
Demorou um pouco para que Drauzio Varella deixasse de ter seu nome associado unicamente a seu best-seller Estação Carandiru, uma radiografia do cotidiano em uma das mais terríveis prisões do Brasil.
Hoje conhecido também por seu trabalho na TV como divulgador médico, Drauzio decidiu que estava pronto para voltar ao ambiente que o tornou um dos médicos mais famosos do Brasil, desta vez dando voz ao outro lado.
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Carcereiros é o nome do novo livro de Drauzio Varella, que chega às livrarias na mesma época em que se completam duas décadas do pior massacre do sistema prisional brasileira: a execução, pela Polícia Militar de São Paulo, de "111 presos indefesos", como cantariam Caetano e Gil, rebelados no Pavilhão 9 da prisão - muitos alvejados depois de se render ou escondidos em suas celas. Há exatos 20 anos, no dia 2 de outubro de 1992, um contingente da Polícia Militar de São Paulo, chefiado pelo coronel Ubiratan Guimarães, invadiu o pavilhão 9 da Casa de Detenção para terminar com um motim e deixou um rio de sangue pelos corredores.
Parte dessa história Drauzio Varella - que trabalhou como médico voluntário no Carandiru de 1989 até sua desativação, em 2002 - já havia contado no último capítulo do livro Estação Carandiru, publicado em 1999. Na obra, best-seller com mais de 500 mil exemplares vendidos, Varella, oncologista de formação que lidava na enfermaria da detenção com casos endêmicos de tuberculose ou aids, partilhava com seu leitor o que havia visto no cotidiano da cadeia, desconstruindo alguns lugares comuns sobre a vida no cárcere. As cadeias tinham sim ordem e hierarquia, e sua administração dependia muitas vezes de uma colaboração extraoficial com os códigos da população carcerária.
Em Carcereiros, Varella inverte o foco. Saem as histórias ouvidas dos detentos e entram episódios vividos por funcionários dos presídios, agentes penitenciários, carcereiros e administradores. Em comum entre as duas obras, uma estrutura fragmentada que faz do massacre do Carandiru um episódio entre muitos outros relatados - em Carcereiros, a história que abre o livro narra como um pequeno grupo de agentes penitenciários conseguiu impedir que o pavilhão vizinho, o 8, se juntasse ao 9 na sublevação, e como isso evitou a invasão da PM no bloco e uma extensão ainda mais trágica do massacre.
- É uma cena que me impressiona desde aquela época. Tinha meia-dúzia de homens no Pavilhão 8, onde ficavam mais de mil presos. E naquela confusão toda, arriscando a própria vida, conseguiram trancar esses presos todos e impedir que a PM invadisse, o que tornaria a tragédia muito mais grave, com muito mais mortos - diz o médico, que ouviu as histórias de agentes e funcionários com quem ainda mantém contato frequente em encontros periódicos.
Outro ponto em comum entre os dois livros é a denúncia, desta vez bem mais veemente, do abandono do Estado ao sistema prisional, e como todos os atores no cotidiano de um presídio são afetados por eles.
Na contramão de um certo discurso reacionário que sonha com um Massacre do Carandiru por semana em presídios brasileiros, Varella reconstitui, também, como o massacre foi o estopim para o crescimento, no cotidiano das cadeias, do poder das facções criminosas que passaram a dominar as prisões formando um poder paralelo ao do Estado ausente. O que tornou bem mais difícil o trabalho dos personagens do livro.
Leia trecho de Carcereiros, de Drauzio Varella:
"Os funcionários honraram a palavra: a cada hora um deles subia para avisar de cela em cela que, apesar do tiroteio ao lado, estava tudo em calma no Oito, mas que não ousassem espiar pelas janelas para não correr o risco de levar um tiro na cabeça. Em rodízio, um deles permanecia de prontidão o tempo todo no portão que os separava do Nove, providência que se mostrou de grande valia, porque diversas vezes os PMs foram convencidos a não entrar, sob a alegação inquestionável de que não havia razão para invadir um pavilhão em paz.
Por volta das oito da noite, as balas silenciaram."