de saúde, do governo do Estado.
O planejamento familiar também é uma das suas bandeiras. Uma discussão recente no país é sobre o incentivo à abstinência sexual, proposta pela ministra Damares Alves, como política pública para prevenir a gravidez precoce e doenças sexualmente transmissíveis. O que o senhor acha disso?
Isso não acrescenta nada. Há estudos internacionais mostrando, há muitos anos, desde o começo da aids, que isso não é política pública de saúde. Você pode aconselhar as pessoas a começar a vida sexual mais tarde, tentar evitar a gravidez na adolescência, mas, como política, o impacto é desprezível, se é que existe algum. Temos de insistir em oferecer métodos de contracepção para todas as pessoas, especialmente nas periferias. Tenho alguma experiência em cadeias femininas...
Nossa tendência é andar com as pessoas que pensam como a gente. Se possível, andar com a pessoa que tenha os mesmos princípios políticos, do mesmo nível social. A gente, com essas pessoas, se sente mais seguro, lógico, mas segurança não traz felicidade. Felicidade vem do que surpreende, do inesperado. Escuto gente que não tem absolutamente nada a ver comigo.
DRAUZIO VARELLA
Médico e escritor
Alguma, não. Muita!
Teve uma menina que falou para mim: “Ai, estou tão feliz!”. Você não ouve alguém dizer que está muito feliz na cadeia, né? “Por quê?”, perguntei. “Nasceu minha neta”, ela disse. “Que idade você tem?” “Vinte e oito anos.” Absurdo. Passou a fazer parte da rotina das periferias as meninas engravidarem com 14, 15 anos. A gente fica chocado, mas a tia criou filho sozinha, a mãe criou filho sozinha... Aí ela para de estudar, comprometendo o futuro dela e o do filho, lógico. Isso é uma tragédia brasileira. É preciso agir, e a ciência pode ajudar. Qual é o tipo de contracepção mais eficaz? Antes não se colocava DIU em meninas solteiras porque se corria o risco de ter mais infecções ginecológicas, mas se sabe que isso é besteira. Temos cracolândias em todas as cidades brasileiras, você passa e vê meninas grávidas. Elas não estão grávidas para experimentar os mistérios da maternidade. É que o risco de engravidar é muito grande naquela situação. E a gente não age ativamente. Você vai chegar para uma menina naquela situação e dizer: “Acho que você deveria se abster de ter vida sexual”? Você acha que há sentido numa coisa dessas? Você tem de chegar e dizer: “Minha filha, você quer ficar grávida? O problema é seu, você tem direito, mas, se você não quiser ficar grávida, nós te aconselhamos a colocar um DIU”. De cobre, dura 10 anos, não custa nada.
O senhor já soma mais de três décadas como médico voluntário no sistema carcerário.
Comecei em 1989. São 31 anos!
Li há pouco a história da Maria das Dores, publicada em sua coluna do caderno Vida, em Zero Hora, sobre a mulher que foi presa após se vingar dos estupradores de uma parente de apenas nove anos – ela matou os dois envolvidos e depois ateou fogo aos corpos deles no Instituto Médico Legal. Fiquei pensando se o senhor ainda se surpreende ouvindo essas coisas. O espanto permanece?
Ah, a gente nunca viu tudo, né? E o ser humano é sempre surpreendente. Acho que, depois de um tempo, você começa a ouvir as mesmas histórias. Elas se repetem ou são muito semelhantes, mas não chega a um ponto em que você diz “nossa, já vi tudo”. Em cadeia, nem se chega ao ponto em que se diz “aprendi tudo”.
Aos 60 anos, 90% dos brasileiros têm uma doença crônica, que não vai mais ser curada. Hipertensão, diabetes, problema ortopédico. Que envelhecimento horrível é esse? Estão envelhecendo mal. Eu, até aqui, não tive problema. Acho que só melhorei do ponto de vista da forma de enfrentar e entender a vida. A idade traz mais sabedoria para quem está antenado. Não tenho limitação física nenhuma, não tomo remédio.
DRAUZIO VARELLA
Médico e escritor
Por anos, o senhor se encontrou regularmente, em bares, com carcereiros e outros funcionários de presídios onde trabalhou. Mantém esse hábito?
Mantenho, porque senão eles ficam no meu pé (risos). A cada duas ou três semanas, pelo menos uma vez por mês. E gosto muito. Nossa tendência é andar com as pessoas que pensam como a gente. Se possível, andar com a pessoa que tenha os mesmos princípios políticos, do mesmo nível social. A gente, com essas pessoas, se sente mais seguro, lógico, mas segurança não traz felicidade. Felicidade vem do que surpreende, do inesperado. Escuto gente que não tem absolutamente nada a ver comigo. Muitas vezes, do ponto de vista social e político, elas pensam o oposto do que eu penso, mas temos uma coisa em comum, que é a vivência de cadeia. Quando a gente está junto, só fala de cadeia, impressionante.
Cadeia, cadeia, cadeia.
O tempo todo. As histórias que contamos entre nós eles não contam em outras situações, não conversam com as esposas, com os filhos sobre isso. Também não falo nada disso com a minha mulher. Mas, quando se juntam, quem conhece esse ambiente, quem viveu nesse ambiente, quem vive nesse ambiente, aí tem muita história para contar. Não é justo você fazer isso com pessoas que não optaram por frequentar esse ambiente. Tem gente que tem horror a ele, acho que a maioria das pessoas. Então você não vai ficar impressionando com histórias desse tipo.
Seu livro Carcereiros se encerra com uma reflexão tocante sobre isso, quando o senhor fala de como essa vivência nas prisões o marcou. Não é possível para alguém que nunca esteve nesse ambiente entender profundamente o que isso significa. “Estranho ter consciência de que uma parte de sua experiência, logo a de maior conteúdo dramático, precisa ser mantida em segredo para não contaminar as relações com pessoas íntimas, avessas ao mundo da marginalidade. De alguma forma, sinto que me tornei mais solitário”, o senhor escreve. Essas memórias ainda o assaltam de repente?
Ainda acontece. Especialmente as imagens. Imagens de corpos esfaqueados... Evidentemente, você não vai mais se esquecer desse tipo de coisa. Mas, às vezes, tem umas situações... Estamos fazendo um programa especial sobre travestis na cadeia para o Fantástico. Tinha uma cadeia com uma travesti alta, um olhar bonito. Ela estava fazendo um trabalho e, quando terminou, o olhar dela ficou tão triste, tão triste. Esse olhar me persegue, como outras vezes aconteceu. Quer dizer, a surpresa não é só pela violência, é pelo sofrimento humano.
Quando comecei no sistema, em 1989, o Brasil tinha 90 mil presos. Tem 820 mil hoje, mais ou menos. Nove vezes mais! Somos o terceiro país do mundo que mais prende em números absolutos. Estão mais seguras as nossas cidades do que estavam há 30 anos? Porto Alegre está mais segura do que 30 anos atrás? Eu quero que prendam também, lógico, não quero que o cara fique assaltando na esquina da minha casa, mas a gente tem de fazer isso sabendo que o aprisionamento não reduz a violência urbana.
DRAUZIO VARELLA
Médico e escritor
Grande parte da opinião pública despreza o estado de calamidade das prisões, e o senhor faz diversas referências a isso em seus textos. Muitos acham que os presos têm de sofrer, o que compromete a regeneração. Esse debate avança pouco, não?
O que me choca não é a pessoa pensar isso, o que me choca é a burrice. Pensar, você pode pensar: “Eu acho que tinham de matar esses caras!”. Tudo bem, mas estamos em uma sociedade civilizada que não vai fazer isso. “Joga lá, empilha! Não tem lugar? Empilha!” Em época eleitoral, vários candidatos falam isso. Se fossem ficar empilhados pelo resto da vida... Mas não, eles cumprem a pena, o Estado é democrático e tem de libertá-los. Em que condições essa pessoa é libertada? A que leva essa política? Por isso digo que é burrice repetir essas coisas. Quando comecei no sistema, em 1989, o Brasil tinha 90 mil presos. Tem 820 mil hoje, mais ou menos. Nove vezes mais! Somos o terceiro país do mundo que mais prende em números absolutos. Estão mais seguras as nossas cidades do que estavam há 30 anos? Porto Alegre está mais segura do que 30 anos atrás? Eu quero que prendam também, lógico, não quero que o cara fique assaltando na esquina da minha casa, mas a gente tem de fazer isso sabendo que o aprisionamento não reduz a violência urbana. Essa política de prender o cara com cinco gramas de maconha... Só alimentamos o crime organizado. Em uma cadeia lotada, o Estado não tem condições de dar segurança para ninguém. Entregamos na mão do crime organizado a organização das nossas cadeias. Olha no que deu.
Temos cracolândias em todas as cidades brasileiras, você passa e vê meninas grávidas. Elas não estão grávidas para experimentar os mistérios da maternidade. É que o risco de engravidar é muito grande naquela situação. E a gente não age ativamente. Você vai chegar para uma menina naquela situação e dizer: 'Acho que você deveria se abster de ter vida sexual'? Você acha que há sentido numa coisa dessas? Você tem de chegar e dizer: 'Minha filha, você quer ficar grávida? O problema é seu, você tem direito, mas, se você não quiser ficar grávida, nós te aconselhamos a colocar um DIU'.
DRAUZIO VARELLA
Médico e escritor
O que falta fazer? Por onde começar?
Solução, ninguém tem. Temos de procurar um caminho. Quem tem que estar preso mesmo? E quem é que pode cumprir outro tipo de pena? Escrevi sobre essas meninas que colocam cocaína na vagina e levam para o namorado, para o marido, para o pai. Pô, precisa prender na cadeia? Quem é que ganha com uma coisa dessas? E ganha o quê? Não podemos ter o aprisionamento como única solução para a criminalidade. Não dá certo. Você vê, nas periferias, uma massa de adolescentes que não tem o que fazer, que não tem perspectiva, uma massa que frequentou escolas fracas, que não tem exemplos. Mais da metade dessas pessoas da periferia vive em uma casa coordenada por uma mulher, não teve pai, ou, quando teve, era melhor que não tivesse tido. Esses adolescentes não têm espaço, as casas são empilhadas umas nas outras, não têm lugar para jogar bola, nada que possa distrai-los. E aí, na hora em que eles se comportam mal, jogamos na cadeia. E a gente quer o que com isso? Nós, como sociedade, o que pensamos? Se eu tivesse nascido nessas condições, acho que teria dado muito trabalho.
O senhor continua correndo?
Continuo. Três vezes por semana. E agora estou passando para quatro vezes porque tenho uma maratona para correr. Estou inscrito na maratona de Londres, em abril. Muito chique, né? (Risos.)
O que mais gosta de fazer nas horas livres?
Correr, ir ao cinema com minha mulher, isso eu faço com regularidade. Vi (o filme) 1917, maravilhoso.
O senhor consegue circular ou é sempre como a gente acabou de ver aqui, com dezenas de abordagens e pedidos de selfie?
Televisão é um pacote, você sabe disso. Você está no jornal trabalhando, escrevendo, o seu nome está todo dia lá, mas está desvinculado da sua imagem. Na televisão, é ao contrário. Primeiro, você põe a cara na televisão, você aparece, e depois é que vai falar. E aí você tem de saber que vai ter de desembrulhar esse pacote. Não dá para dizer “essa parte eu não quero”. Você entra na casa das pessoas. Faço isso há muitos anos, só no Fantástico já são 20 anos. A pessoa tem intimidade com você. Você não sabe quem ela é, mas ela te conhece bem. E, com essa coisa de fotografia hoje, redes sociais e tudo, não tem como evitar. Mas as pessoas, geralmente, são muito respeitosas comigo. Não tem grosseria.
É que o senhor é muito carismático.
Outro dia, eu vinha andando no centro de São Paulo e veio um cara bêbado, com uma camisa da Portuguesa de Desportos, me abraçar. Aí deu trabalho para me livrar (risos). Um amigo dele, mais bêbado do que ele, falava: “Deixa o doutor ir embora!”. Mas isso é raro, e eu também levo numa boa.
Como é um dia comum de trabalho na sua vida?
O problema é que não existe esse dia comum (risos). De comum, os dias em que vou ao consultório. Corro na rua, bem cedo. Acordo às 5h. Às vezes, quando tenho um pouco mais de tempo para uma corrida maior, vou ao Ibirapuera. Depois, vou para casa, tomo banho e começo o dia. Atualmente, vou ao consultório duas vezes por semana. Foram três vezes a vida inteira, agora reduzi um pouco, senão não consigo dar conta do resto. Na penitenciária (Penitenciária Feminina de São Paulo), um dia por semana, chego às 8h e termino às 13h ou 14h. Tem dias de viagem, como hoje. Final de semana, depende. Gosto muito de escrever no fim de semana. Nem sempre dá certo.
O celular mais ajuda ou atrapalha?
Ah, inferniza. Ajuda, para trabalhar mais é bom, mas inferniza muito. Ficamos totalmente reféns. Estou aqui conversando com você, se eu pego o celular e olho para ver se caiu algum recado, ao mesmo tempo estou olhando o ambiente... Depois vou dizer: mas o que foi que a Larissa me perguntou aquela hora? Falo que estou perdendo a memória. Se você perguntar para esses meninos que estão aí se está boa a memória, eles vão dizer que não. E não está boa por quê? A gente não presta atenção. Você tem de ficar fixado no assunto que está sendo resolvido naquele momento, e não existe mais essa possibilidade. O cérebro humano não tem condição de coordenar todos esses estímulos ao mesmo tempo.
Seus perfis são muito populares nas redes sociais. O senhor terceiriza tudo ou também posta?
Não, nas redes sociais eu não entro. Eles (equipe) me avisam, gravo, é muito dinâmico, mas não tem uma palavra da minha vida pessoal. Acho tão ridículo ficar pondo “olha eu fazendo não sei o quê!”, “olha eu chegando não sei onde!”. É uma egolatria.
Encerrando, porque sei que o senhor tem que ir para o aeroporto. Gostaria de saber como o senhor, que afirma que o brasileiro envelhece mal, está encarando o passar do tempo.
Os dados estão aí. Aos 60 anos, 90% dos brasileiros têm uma doença crônica, que não vai mais ser curada. Hipertensão, diabetes, problema ortopédico. Que envelhecimento horrível é esse? Estão envelhecendo mal. Eu, até aqui, não tive problema. Acho que só melhorei do ponto de vista da forma de enfrentar e entender a vida. A idade traz mais sabedoria para quem está antenado. Não tenho limitação física nenhuma, não tomo remédio.
Nenhum? Isso é invejável.
Pressão normal, glicemia normal, durmo bem. Não tenho remédio para tomar. Não tenho razão nenhuma para tomar remédio.
Credita isso à corrida?
Ah, com certeza. É a única explicação que tenho.