Ainda é bem viva na memória dos moradores da Rua da Represa, na zona leste de Porto Alegre, a lembrança dos acontecimentos do dia 8 de junho de 2017. Uma forte enxurrada atingiu a Capital e fez com que o Arroio Moinho, que corre próximo da via, elevasse seu nível, causando devastação e até a morte de uma moradora do bairro Coronel Aparício Borges, levada pelas águas. Conforme a Defesa Civil, cerca de 50 casas foram atingidas pelos efeitos do temporal. E, mesmo mais de três anos e meio depois, o clima em alguns pontos da rua ainda é de reconstrução.
Ao longo da Rua da Represa, existem três pontos considerados como áreas de risco. Os locais estão entre as 118 áreas de risco mapeadas em Porto Alegre. São espaços onde há, pelo menos, 11 mil residências, com cerca de 44 mil moradores.
O número, embora oficial, não é atual — os dados que a prefeitura tem como base são de 2013. Hoje, acredita-se que até 20 mil famílias possam estar em ocupações em áreas de proteção permanente com algum risco. A malha de ocupações nestes pontos vem crescendo exponencialmente: em 2010, a prefeitura afirmava que tinha cadastradas 700 famílias vivendo em áreas de risco. Número muito inferior aos 11 mil registrados pouco tempo depois, em 2013.
Entre as razões que colocam estes pontos da cidade nesta classificação, inundação, enxurrada e erosão de margem representam risco a 47,3% das residências. Na sequência vêm corrida de lama e deslizamento/rolamento de blocos, com 29,5% das casas. Dados da CPRM/Serviço Geológico do Brasil, citam que 90% das residências dessas 118 áreas são classificadas como tendo risco alto, e 10%, muito alto.
As áreas de risco estão espalhadas por 29 bairros da Capital, principalmente, na Zona Leste, como na região do Arroio Moinho, que desagua no Dilúvio. Os trechos de risco na Represa têm essa demarcação por chances de deslizamento, enxurrada, inundação e rolamento de blocos, como mostra um documento da prefeitura.
Pedreiro construiu muro triplo
Mesmo com casas bem próximas da margem do arroio, onde inundação e erosões da margem são uma ameaça real, moradores não sentem vontade de deixar a região. Desempregado, mas fazendo alguns bicos como pedreiro, Edimar de Paula Padini, 48 anos, construiu praticamente uma fortaleza ao lado do Arroio Moinho. Morador do bairro há 30 anos, ele ocupa o espaço atual por metade deste tempo. Antes, vivia com a sogra em outro ponto da comunidade. Agora, divide o sonho da casa própria com a esposa, a auxiliar administrativa Analu, 32 anos, e uma filha, Juliana, sete anos. Quem passa muito rápido pela esquina da Rua Manoel Bitencourt com a Rua da Represa, pode nem ver a casa de Edimar.
Abaixo do nível da pista, o local está resguardado por uma estrutura de muros que abrigam a frente e lateral que fica próxima da água. Para lutar contra a erosão, o construtor civil ergueu muros de tijolo, pedras de alicerce e concreto. Ele garante que, mesmo em dia de chuva mais intensa, não é atingido.
— São três muros colados, preenchidos com concreto. É uma obra que levou tempo para eu fazer. Então, hoje me sinto muito seguro aqui — garante o morador.
Mudança não é cogitada
Entretanto, Edimar sabe da questão legal que envolve a área e a possível necessidade de mudança que ronda os residentes da margem, mesmo que seja incerta. Ele diz que o mínimo seria ter algo próximo do que tem hoje, uma casa ampla, com bom pátio, garagem. Mudar para "esses apartamentos que a prefeitura oferece" não é uma opção muito bem-vinda.
Marlene Regina da Silva, 71 anos, nasceu, criou-se e cresceu naquela região da Zona Leste. Nas proximidades do Arroio Moinho, comprou os terrenos onde moram seus seis filhos. Ela mora no mesmo local, mas em uma área segura, garante. Entretanto, sabe que a vontade do poder público seria mudar todas as famílias de local, possibilidade que ela desconsidera por completo:
— Esse lugar aqui é meu chão, eu nasci e vou morrer aqui.
Moradores fazem suas próprias obras
Uma situação bem notável ao longo de locais com a Rua da Represa são as obras feitas pelos próprios moradores como forma de se proteger da água ou transpor o arroio quando necessário. Pequenas passarelas de madeira ou até mesmo em alvenaria são frequentes no cenário de comunidades lindeiras aos cursos da água.
O auxiliar de manutenção predial aposentado Adir Borges Saraiva, 67 anos, por exemplo, construiu um muro de concreto para evitar que a erosão do solo atingisse sua casa. Uma pequena ponte de madeira também permite o acesso a sua garagem. A extensão era de alvenaria, mas foi levada na enxurrada de 2017. Agora, Adir está no período de reconstrução.
— Tenho que fazer o muro, a ponte, só depois vou pensar na casa — aponta ele.
Enquanto investe no local, Adir garante que é algo no qual não se arrepende. Segundo ele, o poder público não ofertou mudanças justas em todo período que vive no local. Adir acredita que o ideal seria focar em trabalhos de limpeza. O Arroio Moinho tem muito lixo acumulado ao longo de seu curso, como presenciou a reportagem durante a visita ao local.
— Sempre ouvimos promessa sobre fazerem galerias, melhorar as condições do arroio, mas isso nunca sai do papel. Então, vamos perdendo a esperança — diz Adir.
Perigo não vem só água
Em outro ponto da Zona Leste, no bairro Agronomia, alguns pontos são áreas de risco em razão da possibilidade de quedas de blocos e deslizamento. É o caso da área entre as ruas Esplêndida e Encantadora. Um grande morro com ares de uma antiga pedreira se destaca por trás das residências da região. Entretanto, mesmo com o cenário propício, os moradores garantem que nunca viram situações de risco ocorrendo. No topo do morro, há uma placa indicando que é proibido construir no local. Ao menos naquela área, o recado é respeitado.
— Estamos aqui há 30 anos, não tive problemas. E já tivemos períodos de chuva forte e vento, mas não chegou a ocorrer queda de pedras. Ano passado, consegui o usucapião da minha casa, inclusive — relata o serralheiro aposentado Miguel Rodrigues, 57 anos, que divide a casa com a esposa, a dona de casa Joselita Santos Rodrigues, 59 anos.
Vizinha do casal, a pensionista Noraci Camargo, 56 anos, também relata tranquilidade morando no local. Ela acredita que o risco seria maior se residências começassem a ser construídas em cima do morro, afetando o solo e aí sim podendo acarretar em deslizamentos.
— Por enquanto, ainda prefiro acreditar que estamos seguros — aposta ela, bem-humorada.
Grupo de trabalho com foco no tema
O assunto das áreas de risco tornou-se prioridade para a Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (SMHARF). Por meio do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), áreas de risco têm sido visitadas para entender as demandas das comunidades destas regiões. Conforme Diego Dewes, coordenador da Unidade de Relações Comunitárias do Demhab, a prefeitura "se sensibiliza com essa questão de pessoas que têm risco de morte iminente".
O ocorrido de 2017, que culminou na morte de uma moradora de área de risco, é exatamente o que os trabalhos atuais querem evitar. Porém, Diogo explica que o município trabalhará muito mais com ações de conscientização e orientação dos moradores destes pontos, do que propriamente transferindo famílias de local.
O coordenador explica que essas medidas acabam caindo em lugares comuns como nova invasão de áreas já desocupadas nas margens dos arroios e outras áreas de risco, tornando o trabalho ineficaz.
— Esses espaços são, basicamente, áreas de preservação permanente com ocupação, como topos de morro, cursos de rio, pontos com riscos de problemas geológicos, hidrológicos. Queremos trabalhar para dar o mínimo de segurança para quem vive nesses pontos. Se conseguirmos evitar que uma fatalidade aconteça, já é uma grande conquista — pontua Diego.
Ações
O trabalho já está sendo tocado de maneira inicial pelo Demhab. Mas a ideia é criar um grupo para a atuação preventiva junto às áreas de risco mapeadas no município. A atuação seria em conjunto com a Defesa Civil e outras secretarias e órgãos da prefeitura. Entre as ações, um dos principais pontos serão parcerias com organizações da sociedade, como universidades, para retomada de trabalhos preventivos, que incluem, por exemplo, orientações sobre como as pessoas devem se comportar diante de um caso emergencial que possa acontecer naquelas áreas.